segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ser Ilhéu

Podia ter vindo do Sudão, da Mauritânia, ou até da longínqua Birmânia, mas o que é certo, é que nasci no meio do Atlântico. Num punhado de terra rodeada por um imenso mar sem fim. O que à partida poderia ser por alguns considerado um azar do destino, é para mim motivo de orgulho e de honra. O sítio onde pertencemos, onde nos criamos, onde nos refugiamos sempre que algo se nos apoquenta, é o lugar de nascença. Deve ser das poucas coisas que não podemos escolher, que nos é imposto e que nos carimba como um selo de origem!

Nascer numa ilha é um símbolo de pertença muito grande, que se impregna de uma forma muito vincada e pessoal. As ilhas são locais de personalidades únicas, que ao se expressarem, canalizam muitas vezes para sentimentos e emoções fortes, arrebates de criação de um momento singular. Não diria que a nossa alma seja maior, mas tem maior cabimento, mais tolerância, maior capacidade de considerar e balizar, sem rede de contenção.

Ao mesmo tempo, o nosso campo tem mais amplitude de visão, tem um maior discernimento nas vidas de relação, com gestos e contra gestos de são convívio, com aqueles de que gostamos e consideramos. Há sempre uma surpresa, um encanto, um desencanto que surge e se transforma do nada, num todo de magia simplista como a vida deve ser. Como se de um fundo poço se tratasse. Onde nunca ninguém consegue ver a água, mas que se nele atirar um balde, puxa sempre um afecto ou uma essência verdadeira e cristalina como a própria água.

Ver o mar todos os dias e para onde quer que se olhe, sentir que sempre está em calma pois o horizonte é sempre sereno, e poder imaginar que para lá do além longe se pode mandar o pensamento, aprende-se. E aprende-se também com esta gente e com este povo que tão bastas vezes a vida lhe decepou. Sem heróis conhecidos de fama, desbravou a ilha e traçou-lhe trilhos insistentes naquela rocha dura, plantou e domou-lhe as encostas com os socalcos, fez-se ao mar para que este lhe desse sustento, e desafiou-o vezes sem conta, nem que fosse para lhe mostrar quem ali reina. O mar tem sempre esta força e este poderio imenso como ele próprio sabe, sabendo que o podemos cavalgar mas que nunca o domaremos. Ao mesmo tempo dá-nos esta calma e esta paz de saber que somos simplesmente assim. Tu estás aí e nós colocamo-nos no nosso lugar, humildemente te reconhecemos como supremo. Nas ilhas acorda-se de manhã com a visão omnipotente do mar, veículo da nossa possível fuga, mas ao mesmo tempo barreira plácida para a nossa evasão. É por isto que sabemos onde se colocam os nossos limites. Por um lado a plenitude da linha fina do horizonte, e por outro a esmagadora montanha que nos sombreia e nos reduz à nossa existência. Sabemos que estamos aqui provisoriamente.

Curiosamente, quanto mais dela nos afastamos, mais dela sentimos a falta. É um ioiô de pertença fugidia ao que nos foi impresso. Não é à toa que os emigrantes são os mais acérrimos defensores daquilo que são as suas raízes. As Associações e comunidades de emigrantes da ilha, são sempre dignas defensoras da espetada à madeirense, do milho frito, da batata-doce, da carne de vinha d´alhos, do quarto de pão com molho, das lapas grelhadas, do atum, do peixe-espada, do bolo do caco, do pudim de maracujá, do Boal, do Sercial, do Malvazia, do Verdelho, da festa de Nossa Srª do Monte, dos arraiais, do fogo de artifício....de tantas e tantas coisas que materialmente nos conferem uma identidade única, e que espiritualmente nos globalizam cá dentro.

É um fascínio de mentalidades esta ilha! Fora dela consigo ver uma identidade comum, um traço de pensamento que responde com uma pergunta em vez de uma resposta.
P:- “Túlio! Vais ir más êlê até ao cuáis?”
R:-“Uái! Pra que quéres sabêr isse...?”
E até os malucos da ilha são mais uniformes na sua linha de loucura. Será pela própria contenção do espaço, será pela contenção social mais apertada, ou será pela limitação geográfica que também impõe barreiras aos devaneios da loucura? Não faço ideia, mas muitas vezes até a própria insanidade se infiltra no seio da normalidade, fazendo uma paleta de diferentes personalidades que em outro contexto ficariam internadas no “Trapiche”.

Pode não haver muitas intimidades, mas quando um descobre um seu conterrâneo, logo se estabelece um canal de comunicação, uma linha de pensamento própria, uma cumplicidade inerente à vivência comum do ilhéu, que nos torna muito mais unidos sem necessidade de verbalizar. A poupança de palavras também é genuína, mas canaliza-se por vezes sob outras formas para o mesmo conteúdo. A forma de escrita como esta teoria do fole por exemplo...Aí o aforro dá asas à imaginação...

Viva a Madeira e suas gentes