terça-feira, 20 de outubro de 2009

"O Camólas"

Assim que a noite caía apagando a luz do sol, Camólas descia as escadas de madeira antiga, e abria a pesada porta que dava para uma das ruas estreitas daquele bairro cheio de vida pelo dia. Nunca encontrava ninguém nas escadas, mas provavelmente porque todos desciam à mesma velocidade que ele, pelo que nunca apanhava os da frente, e os que lhe precediam também não lhe punham a vista encima.

A doença de pele não lhe permitia receber os raios de sol desde a infância, sob o perigo de o escaldar que nem um chouriço na brasa. Não conhecia o verdadeiro vermelho forte dos carros de bombeiros, o azul brilhante do Atlântico, o amarelo da Carris, o verde da figueira do quintal, nem tão pouco o cor-de-rosa das cuecas rendilhadas da Deolinda, que secavam desfraldadas ao vento, na corda da roupa do prédio em frente, como se fossem um discreto convite para a rambóia. Apenas conhecia estas cores todas desvirtuadas, mortiças e amareladas, pela luz incandescente dos quartos, ou pelos candeeiros de rua que criavam sombras e circunscreviam espaços de claridade.

A sua pele era branquinha como uma folha de papel, e vestia sempre uma gabardine comprida verde que lhe conferia um ar até algo sinistro. Em criança chamavam-lhe o “pacote gresso”, e apenas saia à rua nos eclipses solares ou nas férias de inverno na Islândia, onde o sol estava sempre em baixo.

Aquela noite era como outra noite qualquer, de um qualquer outro dia de todos os mesmos dias. Mas o calor que se fazia sentir era como se convidasse o povo a uma festa de rua, com sardinha assada e vinho a jorro. Por isso dispensou a gabardine, vestiu os calções curtos de padrão florido, que nunca também tinham visto a luz do dia, e enconjuntou-se com uma camisa de alças amarela que tinha pertencido ao famoso ilusionista “Bambolinetti”. Nunca antes tinha tido tantas partes do corpo assim expostas, mas o calor ainda assim era insuportável.

Quando abriu a tal pesada porta da rua, o ar quente sufocou-lhe os pulmões, e obrigou-o a respirar tão fundo de olhos fechados, e com um esgar facial, que um transeunte que passava gritou antecipando o gesto: “Se me espirras encima, levas na tromba!”.

Saiu saudando toda a gente com quem se cruzava: a Rosa da padaria, o Olavo picheleiro, o mecânico Adolfo, a Micas leiteira a até mesmo o mal-amado bófia Azevedo. Todos andavam na rua a aquela hora pois já tinham fechado os seus estabelecimentos. Só a Charlene – puta de profissão – especada a trabalhar naquele horário, na esquina da Rua Samora com a Travessa da Saudade, levou com a habitual palmada no traseiro: “Ó jóia anda cá ao ourives!”, recebendo o Camólas em troca, mimos de índole diversa e não elogiosa, que visavam a maioria das vezes (e ironicamente...) a sua mãe e restante família...

Costas com costas, à casa do padre Aureliano, estava a melhor boîte do bairro, que o Camólas assiduamente frequentava até a hora do fecho, coincidindo com o desabrochar dos primeiros raios de sol.
Nessa noite quente de verão, entrou como sempre pela porta dos clientes habituais, recebendo um cartão de consumo VIP. Significava que a botelha de uísque que tinha pago na semana anterior, ainda estava na mesma prateleira dos habitué, e que a Marlene do bar lhe tinha dado umas borlas...

Nessa noite acabou com a garrafa, o abafado da gorda solteira do 32 da sua rua, a ginjinha que bebeu de penálti após os brindes do aniversário do caniche da Celeste, e ainda dois cocktails inventados segundo a teoria do fole. À medida que o álcool lhe ia empapando as células do corpo, uma a uma, a sua cabeça rodava como o carrossel da feira do Campo da Barca, não conseguindo sequer quase abrir os olhos. Depois de dançar, dançar, e dançar, como se não houvesse noite seguinte, a sonolência e o torpor começaram a invadir-lhe os comandos cerebrais, pelo que foi “convidado” a sair do estabelecimento comercial. Em primeiro pelo seu estado de embriaguez, e em segundo porque eram 6h da manhã e já só restava o caniche da Celeste amarrado ao balcão.

Assim que saiu encostou-se à parede, deixou-se escorregar e sentou-se no passeio, deixando cair a cabeça entre as pernas. Esteve ali uma hora a destilar ao sabor daquele calor da noite que lhe abria ainda mais os poros, até que os primeiros raios de sol despontaram, e lhe tocaram na pele que nunca antes tinha visto raios gama...Sempre lhe tinham dito os doutores que se o sol lhe tocasse, morreria!

Mas não! Abriu os olhos devagarinho, pôs a mão na testa para os olhos lhe sombrear, e começou a inspeccionar os braços e as pernas nus de roupa. Nada acontecia, não tinha falta de ar, não tinha dores, nem convulsões, nem brotoeja, nem bolhas lhe nasciam na pele!!!!! Estes anos todos enganado, a viver na sombra, no escuro, na fuga do astro-rei que o poderia mitigar, e afinal tudo em vão!

Levantou-se de um ápice, fez o caminho inverso para casa, abriu a tal pesada porta de casa, subiu as escadas encontrando em sentido inverso e pela primeira vez os vizinhos que nunca via, pôs a chave no destrinco, e correu a escancarar os tapassóis da varanda. Foi buscar o melhor divã que tinha, tirou a camisa, e sentou-se confortavelmente reclinado, abraçando os primeiros raios manhã, com um ar de felicidade do tamanho do sol!
Camólas estava curado...!!!

domingo, 11 de outubro de 2009

As Palavras

Dizem que a matemática é o mais próximo que há de Deus, pois os números são artefactos engenhosos, criados pelo homem e para o homem, sem nunca existirem na natureza. Todas as fórmulas, se adicionam, subtraem e multiplicam em complexos arranjos que justificam a ordem das coisas. E tudo isto se torna mais fantástico e esotérico , quando nos apercebemos que os números não existem mesmo, são imaginários, são uma ilusão que nos tenta contingenciar pela ordem, o nosso mundo macro e microscópico.
Os números são omissos na existência da natureza criada por Deus, não são palpáveis. Nem o “3”, nem o “6”, nem sequer o “623”, o que existe sim, são três árvores, seis peixes, seiscentos e vinte e três pães, mas o número em si não cabe na Criação.
E se a matemática é assim, o que serão das palavras! As palavras que nos aproximam e que nos afastam das pessoas, que são tantas vezes causa de equívocos e zangas, mas também reconciliação, reconhecimento e afecto. Se todas têm um significado diferente, como poderemos baralhá-las para que se nos discorra o pensamento pela lógica dos sons e da sua articulação? Do centro da linguagem, numa qualquer área cinzenta, saem os comandos obedecidos pela emoção, que forçam a complexa musculatura a emitir aquilo que nos vai num sítio todavia mais misterioso: a Alma!

Uns falam e discorrem sem nunca nada dizer, outros usam as palavras para se ouvirem a si próprios, outros há que as poupam e logo as atiram de forma rude, emudecendo muitas vezes quem os ouve. Mas sobretudo não há que mal gastá-las com aqueles que não as merecem, ou que delas se apropriam e as usam como se de um eco se tratasse.
Cada uma representa um pensamento e uma ideia única, que não pode ser replicada nem abusada, sob o perigo de desvirtuarmos a fábrica de sonhos do seu autor: o pensamento. Sempre adorei ouvir, escutar, absorver todas as histórias e estórias que se contam nas reuniões familiares e de amigos. Parte da nossa sabedoria é feita de bocados dos outros...
Para falar não é preciso muito, mas para saber fazer-se entender, demonstrar aquilo que se pretende, exige um talento muitas vezes natural e intrínseco, sempre ao sabor dos ventos da gramática. Admiro imenso os artistas da escrita, porque colocam as palavras mudas num arranjo aparentemente irracional, ganhando a força certa com a cadência da leitura. A maneira como conseguem juntar as letras em palavras, e estas em frases, muitas vezes fazem-me ler a mesma frase duas e três vezes, amiúde na tentativa vã dela me apropriar, mas a maioria das vezes apenas pelo simplório prazer de me voltar a espantar com aquela conjugação! Quantas teorias do fole não se teriam espraiado pelas penas da escrita?
De qualquer das maneiras aprecio muito mais os quedos mudos espaços entre as palavras, ou aquelas palavras que se dizem em silêncio, em olhares, gestos simples ou sorrisos francos. O prazer do silêncio é muito maior do que qualquer retórica adjectiva, é inato e carece de explicação. É puro, simples e sereno.
Haverá algo melhor do que apreciar uma paisagem estonteante em silêncio, degustar um bom vinho no silêncio da noite, ou até mesmo sentar-se numa esplanada num dia de verão a ouvir o barulho da azáfama diária, em silêncio..?
Não devemos gastar as palavras com coisas inúteis, não as devemos cansar, não as devemos incomodar com esta mania de lhes delapidar o sentido quando as evocamos repetidamente e em vão. Um silêncio cúmplice ou um silêncio contemplativo, são um bem precioso que devemos saber apreciar e ao mesmo tempo saber partilhar.
Palavras para quê...?
Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer”
MST in “No teu deserto”

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O cangalheiro

Sempre que alguém se fina, lá vem aquela pergunta sacramental: “Então e agora Sr.Dr., o que é que eu tenho de fazer...?”. A resposta também é sempre a mesma: “Não se preocupe, que a agência funerária trata de tudo, agora só precisa ir descansar”. E realmente este é o único malabarismo a fazer, porque a logística é por vezes complexa e deve ser deixada nas mão de quem sabe. Para além disso, e infelizmente, aos próximos não lhes resta pinga de disposição para sequer pensar em como será a urna...

As funerárias são sempre agentes comerciais míticos e fazem parte do subconsciente de qualquer...mortal. Todos iremos lá ter cabimento! Dizem que quando se passa por um carro funerário, nos devemos agachar para que não nos tirem as medidas! E o melhor é mesmo não arriscar, pelo que recomendo que se encolham sempre que os ultrapassarem ou quando tiverem a má fortuna de se cruzarem com um.

As agências funerárias são um bem precioso à humanidade, porque tratam de uma questão de saúde pública, evitam o espalhanço de doenças, e principalmente ocupam-se de uma logística que muitas vezes é dolorosa aos elos próximos.

Geralmente este é um negócio de herança familiar, com todo um saber e conhecimento transmitidos por gerações, e muitas vezes proporcional aos originais nomes comerciais estampados em arco nas montras: “Agência Funerária Irmãos Cadência”; “Agência Funerária Cá Te Espero Pereira”; “Agência Funerária Caixão D´Oiro”, ou até a mais singela “Agência Funerária Levita”, e mesmo a espanhola “Agência Funerária En-Terra”. A maioria deste negócio concentra-se nas imediações dos hospitais, com pequenas lojas, montras pejadas de santos e santas milagreiras, reclames sóbrios, e frases apelativas do tipo: “Descontos ao par”; “Fazemos leasing e abatemos no IRS”; “Tudo incluído, excepto o finado”; e mesmo a vanguardista no conceito “A trabalhar a terra desde 1921...”.

Eu até acho que quem devia comandar os destinos deste país eram os cangalheiros. São um exemplo de organização, de respeito pelo próximo, de apresentação, educação e sobriedade, que tanto agradecemos naquelas circunstâncias. O cangalheiro é amigo, compincha e solícito. Ajuda o cliente a escolher a madeira exótica do caixão, dá a opção de caixão tuning, caixão barbie, caixão caneca, ou até mini-caixotinhos com divisórias e gavetinhas para a guarda dos seus pertences.

Podemos também afirmar, que a língua portuguesa não foi muito generosa na adequação da gramática e fonética aos cangalheiros. Todos sabemos que o calceteiro calceta, o advogado advoga, o condutor conduz, e o massagista massaja. Imaginando, por exemplo, uma reunião de indivíduos num curso de computador sobre a perspectiva do utilizador, onde todos se apresentam, confabulámos a resposta do cangalheiro: “Boa tarde, o meu nome é Alfredo, tenho 32 anos, venho de corroios, como chouriços, e Cangalho”. Para além disso, se lhe deixarmos cair a letra “n”, fica “cagalho”, o que pode parecer um fanhoso, a feiosamente insultar o próximo, no uso de um vernáculo não muito próprio!

Aqui há uns tempos, houve o décimo segundo Congresso Internacional de Cangalheiros, realizado na Finlândia, e onde se debateram assuntos tão importantes como a introdução de música nos féretros aquando dos cortejos (inspiração baiana?), ou a realização de missas gravadas em vários dialectos africanos. A teoria do fole foi o argumento decisivo para pôr fim a esta contenda, e o Japão foi o único país a aprovar a moção, pois já possuía a tecnologia desde há vários anos.
Foi também aprovada a moção de censura à Índia, que teima em embrulhar os finados num lençol e lançá-los aos rio Ganges, e um voto de louvor a Salvador da Baía, onde se festejam os quinados, com vestes brancas e muita alegria candongueira.
Os américas, conseguiram por sua vez, ganhar o prémio inovação, pelas futuristas alterações ao tradicional papel da pequena agência funerária de bairro. Introduziram os velórios por vídeo-conferência, os caterings pré e pós-evento, a manutenção eterna da página facebook, e ainda promoções ocasionais, como a oferta de funeral completo aos familiares directos, no caso de óbito nas primeiras 24h do acontecimento.
Todos estes pressupostos malucos, servem para exorcizar o fim e dar vivas aos princípios, relativizando aquilo que é vida, e aceitando a sua contingência final com a mesma alegria despreocupada e banal.
Só um médico podia falar com esta ligeireza séria...