quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Valente Valentim

Naquela época, todas as dificuldades sabiam a vitórias ultrapassadas, como se no mundo real tudo de mau se esquecesse. Aquela criança não tinha sido programada, nem desejada, nem sequer conscientemente planeada sob a forma razoável de um futuro organizado. Aconteceu porque eram casados e assim tinha de ser, como tinha sido com os seus pais, avós, bisavós e por aí a fora.

Já antes de nascer se mexia e remexia na barriga da mãe. 
Esta criança vai ser um furacão quando sair! Com esta genica logo tão de jovem, isto promete!
Desde bébé que tinha uma energia física muito expressiva e fluente, como quem fala através do movimento. 

Revelava um controlo do corpo como ninguém, aliado a uma sensibilidade para o belo e artístico, que naquela época e naquele Portugal atrasado só poderia ser  visto como excentricidade.
Gostava de rodopiar e sentir o ar fresco na cara, de parafrasear no corpo aquilo que sentia quando ouvia música, de espalhar a sua alma no físico do espaço.
-Sinto uma alegria tão grande quando danço mãe!

À revelia dos pais, tinha aulas de ballet num dos estúdios do Teatro Nacional D.Maria, dadas por um professor anti-regime, que via naquele rapaz uma lufada de sangue inspirador. Deu-lhe técnica, disciplina, espaço criativo e sobretudo deu-lhe a vontade de querer lutar por algo que queria conquistar.

A decisão não foi fácil, mas com 16 anos tinha de escapar de um mundo que o sufocava e lhe tolhia os braços do livre pensamento. Queria ser bailarino, mas a sua homosexualidade não era aceite num Portugal de atrasados e de estreita visão, pelo que fugiu deixando em casa uma carta de desabafo e memórias. 

A Espanha de Franco também não seria mais aberta, e nesse trilho trabalhou em bares, danceterias, cabarets e afins, custeando a sua própria sobrevivência. Esse caminho que procurava sem rumo aparente, mas decididamente pela arte da dança. 
Estalava a sangrenta guerra civil espanhola, e foi preso pela polícia política. Uma rocambolesca fuga e um esconderijo num convento, onde se travestiu de freira, permitiu livrar-se de uma Espanha que entretanto caminharia para um abismo fascista e totalitário. 

Chegaria finalmente à Europa moderna, a Europa que dava cartas naquela época, e que era um exemplo de prosperidade e pensamento livre como ele. Sem saber bem como, desembarcou na Alemanha nazi, onde teve logo emprego no teatro Ópera de Estugarda, entrando nas melhores peças com destaque de solista. Muito ligado ao regime, depressa se tornou uma figura de relevo percorrendo o país em tournés de sucesso, e tendo inclusivé sido condecorado pelo próprio Führer com a medalha de Mérito artístico. Convivia com as altas esferas da elite cultural e estatal, privando por várias vezes com Marlene Dietrich em luxuosas festas dadas em faustosos palácios, amiúde frequentadas por Hitler. Todo um sonho realizado, toda uma vida que saltava agora para os palcos, todo o fulgor das palmas e dos aplausos que lhe reconheciam a arte da dança.

Tudo corria bem e por isso não se sabe porque voltou. Talvez porque fugisse novamente de um conflito..
Quando aterrou nessa Lisboa pacata que detinha a neutralidade da guerra, chegou com todo o glamour e toda a vontade de exuberar o mundo artístico de uma sociedade que gostaria fosse de plumas, lantejoulas e vestidos garridos com personalidade e vida própria.

Naquela altura, a PIDE não perdoava, e depressa os vizinhos se encarregaram de delatar o lindo bailarino da Alemanha que tinha vindo contaminar a tradição conservadora de um país disciplinado e imperial. Prenderam-no, abusaram, torturaram-no só porque não eram capazes de entrar na sua cabeça e assim perceberem que uma mente brilhante não precisa ficar refém do seu corpo, das fronteiras dos outros e muito menos da estreiteza da visão humanista. O que constava da sua ficha de arresto era um motivo único:”homosexualidade”..

Foi internado no Hospital Miguel Bombarda em 1939, e só 40 anos mais tarde viria de lá sair. Os Psiquiatras apodaram-no com vários epítetos diagnósticos, mas nenhum se afigurava como um rótulo digno para tão exuberante personagem.
Certo dia, um médico  perguntou-lhe o que desejava para o futuro.
Respondeu simplesmente que gostaria de nascer de novo em duzentos anos, não sentir uma redoma de vidro permanente, não sentir a prisão do seu pensamento. Ser ele próprio, sem disfarces.

Passou pela cela do isolamento, pela ala dos violentos, pela enfermaria dos esquizofrénicos, e até lhe fizeram uma lobotomia pré-frontal, tão em voga naqueles tempos. Achavam que tirando um pouco do cérebro lhe roubariam a alma.
Um espírito com asas tinha sido manietado da sua própria identidade, do seu próprio eu, aprisionado por uma barreira de uma sociedade arcaica no pensamento e na liberdade.

Vestia-se todos os dias como se fosse debutar, e já se tinha acostumado à vida do hospício. A rotina diária tornava-se fácil, se cumprisse todas as ordens e se não rejeitasse a medicação dada pelos dedicados enfermeiros, alcançando o seu objectivo de não ser muito importunado. Acabou por fazer daquela a sua casa.

Pelos seus dotes de costura e conhecimentos cenográficos, foi mais tarde responsável pelas peças de teatro, das festas de natal, dos saraus e de tudo o que tinha a ver com a própria actividade lúdica da instituição. Fazia os figurinos, ensaiava os malucos, construía os cenários, dava os ensaios, sendo nisso que dedicou grande parte da sua reclusão. 
Dentro de muros, guardou os seus rasgos de genialidade em troca da sobrevivência num local onde pelo menos conseguia ter o seu espaço. Uma vida num cordão de segurança, que o escondia da vergonha de uma sociedade incapaz de gerir as suas próprias pessoas.

Passou mais de uma vida inteira sonegado a uma instituição mental sem nunca perceber o porquê. Sem nunca ter tido oportunidade de se afirmar como era, como se sentia, como desejava, como queria viver a vida. Nunca teve a visita de um familiar, de um amigo, de alguém que pudesse estar ali com ele e testemunhar que também ele era gente. E que não estava errado. Que nunca tinha estado errado.

A 3 de fevereiro de 1986 teve alta com o resultado melhorado
A 3 de fevereiro foi declarado o óbito e foi a enterrar no cemitério de Benfica.

Ainda hoje lhe devemos uma explicação.
Ainda hoje não lhe pedimos desculpa…


In memorium de Valentim de Barros