segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A falésia


Naquela montanha nua, o vento cortava o ar como uma fria lâmina atravessando espíritos invisíveis. Uma ou outra árvore polvilhavam a paisagem de verde, nas rochas escuras que se construíam sobrepostas em escarpas abruptas e desamparadas.

Apenas uma casa no topo se destacava pela cintilância e conforto da lareira, que exalava um fumo branco e sereno da chaminé. Lá dentro, Anne murmurava com pesadelos que variavam de intensidade, viajando nos trilhos suspensos da loucura imaginada dos sonhos. Frank dormia placidamente sobre os próprios sonhos que fraca energia lhe sugavam, virando-se devagar na cama para aliviar o peso constante nas articulações.

Ela começou a acordar antes dele, na esperança de não encontrar a realidade igual ao sonho. Passou a levantar-se ainda o sol não existia, e a esgueirar-se da cama como uma luva que se desencaixa da mão, com a viscosidade de um sabonete a fugir das mãos.

Descalça, apenas com a camisa de noite branca vestida, brilhava ao luar esmorecido, e assim permitindo que todas as corujas lhe seguissem o rasto. Deixava a porta encostada porque sabia que ia sempre voltar, mas mesmo que não voltasse, podia um viajante desguarnecido esgueirar-se e sentar-se à lareira à sua espera.
Caminhava pelo caminho inóspito sem olhar para o lado, sem se distrair, sem se entreter com a lama que lhe sujava os pés nem com o vento que lhe empurrava o cabelo para a cara. Uma teoria do fole jazia numa vala à espera de dono.

Ele ficou lá atrás, no aconchego da luva..

Parou na beira do precipício, onde o mar começava e as ondas por vezes batiam tentando subir e apanhar-lhe as pernas para a levar.
Atirou uma garrafa e viu que tempo demorava a estilhaçar-se nas rochas. Contemplou com os seus olhos verdes aquele efeito de desconstrução, e aquele impacto pulverizado em vários fragmentos de sons minúsculos.

Lançou uns talheres que caíram muito rapidamente ao mesmo tempo que davam voltas no ar, numa dança improvisada. Ficou a apreciar o tlim desvanecendo e a faísca do atrito que provocavam com as pedras grandes e imutáveis.

Primeiro olhou-se no espelho penteando a sua imagem antes de a atirar gravada na sua superfície. Demorou a cair mais tempo que os restantes objectos, talvez porque ao rodopiar no ar, reflectisse no caminho aquilo que a vida nos dá: flores, pedras, terra, céu e chão. Vertiginosamente caiu partindo-se em mil bocados estridentes, que por sua vez reflectiram mil imagens diminutas.

Não deu corda ao relógio, mas atirou-o com força para que o tempo acelerasse a queda. Despedaçou-se em parafusos, ponteiros e partes de metal que pensava não existirem, num barulho rouco de oficina de carros velhos. O tempo daquele, parou ali.

Não precisava do seu urso de peluche, que guardava desde a infância. Não era ela que o guardava, mas sim ele que lhe guardava os seus segredos. Respirou fundo, fechou os olhos e lançou-o no abismo imaginando que som faria ao estatelar-se nas rochas. Caiu de braços abertos para abraçar o mundo e quando o encontrou fez um ruído amortecido pela espuma que apenas ela conseguia ouvir.

Assim foi durante o pico da lua, em que lançava objectos e lhes tentava adivinhar o som que faziam ao esmagar-se no fundo daquela negritude que não alcançava ver, apenas ouvir. Lançava tudo aquilo exorcizando os seus medos, ou outros eus, as suas hesitações e frustrações.

Sempre tinha adivinhado o barulho de todos os objectos, como se cada um tivesse uma identidade própria e um som característico e inconfundível. Mas nunca se lançou a si própria. Não imaginava como seria o seu barulho e que ruído faria.
Fechou os olhos e imaginou a atirar-se dali como um peso morto, como uma viagem que atravessasse as nuvens ganhando velocidade na descida. Desamparada mas com uma cheia sensação de liberdade, como se a liberdade pudesse ser cheia, e medida no tempo de uma descida. Uma coisa tão lata com limites e fronteiras não existe.

Imaginava como seria o som do seu corpo a esborrachar-se contra o chão. Um som seco de carne e ossos, que espalharia sangue e talvez um suspiro exalado de dor em milésimos de segundo. Iriam os seus olhos abertos ou fechados quando se desse o impacto? Era essa a dúvida que a atormentava ...

Abriu os olhos e respirou fundo, engolindo o mundo numa golfada revigorante.
Fez o caminho inverso e empurrou a porta que deixou entreaberta. Não estava ninguém à lareira e Frank remexeu os lençóis da cama como se despegasse do sono profundo.
Foi acolhida de novo pela luva reconfortante, com o espírito mais leve, mais aberto, mais receptivo.
Assim que ele acordou, ela sorria docemente como se estivesse à espera.
Livre daquela bagagem que lhe pesava e que jazia no fundo do precipício...


Inspirado na música "Hyperballad"-Björk