segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A Coronária Voadora


É certo que o casamento formal obriga a uma clássica despedida de solteiro que cursa, na maioria dos casos, em plena desgraça física e atentado à resistência humana. Mas a despedida de solteiro mais exótica terá sido efectivamente a que passei num fim-de-semana em Estocolmo.
O noivo aí reside, e na altura decidimos se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. Isto é, agarramos em nós e aterramos de surpresa em terras suecas.
Descansem os intervenientes que não irei fazer um relato nem detalhado, nem sequer genérico das peripécias (inocentes, diga-se de passagem...), que até caberiam num volume inteiro desta teoria do fole.
 
Como tudo o que é bom acaba, o fim-de-semana fez-nos regressar num voo da Ibéria, com escala em Madrid. No aeroporto de Arlanda embarcavam cerca de 20 farrapos humanos, agastados com a jornada, mas felizes com o coração cheio de convívio e boas lembranças.
 
A classe económica ia cheia que nem um ovo, sem nunca ninguém se ter questionado o porquê da plenitude plena do ovo. Aquele ritual de fazer o check-in, tirar os líquidos, passar o controlo, revistar a bagagem, aguardar na sala de embarque, entrar um-a-um no avião, passinhos curtos no corredor, fez-me pensar o quão chipados já estamos para alguns procedimentos.
 
Dos meus compinchas, poucos foram os que não tiveram uma qualquer graça ou galanteio cavalheiresco para com as hospedeiras. Digamos que estavam numa alegre competição a ver quem sacava o sorriso mais espontâneo!
 
Malas de mão em cima, garrafas de água em baixo e capas atiradas para cima dos bancos, ajudavam na algazarra formada mas enlouqueciam o pessoal de bordo.
Tomamos de assalto os últimos lugares do avião na expectativa de cada um se encostar e tirar um sono reparador de tão noctívago fim-de-semana.
 
Cintos apertados, telemóveis em modo off, e alguns ainda a pedir rodadas de cerveja para aliviar o stress da claustrofobia, fizemo-nos à pista do aeroporto de Estocolmo seguindo em fila indiana um comboio de aviões sem carris.
Levantamos voo cerca de 30 minutos depois, comprovando que os vagões que nos antecediam erguiam-se nos céus, rumo sabe Deus com que destino.
 
Mal o sinal de apertar cintos se apagou, o cansaço deu lugar a um ímpeto de convívio e reunião, em que uns jogavam às cartas, outros pediam comida e bebida, outros metiam conversa com o par de suecas louras que abandonava o país, enquanto dois ou três dormitavam na medida do possível, e do permitido pelos restantes.
 
Levávamos cerca de uma hora de viagem e pelas apostas feitas sobrevoaríamos talvez a Alemanha da temível Merkel. Por instantes encostei a cabeça e reclinei o banco, fechando os olhos num preparativo soporífero.
De súbito uma chamada da chefe de cabina pelo intercomunicador.
-"Atención, atención por favor, se ruega la presencia de algun médico a bordo, de forma urgente en la classe ejecutiva". A voz denotava muita ansiedade e era ofegante como se algo grave se passasse na elitista "ejecutiva"... Demorei uns segundos a abrir os olhos, mas quando os abri já vários dedos apontavam para mim num coro de incentivos vociferais do resto do grupo. Mesmo que quisesse passar despercebido, seria impossível....
 
Levantei-me com calma e dirigi-me ao nariz do avião para cheirar o que lá passava. Afastei a cortina da classe executiva e dou com as hospedeiras num nível de stress e ansiedade enorme, correndo de um lado para o outro com caras de pânico estampadas no rosto.
 
Olho para o lado e vejo um homem enorme, presumivelmente nórdico, pálido, suado, ofegante, meio desfalecido, com a mão em garra sobre os botões da camisa, e num esgar de sofrimento muito grande.
Felizmente ainda falava e pude perceber que lhe doía o peito, como se os sinais clínicos não fossem evidentes o suficiente.
Pedi ao único hospedeiro que vinha a bordo, que me ajudasse a colocar o doente deitado no chão prevendo eu a possibilidade de uma massagem cardíaca iminente.
-"Mira, lo ponemos aqui en la frente".
 
Entre os dois pegamos naquele corpo pesado e meio morto, praguejando eu em português e ele em castelhano pelas hérnias lombares que nos estavam a entortar. Nunca eu me apercebera até então, da similar harmonia do vernáculo dos dois idiomas e o quão parecido éramos como povo. Se lhe tivéssemos acrescentado uns gestos figurativos, seria a comunhão perfeita entre nações. Irra, que o homem pesava mais que uma morsa..
 
De imediato e com autoridade coordenadora pedi aos meus assistentes do momento:
-"Ponle el oxígeno y passarme la maleta de emergência! Rápido!"
A chefe de cabine prontamente me trouxe uma malinha com uma cruz branca estampada e ar de kit de pensos do Toyota do meu pai. Como as aparências por vezes não iludem, assim a sacolinha desiludiu: pensos rápidos (muitos), ligaduras (poucas), álcool (não na quantidade que era ingerida lá trás), aspirina, paracetamol,  hidroxizina, nitroglicerina, e mái nada!
Bom, se o doente tivesse uma paragem era sempre bom saber que podíamos fazer compressões a 8000 m de altitude e pouco mais. Mas que raio de kit era aquele?!
 
No pressuposto óbvio de um claríssimo síndrome coronário agudo, meto-lhe uma nitroglicerina debaixo da língua e desfaço a aspirina de 1000mg, escolhendo dos trinta fragmentos obtidos o bocadinho que mais se assemelhava a um quarto do original, enquanto o doente arfava com dor.
 
O Comandante apareceu e apercebeu-se da situação, abordando-me muito calmamente e de forma muito profissional:
-"Doctor, estamos sobrevolando Zurique. Cree usted mejor desviar el avión?"
Não tive dúvidas e ripostei:
-"Si Comandante!" (Se bem que me apetecia mesmo era levantar, fazer a continência e dizer: "Si mi Capitán!", mas mantive-me ajoelhado...)
Perante a gravidade do caso e a histeria das hospedeiras que continuavam a correr de um lado para o outro sem eu perceber com que objectivo concreto, a decisão do piloto foi a de iniciar a descida.
 
Entretanto a cara do doente demonstrava um claro alívio da dor, a respiração estava mais calma e ele próprio já falava em guturejos eslavos. A coronária parecia estar a dar tréguas ao homem!
Que diferença fazem três coisas aparentemente simples...o oxigénio, a nitroglicerina e o ácido acetilsalicílico! Bom, acrescento a quarta: o médico..
 
Demoramos apenas 20 minutos na descida, e uma ambulância estava na placa esperando o transformado avião. Quando aterramos, já o doente falava, já me contava que tinha tido um enfarto do miocárdio e que uma artéria estava entupida pela cerveja, pelo tabaco e pelas comezainas. Mas sem dor, sem dificuldade respiratória e com um fácies de alívio que me confortava a mim e a todos os restantes.
 
Com a chegada dos paramédicos pude confirmar o diagnóstico electrocardiograficamente, ajudando a colocar o doente na ambulância.
O homem agarrou-me com força na mão, e olhou-me nos olhos como se estes falassem de gratidão: -"Thank you doctor! You saved my life!"
Só lhe consegui apertar a enorme mão com as minhas, e respondi - "Cuide-se.."- saindo da ambulância sem olhar para trás.
Estas são as recompensas que garantem que escolhi a profissão certa!
 
Voltei a entrar no avião e tive outra recompensa das hospedeiras, que claramente aliviadas, me presentearam com dois beijos de agradecimento cada uma. Tiraram uma cópia do meu cartão da ordem dos médicos e tive pena que uma ou outra não me tivesse pedido o número de telefone, que teria dado de bom grado…
Era o momento de descompressão e um ambiente de alegria reinava na cabine! Só faltava abrir o champanhe!
 
O pessoal da primeira classe também estava reconhecido e agradecido, alguns ainda a digerir todo o impacto da situação num silêncio reflexivo e introspectivo.
Convidaram-me a passar o resto da viagem em primeira, mas claro que optei por me reunir ao grupo agradecendo a gentileza.
 
Cruzo a cortina para a classe económica um pouco agastado, e sou prontamente brindado com uma chuva de aplausos tal e qual como um herói que liberta a aldeia do fogo inimigo. Épico!
Ainda assim, pelo canto do olho consegui vislumbrar um ou outro passageiro enfurecido porque tinha perdido uma reunião agendada, e uma ou outra família que tinha perdido o voo de ligação não sei para onde. Enfim, nunca se pode agradar a todos..
 
Assim acabou uma jornada estafante mas bem sucedida!
Desde então, sempre que viajo de avião levo umas aspirinas e uns nitromints…
Pelo sim, pelo não…
Um abraço!