sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Cumprir

Os aviões não param de partir e de chegar, com uma cadência certa durante o dia, e menos intensa quando o sol se decide a acostar. Trazem de tudo no seu interior: as malas carregadas de memórias a recordar; as fardas de verão e de inverno; os livros que nos exercitam Pessoa; os remédios da malária; a pistola que nos estranha, e nos faz descer do alto dos nossos pensamentos longínquos; mas sobretudo a imensa saudade que já se traz ao chegar.

Enquanto uns sentem a imprevisibilidade da chegada, outros culminam na alegria da partida para o regresso. Sim, porque só voltamos ao sítio de onde somos, e pertencemos a aqueles que nos querem.

Nos entre tantos, a vida escorre pela ampulheta com uma constância que não acelera, nem com um simples abano; umas vezes custando a passar, e outras sendo empurrada como a surpresa dum veloz alazão.

Os movimentos são constantes, a todas as horas e minutos, em boas e más alturas, e por fluxos de homens e mulheres robotizados, equipados e armados, vergados pelo peso do cansaço da viagem, ou quiçá do fardo que lhes pesa na consciência. Enquanto esperamos pela hora da saída que por ora tarda, ocupámo-nos em ocupar o tempo que muitas das vezes nos sobra, imaginando que memórias teriam trazido nas suas bagagens.

Os sorrisos sinceros dos filhos, os consolos e beijos das mulheres, as lágrimas das namoradas, os acenos dos pais, o sexto sentido das mães e os abraços dos irmãos. Podíamos imaginar que uns seriam engenheiros, doutores, mecânicos, calceteiros de chão firme, ou ainda músicos ou bailarinos, mas aquelas personagens têm outra vida paralela e misteriosa, que nunca ninguém irá descobrir. Vêm, guerreiam, convivem para sobreviver, e regressam com mais conteúdo na alma. Ou quiçá com mais buracos ainda por preencher.

Esta é uma verdadeira torre de Babel, onde chegam, partem, ficam, e persistem centenas de pequenas e grandes almas que resistem uniformizadas, sendo uma pequeníssima peça da solução que parece muitas vezes uma miragem. Do norte ou do sul, do frio ou do quente, do moderno e do antigo, são oriundos de todos os confins da terra, e de sítios em que o mundo não tem fim, para finalmente se aperceberem que a finitude muitas vezes é aqui.

Botas engraxadas, atavio regulamentar, galões aos ombros e pistola à cintura, contrastam com os que voltam de missões no exterior. O capacete, o colete, a metralhadora de cartuchos vazios, a fadiga do peso insustentável, e o pó entranhado nos seus absortos pensamentos de mais aquele dia, envolvem-nos com soturnas auréolas denunciando pesados combates. É um extenso submundo invulgar.

As guerras assimétricas, ou se resolvem num ápice, ou se adiam por sucessivos prolongamentos, e esta é com certeza das segundas. Nenhuma teoria do fole resiste a estas manobras de combate, com bombas suicidas, atentados indiscriminados, política de medo e insegurança, acenos de falsas bandeiras de moralidade, e sobretudo pelo desrespeito pela verdadeira verdade humana. Mas também há que contextualizar o sistema, a época, a cultura, e acima de tudo a condição humana local na sua essência.

Pode ser que haja esperança, pode ser que as balas se enterrem de vez, pode ser que as bombas se extingam na paz, pode ser que tudo se possa, mas que pelo menos, estes meninos sintam uma nova pátria.

Eu pelo menos vou cumprindo a minha parte...



sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Eleições no Mercado

A campanha tinha começado às zero horas em ponto, do último dia da Primavera, no Mercado de Corroios. O candidato mais bem posicionado à vitória nestas eleições históricas, tinha sido assassinado na bancada da cozinha de um restaurante elitista (ou etílista, conforme a perspectiva alcoólica...), dos arredores de Lisboa. Foi o maior Repolho da sua espécie nos últimos 50 anos, e chamavam-lhe o “Fenómeno do Entroncamento”, sendo um dos fundadores da Associação de Vegetais e Afins da zona Centro, liderando e fortificando um grande e poderoso lobby no comércio das saladas, sopas e gaspachos.

Eram memoráveis os comícios desta referência histórica no mundo dos vegetais. Falava sobre os problemas da reforma agrária, na lavoura, na desinfestação, na apanha e no transporte, no risco da invasão dos repolhos espanhóis, incitando à criação de um exército de barbas de milho nas fronteiras das plantações, com o objectivo de defender as linhas de cultivo e procriação vegetal, dos ferozes gafanhotos marroquinos. Os seus dotes de oratória política eram conhecidos por todo o mundo, recebendo líderes de outras associações e sindicatos vegetais de renome, como a Couve-de-Bruxelas, o Alho Francês, a Mandioca do Pára, o Tomate Inglês, a Baunilha de Madagáscar, e até representantes do grupo de apoio aos vegetais reclusos nos clepes chineses. Como bom diplomata e relações públicas que era, piscava sempre um olho às outras associações que simbolizavam nichos de mercado em expansão, como o Clube Incrementador das Algas e o grupo extremista “Os Vegetarianos Predestinados”.

A sua morte foi envolta em mistério, mas dizem que após o falecimento, o restaurante organizou uma semana gastronómica, onde se serviram oito dias consecutivos da melhor sopa de repolho e bacalhau no forno de que há memória. Tinha 63 anos de idade, um filho menor de apelido “Repolhão”, e deixou viúva a Batata-Doce, que prontamente se viu assediada pelo Pau de Cabinda.

Apesar disso o processo eleitoral não parou, e nessa altura perfilaram-se dois candidatos possíveis á vitória, que representavam dois grandes grupos no Parlamento da roda dos alimentos: O Tomate do Partido dos Vegetais Unidos, e o Kiwi da União Crescente dos Frutinha.
O primeiro tinha um passado sofrido, sendo um veterano da resistência às fábricas de ketchup na Azambuja, e assistindo à morte de milhares de camaradas, ou esborrachados pelos pneus dos camiões, ou torturados...perdão, triturados e cortados pelas finas lâminas da multinacional estrangeira. Era um socialista de princípios, mas um extremista nas acções de combate político, não olhando a meios nem a recursos para dizimar o adversário. Conta-se que certa vez até contratou umas Anonas assassinas para secretamente aniquilarem o seu mais directo opositor, a Melancia sem pevides.

A União Crescente dos Frutinha, por seu lado, tinha tido a maior ascensão como poderio sectário, na altura dos programas de saúde, onde se recomendava sempre uma peça de fruta a cada refeição, para uma boa e equilibrada alimentação. Houve inclusive o conluio de associações estrangeiras como a Inglesa, que lançaram slogans de campanha como: “one apple a day, keeps the doctor away!”. Na tomada de posse do Kiwi, houve muitas reservas quanto à sua capacidade de liderança, ao seu factor novidade nas saladas de frutas, e sobretudo às suas origens longínquas e antípodas das nossas. Era sempre visto como um emigrante de segunda geração, e ainda por cima nunca desfazia a barba!

A sua corrente ideológica estava mais na linha sindicalista e reivindicativa, com modelos como Lula, Wallesa e Torres Couto, mas ao mesmo tempo unificadora e propulsora das economias de mercado em grande escala, sendo um acérrimo defensor das fruticulturas como cerne de desenvolvimento do país. É verdade que se tivermos uma boa fruta, o crescimento acontece!

O debate derradeiro ocorreu no próprio mercado, onde as bancadas de fruta se acotovelavam com as bancadas da hortaliça e afins, enquanto o peixe e a carne ficavam às moscas. Afirmações provocatórias como “sua cabeça de alho chocho”; “és um ganda nabo”; “a juliana não abana”; e “a beterraba é comuna”, eram prontamente rebatidas com graciosidades da mesma ordem e calibre, do grupo do Tomate: “seu cabeça de melão”, “vou-te á fruta”, “ó ananás vais levar por trás”, “abaixo a macedónia”, e o clássico: “levas um banano, que nem sabes de que terra és...”

Nesse dia o clima estava tenso, o ar estava gordo, e o frigorífico mantinha as alfaces frescas. Mas os candidatos não se pouparam a esforços para digladiarem os seus projectos de intenções, as suas propostas eleitorais diversas, e até houve espaço para o leilão de uma couve roxa albina, uma verdadeira pérola da lavoura. Os especialistas dizem que houve um empate técnico, os comentadores não arriscam comentar, e a Dona Celeste da mercearia diz que os devíamos papar a todos!

Dois dias depois das eleições, e depois da contagem de votos em papel vegetal, o vencedor foi anunciado com surpresa pelo conselho de veteranos da ramagem, o Sr.Galho, com a devida pompa e circunstância:

- Tenho a anunciar meus senhores e minhas senhoras, que o comité regional de eleições suburbanas, segundo as regras da teoria do fole aplicadas à searinha da Camacha, declara como vencedor destas disputadas, ferozes, rasmenatadas e proscíbulas eleições...........a mui ilustre e saborosa Banana da Madeira!!!!!!!!!

domingo, 13 de setembro de 2009

Manicómio

De todos os sítios que me lembro com a perfeição que gosto, o manicómio é um deles. Arrumava-se o carro à porta, num pequeno largo que dava acesso à fachada de uma casa que nem parecia aquilo que era. A entrada parecia a de uma casa normal, adaptada à instituição, com quartos e salinhas transformadas em gabinetes e salas de reunião para psicoterapia. Os anexos eram muito maiores, e construídos posteriormente em edifícios contíguos com a traça madeirense antiga, centralizando-se o coração nuns belos jardins cuidados, que atenuavam o fardo das mentes que nele deambulavam.

O meu pai dava consulta dos olhos, todos os sábados de manhã, assistido pela Irmã Almerinda, uma verdadeira máquina a dominar as malucas mais malucas. De uma devoção extrema por Jesus e pelo meu pai, tinha sido de facto abençoada naquilo que fazia, e a sua vida de missionária cumpria-se nestas entregas de saúde e sobretudo de afectos.

Havia de tudo ali; a jovem que ouvia vozes do além; a mulher que insistia em lavar os joelhos 52 vezes por dia; a idosa que em mutismo se abanava em oscilantes desempenhos; a esposa desprezada que numa tristeza maior se tentou acabar por um penhasco abaixo; e até uma maníaca recitava Camões e Pessoa, na perspectiva teológica da teoria do fole, aos pombos que por ali depenicavam.

A ordem de grandeza da loucura, era inversamente proporcional à alocação das insanas, sendo que as malucas violentas estavam encarceradas em salas almofadadas, as “assim-assim” tinham umas horas de liberdade no jardim, as desvairadas inúteis estavam alheias deste mundo e fechadas no seu país das maravilhas, enquanto as lúcidas desmioladas ajudavam na lide diária das freiras.

Certa vez, uma das jovens perguntou ao Sr.Dr. se queria que lhe lavasse o carro de estimação enquanto dava consulta. Erro crasso nesta colaboração, foi assumir que tudo iria correr bem...Ao voltar da consulta, a “Agostinha dos berlindes” lavava com toda a alegria o automóvel do Sr.Dr. com leite de vaca gordo! O velhinho mas reluzente Toyota, teve de apanhar com duas enceradelas para recuperar o sorriso dental...

A nossa visita da praxe era feita por alturas do Natal, e se por um lado eu adorava a recepção das freiras, que preparavam um verdadeiro banquete de bolos, bolinhos e docinhos conventuais; por outro, as personagens que por ali vagueavam ou nos abordavam, causavam-me um medo irracional. Malucas a agarrarem os braços e puxarem com sorrisos desvairados, um miúdo de 10 anos, não era o ideal de tranquilidade. Se me dissessem que aos 18 anos umas malucas me agarrariam e puxariam, creio que iria sonhar com essa miragem, mas ali com certeza que não, e com aquelas malucas, só doido...

Costumávamos fazer a ronda da visita aos vários presépios e lapinhas espalhados pela instituição, não havendo ali lugar para a pagã árvore de Natal. O Menino Jesus tinha sempre lugar de destaque, rodeando-o uma decoração kitch e mensagens de boa-nova, escritas em folhas de papel pintadas com lápis de cor. Nas diferentes salas de convívio singular, as jarras estavam todas enfeitadas com arranjos de antúrios, estrelícias, sapatinhos e orquídeas, trazendo um pouco de vida aos espaços, contrastando com as cinzentas massas cerebrais torradas pelos infortúnios e pela loucura natural daqueles seres.

À aparente normalidade do ambiente, opunha-se o défice de sanidade mental presente, pelo que entrar nesses sítios muitas vezes era como penetrar numa dimensão irreal, em que a deslocação do nosso eu, se alheava do corpo para poder observar de longe tal amálgama de pensamentos dessincronizados.

Todos os anos pela mesma altura, pensava no quão nobre era a missão destas freiras, na devoção, na entrega simples, dedicada e de abnegação na troca, mas também me questionava se algumas daquelas diferenças mentais não teria a sua lucidez própria, o seu mundo particular que por vezes não entendêssemos e que devêssemos cuidar de forma diferente.

Costuma dizer o povo, que "de doutor e de louco todos temos um pouco". Felizmente que de ambos tenho bastante...

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Globalização

Aqui há uns anos, pouco depois do lançamento do álbum da Estudantina “Vivá Paródia”, fomos tocar à Rádio Renascença. O programa era em directo e difundido para todo o mundo, sendo que as comunidades portuguesas espalhadas por aí, tinham uma grande participação. Receber chamadas telefónicas da França, Luxemburgo ou até da Suíça não foi surpresa para nós. Agora, receber pedidos de músicas específicas do álbum, desde a longínqua Austrália, foi uma agradável surpresa!

Não sei se esta coisa que tanto o pessoal fala acerca da globalização, já não foi inventada há uns séculos atrás com o início das migrações. Se formos a ver os flamingos já fazem isso há muito tempo, ou seja o inverno no quentinho do sul, e o verão com as temperaturas amenas do norte. Se calhar os bichos descobriram os encantos das louras suecas antes que nós...

Mas provavelmente a globalização é um termo demasiado grosseiro para aquilo que se quer definir, e ao contrário daquilo que poderia parecer, um pouco limitado e contingente. No fundo, se pensarmos numa bola, esta por si só já nos delimita um espaço, uma ideia, um conteúdo que fica retido e preso pelas costuras do redondo esférico.

A imagem do universal é mais adequada, mais abrangente, menos limitativa e mais “openminded” para aquilo que se quer expressar.
Mas estou eu para aqui a falar das limitações do raio da pelota, quando a verdadeira virtude é a da uniformização e continuidade da sua única face. De qualquer perspectiva ocular se consegue adivinhar o mesmo prisma de pensamento, de qualquer ângulo se adivinha a mesma curvinha com igual secante e tangente, mas sobretudo quando ela rola, rola sempre para o mesmo lado, e em linha recta!

Tudo o que é pensamento, acto e até omissão, tanto se torna verdadeiro e sacramental para o aborígene australiano, como para o emigrante madeirense na ilha de Jersey. Por ora, e nos tempos que correm, talvez o koala aprenda a beber poncha com sabor a eucalipto, mas no futuro tenho a certeza que será tão natural enfrascar-se com aguardente de cana em Sydney, como fazer concursos de lançamento de bosta de camelo, como fazem nas caledónias, ao fresco clima da Camacha.

A partilha de informação, a troca de cartas e baralho, a volta e contravolta de um mero pensamento, pode fazer com que essa verdade simples e simplista possa ser aceite por um mundo novo, espraiando-se pela bola como chocolate derretido. Se tivermos um bom protocolo de actuação, podemos em teoria replicá-lo até a canseira nos permitir, aqui, ou em qualquer lugar do planeta.

E serão à primeira vista vantagens os modelos adoptados pela via da moda, do marketing ou do simples apego humano por aquilo que é apelativo mas sem consistência? É a globalização mais pela forma que pelo conteúdo?
A implementação mundial do Macdonalds, tem uma base de sucesso na homogeneidade da fórmula; onde quer que se vá, o hambúrguer tem sempre o mesmo sabor, a mesma apresentação, os mesmos molhos, o mesmo logótipo, a mesma solução rápida e prática de “serve-te, embucha, e põe-te a andar”. Em Cabo Verde por exemplo, poderíamos confiar naquela imagem e naquela confecção, mas o surgimento de uma xafarica destas, tem duas vertentes perniciosas a prever: primeiro, a de que os indígenas deixariam de se alimentar da sua dieta local eventualmente mais saudável que a dos gringos, e segundo, que os viajantes deixariam de ter o efeito surpresa da descoberta de novos sabores. Pode nessa altura surgir um híbrido: o McCachupa! E se for muito bom, a empresa pode fotocopiar o modelo e aplicá-lo aos chineses.
Perigos: se todos desatarem a comer estas bombas calóricas em vez da soja e do arroz, a vaca charolesa pode entrar em vias de extinção!

O mundo tende assim a ser uno e compartido à distância, sem revelações, sem surpresas, sem paixões, sem os antagónicos anacronismos da real subtileza da teoria do fole. As referências passam a ser universais, com o perigo de serem ultrapassadas e desconsideradas; as riquezas de cultura de matéria única, algumas com especificidades brilhantes, são capazes de ruir a um mero Mcnugget.

E tudo isto acontece, porque a pressão mundana de uma foto de revista que dá a volta ao mundo em trinta segundos, é maior que um pressuposto básico e centenário de uma cultura relacional de gerações.

Será que nesta homeostasia de conteúdos perfeitos e imperfeitos, na estabilização de extremos possivelmente coadjuvantes ou semelhantes, ou até na intersecção de relacionamentos incomuns e aberrantes, nasce a luzidia e expontânea mistura explosiva de uma nova criação de mais-valia universal?

Não sei...mas para mim nada se compara com uma espetada acompanhada de milho frito, à mesa da Pastelaria Santo António do Estreito!

E que ninguém a globalize se faz favor...!

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

"O Zé do Circo"

Sempre que saia de casa levava duas chaves, para o caso de se esquecer de uma no regresso. Morava na rua por detrás do castelo, num primeiro andar de um prédio antigo, fazendo porta com porta à farmácia do Sr. Arlindo, que vendia unguentos, banha da cobra e supositórios para o elefante do circo Marcellena.

Ao passar a ombreira da porta, fazia como os jogadores da bola, ajoelhando-se sobre a calçada e fazendo o sinal da cruz com um beijo no fim. Passava pela botica atirando a velha piada para o interior: “Bom dia Sr. Arlindo, então já o promoveram a comprimido?” E lá fugia ele saudando as jovens moçoilas dependuradas nos beirais, que vigiavam os maganos passeantes e lhes tiravam as medidas pelos contornos.

A véspera tinha-lhe corrido de feição, e a conquista da noite tinha sido uma sueca que conheceu numa loja de venda de galos de barcelos em porcelana. Naquele momento tinha feito um brilharete, ao lhe sugerir que os galitos fossem substituídos pela vaca cornélia, uma vez que as marcas russas já tinham contratado os pintainhos do vale da pinta, para mugirem em coro à passagem do tufão Heloísa.

Almoçaram na tasca do Humberto, que é primo da Celeste da mercearia e cunhado do boticas que lixa o elefante, tendo ido passear para o quinto monte a contar da primeira laranjeira do Sr.João. Ali, os ares não eram calorosos nem baforentos, mas a sueca habituada apenas a tiritar de frio com temperaturas inferiores a 20 graus, quis ficar como veio ao mundo, enquanto Zé só lhe dava tempo a ficar ridiculamente com as calças pelos tornozelos, ao mesmo tempo que corria com passinhos de pinguim acelerado.
Um tubérculo de couves australianas que brotava do chão, foi a lomba assassina para o coitado do Zé, que já tinha batido o recorde do pinguim mor do pólo sul.
Um piparote no ar, meio mortal encarpado à frente, e um belo dum bate-cu esfolando o dito cujo, assentando os respectivos berlindes no único tufo de urtigas num raio de 203 metros! A confusão aumentou ao tentar explicar no seu eslavo mais puro, que tinha “los tomates de fuego”, tendo a sueca percebido “too much fuego”, pelo que ainda mais enalteceu a sua índole de mulher viagrana.

Como a tumefacção local não passava devido ao efeito do tufo, foram até ao centro de saúde da Ramada, onde a primeira pergunta da enfermeira robusta e com buço, foi a de se tinha o cartão de utente: “Sem cartão ninguém é aviado aqui!”.

O médico, que também era primo afastado da cunhada do padrinho do Zé, examinou os ditos como quem apalpa peras maduras no mercado, e até parece que lhes media o peso com as mãos, enquanto mirava a alva sueca e a imaginava a aplicar certeiramente a teoria do fole nessa situação.
Diagnóstico peremptório: edema bilateral do escroto!

- “Ai, meu Deus! (se é que Deus é para aqui chamado nestas coisas mundanas e impuras..); E isso é grave doutor!?”
- “Nãaaao!” Tranquilizou-o, ao mesmo tempo que com um gesto o mandava compor.
- “Isso com uns remédios desincha logo.” “Mas já sabe...”e aproximou-se-lhe ao ouvido em surdina: “o batalhão de apoio à bazuca vai ter de descansar estes dias...”

À saída cumprimentaram a matrafona da enfermeira, que ouvia a telenovela na rádio por detrás do balcão, tendo esta logo ripostado:
- “Que não se lhe olvide de me trazer o cartão, senão frito-lhe os ditos!”

Que vida a de um homem...ontem capaz e agora quase capado!

Depois de deixar a nórdica na finíssima pensão “Três estrelas”, subiu a rua pela sombra, em marcha lenta devido ao volume dos contrapesos, com as pernas escanchadas para que o ar lhe circulasse nos entremeios, tendo entrado pesaroso na farmácia sussurrando em decrescendo:

- “Sr.Arlindo, arranje-me aí um quarto do supositório do elefante se faz favor...”

E pronto! Ainda hoje o grande Zé é conhecido como o “Zé do Circo”...

sábado, 22 de agosto de 2009

Clube Sport Marítimo


“Lá vem, lá vem, os nossos maravilhas,
Os endiabrados, Campeões das ilhas,
Não há, não há, não há outro igual
Como o Marítimo, o mais popular...”


Esta marchinha popular, cantada pela esfusiante cançonetista Laura Alves, apenas a tenho num velhinho vinil de 45 rotações, que já não consegue ocupar espaço no vanguardista ipod.
A bem dizer da verdade, nunca percebi muito de táctica de jogo, de saber os nomes dos jogadores de cor, o ano, mês, dia e hora em que o Checa marcou o golo ao Farruca, e muito menos acompanhar os treinos da equipa de juniores.

Desde as reminiscências do meu avô que não cheguei a conhecer, e em cujo cartão de sócio muito antigo, se destaca uma participação como secretário do clube, até ao fanatismo do meu pai, que deixou de ir ao estádio porque sofria a bem sofrer com o jogo, é natural que a minha existência se fosse alimentando das vitórias do clube do campo da barca. Era o clube do povo!

Quando o meu irmão tinha 13 ou 14 anos e era dotado para o jogo da bola, o Nacional apresentou uma proposta para lhe fazer um contrato “à séria”, mas assim que o mostraram ao meu pai, resposta imediata:
-“Não senhor! Ou é pró Marítimo, ou nã vai para lado nenhum!” Ah ganda papá!

Na altura, o meu pai não cobrava a consulta aos padres, freiras, pessoal da Ribeira Brava, doentes que achasse sem posses, e claro está...aos jogadores do Marítimo.

Lembro-me de aos domingos à tarde, me deitar na sua cama, no quarto cheirando a uma doce mistura de tabaco e perfume, já acordado da sua sesta, a ouvir o relato do Posto Emissor do Funchal, maldizendo os adversários e o árbitro, ao mesmo tempo que sofria com as ofensivas contrárias. Se o Marítimo perdia, rezondava os jogadores para o alto: “Estes gajos nã prestam pa nada! nãm correm à bola! parece que nãm têm garra! estes brasilheiros são moles”, quase que rasgando o cartão e dizendo que nunca mais pagava as quotas.

Tudo não passavam de ameaças e descompressões, e a prova de fidelidade materializou-se, quando recebeu a medalha de ouro do clube...50 anos de sócio (pagante...).

Uma herança destas não se discute. Recebe-se, honra-se e transmite-se. O Francisquinho já é sócio desde que nasceu!

Os jogos e o ambiente no estádio dos Barreiros eram empolgantes, começando sempre com a charanga do nobre hino do Marítimo, enquanto um homem dava uma volta completa ao campo com uma cruz de alecrim de dois metros a fumegar, afugentando o mau olhado à equipa. Eu gostava mais de ir para o peão do que para a central, ficando de pé, ao lado dos pescadores e bêbados locais, e fartando de me rir com as “bocas” que mandavam durante o jogo, num típico sotaque madeirense cerrado: “Vái Calistre! Infilhitra-te e cruza pó sarrame!”

É difícil ao longo de toda a infância e adolescência, resistir à paixão de um clube que serve de bandeira mais do que a própria região. Desde a brilhante conquista do Campeonato de Portugal em 1926, com uma equipa de rudes estivadores e pescadores que se bateram contra os Belenenses da metrópole, à célebre digressão em África nos anos 50, e até as participações na Taça UEFA, o nosso Marítimo tem umas cores e uma alma que me faz esquecer qualquer outro clube com maior palmarés.

“...Com o faúlhar das suas vitórias, com a simpatia da sua correcção, e com a espontânea e inalterável alegria, os atletas do Marítimo fizeram, ao sul do Equador, a melhor e a mais sadia propaganda da Madeira. Tornaram-na mais conhecida e adorada, e mais fizeram crescer na Metrópole, o prestígio do futebol insular. (...) Mais do que o futebol – repetimos – é a Madeira que está em causa. Palmas, flores, músicas e hinos em coro, esperam o Marítimo no seu regresso ao doce Lar Madeirense. (...) Benvindo seja o Marítimo, e glória aos seus triunfos...”

Costumam perguntar-me amiúde, que dos “grandes”, qual é o meu clube.
Respondo sempre que “dos grandes...sou só do Marítimo!”
“Com Orgulho! E Altivez!”

Legenda da foto:

De pé: Abel Gomes(suplente),Silvestre Rodrigues, Francisco Vasconcelos,João Pimenta.José Rodrigues(Barrinhas),João Mota e Albin Yud.Sentados: Francisco Vieira,António Castro,Cornélio da Silva,Luís Gouveia e José de Sousa.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O jogo da Cabra e o Ginjabol


Um dos desportos nacionais no Afeganistão é o Buzkashi. Trata-se de um jogo centenário, que consiste basicamente num percurso feito pelos jogadores a cavalo, entre dois postes colocados nos extremos dum campo, que disputam uma cabra entre si. A equipa de um lado tem de levar a cabra até ao campo do adversário, dar a volta ao poste oposto e regressar à base sem sofrer perdas de “bola”. Chegando a estar com 50 cavaleiros em simultâneo no terreno, a particularidade do jogo é a “bola” ser uma cabra. Cortam as patas e a cabeça à desgraçada, removem-lhe as entranhas, enchem-na de areia, cosem-na, e fica assim a marinar de um dia para o outro. No dia seguinte vai directa para o campo de jogo.

Os jogos podem durar dias, e são muito violentos, sendo que os cavaleiros usam roupas muito pesadas e protecções para a cabeça, evitando os golpes de chicote e botas dos adversários. Inclusive já recebemos no hospital, um jogador com as costelas todas partidas...
Mas a população ficou realmente atónita, quando lhes contei que uma organização a sério, é aquela que surge em torno de uma partida de Ginjabol!
Passo a explicar!

No próprio dia do jogo, as forças policiais habitulmente dispõem-se em bloco, em torno das roulottes mais importantes, para permitir a entrada de uma forma ordeira e sóbria no recinto. À polícia montada está reservado o show erótico, que antigamente era perpetrado pelas manas Romanov e sua caniche da Tasmânia. Toda a festa se monta em redor da praça de touros onde decorre a partida.

Quando os bravos machos jogadores da selecção entram em campo, com os seus ursinhos de peluche, robe, pijama e rolos no cabelo, são entusiasticamente recebidos com serpentinas de papel higiénico, balões de sebo de girafa, algálias de longa duração, e exfoliantes de casca de tremoço das raras quintas capitalistas e feudais de Corroios.
Este jogo desenrola-se por tradição, numa arena circular com três orifícios na zona central, com cerca de 8 cm de diâmetro, e cada equipa é constituída por 7 elementos que rotativamente aplicam a sua jogada. Em cada uma destas jogadas se bebe uma ginjinha, seguida de um lançamento do respectivo caroço a partir de vários círculos a diferentes distâncias dos tais orifícios centrais. Os círculos mais distantes dos orifícios centrais dão uma maior pontuação, pelo que essas apostas são habitualmente utilizadas pelos jogadores com maior capacidade de sopro, e em alturas onde se pretendem recuperações de desvantagens no marcador.
Há no entanto várias técnicas de arremesso do caroço: uns enchem o peito de ar e cospem com precisão militar o caroço, outros lançam o caroço na vertical e de seguida chutam-no, e outros há ainda, que tapam uma narina e fecham a boca, arremessando o míni esférico pela narina oposta. Nestas ocasiões o caroço é envolvido por um ranho verde e viscoso que permite uma aterragem com maior acerto, pois o atrito é maior.
Em extremos diametralmente opostos da arena, coloca-se a equipa técnica de cada uma das selecções, com toda a parafernália necessária ao decorrer do jogo. Uma vez que este se pode prolongar durante horas, a máquina de imperiais é essencial para que se mantenha uma boa hidratação dos jogadores, enquanto o tradicional banco de suplentes é substituído por mesas corridas onde abundam os leitões assados, javalis no espeto, codornizes de Albufeira, saladas de frutas, e chamuças gigantes. O grupo de assistência técnica é formado por massagistas faciais, ensaiadores de sopro, psicólogos de sábado, quiromantes, cartomantes e especialistas de decoração Feng-Shui.
Neste tipo de provas, a equipa fixa de arbitragem é habitualmente constituída por dez elementos, uma vez que têm um grande desgaste. No lançamento de cada uma das equipas, o árbitro principal brinda, e ingere a ginja e o caroço. Os que têm um maior índice de massa corporal suportam várias jogadas seguidas, mas quando começam a andar de gatas para validar os caroços nos buracos, têm de ser rápidamente substituídos.

Nestes jogos, os míticos penáltis pertenciam ao melhor elemento da equipa da Selecção, conhecido como o “Versus”, que desempenhava os chamados penáltis invertidos, com consequente cambalhota e arremesso da pevide ao buraco. Um portentoso jogador era também o “Gasgas”, que de tão rápido que era a engolir a ginja, por vezes até engolia o caroço. Outra verdadeira lenda do Ginjabol, era o “Muf”. Uma pontaria certeira, umas trajectórias elípticas, o maior número de jogadas seguidas sem cair em campo! Tornou-se uma verdadeira imagem de marca, ter sempre o bacalhau assado e a máquina de imperiais por sua conta...
Mas estes torneios, tinham a vantagem de ser um motor impulsionador da economia local, pois a sua preparação durava dias, e o jogo propriamente dito era capaz de prolongar-se por horas a fio. Durante todo este período de festa, eram consumidas toneladas de géneros alimentícios e milhares de milhões de hectomililitros de cerveja Bávara.
Mesmo quando se dava por terminada a disputa, que ocorria quando dois terços dos elementos de uma das equipas ia parar ao Hospital, a vitória era celebrada num qualquer bar da localidade, com uma sanfona, percussão e vários instrumentos de cordas, congratulando-se todos pela sua equipa ter aplicado certeiramente a brilhante teoria do fole durante o jogo...