terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A Conquista!

A primeira vez que pisamos o palco, consegui antever aquela plateia repleta de gente anónima, conhecedora e com os olhos atentos em nós! Confesso que é um pensamento intimidante e perturbador de certa forma. A sala era enorme, e assim em bruto, despida de público que nos avaliasse, pude apreciar as linhas sóbrias e elegantes que lhe suavizavam a imponência.


Com os microfones dispostos em meia-lua, o som de retorno estava muito baixo, o micro da percussão estava a entrar no geral, o feedback era frequente, e a captação das vozes não se apanhava. É esta a utilidade dos check-sounds, porque ao fim de meia hora e muitas trocas e acertos na mesa de mistura lá no fundo da sala, a equipa técnica conseguiu equalizar um som harmonioso e equilibrado.


Este espectáculo que íamos apresentar já levava alguns meses de rodagem, e por isso a maioria de nós se sentia confortável na execução e interiorização do ritmo e sensibilidade das músicas. Um espectáculo dedicado ao mar e às suas gentes, que no fundo sempre foram as nossas gentes. Um hino ao nosso cancioneiro e um projecto que nos obrigava a ser melhores que a vez anterior.


Mas esta apresentação não teria nada de especial a não ser pelo facto de ser na metrópole do norte. Não sou de bairrismos fanáticos, aliás, nem sequer sou de Lisboa, mas todos somos profundos conhecedores da velha rivalidade entre estas duas capitais. Por isso, virmos de Lisboa e apresentarmo-nos pela primeira vez no Coliseu do Porto, era algo que nos dava um nervoso miudinho e nos criava a real expectativa de que não podíamos falhar.


Durante o resto da tarde conseguimos ocupar uma das salas de ensaio e passamos ali umas belas horas de afincado trabalho. Sob a batuta dos obsessivos ensaiadores, repetíamos as partes mais frágeis, afinávamos detalhes de última hora, sincronizávamos as vozes até à exaustão, com muita gargalhada e boa disposição à mistura como válvula de escape. Acima de tudo era o peso da responsabilidade e determinação em fazer boa figura!


Com a voz frágil que tenho, não arrisquei a beber cerveja durante todo o dia, pois os frios podem estancar a voz. Sendo um dos solistas, que ainda por cima teria a responsabilidade de abrir o espectáculo, chegou-me ao ouvido o rumor que um cálice de Brandymel ajudaria nestas performances. Usei da fama e bebi mais um ou dois, para que o resultado do remédio fosse maior...


O jantar do dia foi precedido por uma pausa, aproveitada para beber um café no lindíssimo Majestic. De facto o Porto sempre me encantou, com os seus segredos, com os seus tesouros bem conservados, com a sua tradição, mas sobretudo com tudo aquilo que de mais valor tem: o seu povo! Gente acolhedora, sincera, amiga e com uma natureza que nos inspira confiança. Gosto sobretudo da verdade que emanam e da integridade a todos os níveis. Gosto, sim senhor!


As ruas circundantes estavam a ficar intransitáveis à medida que se aproximava a hora do festival, com lotação esgotada já há muito tempo. Nestes eventos imbuímo-nos de um espírito de festa tão abrangente que de forma natural se estende ao sentir vibrante da cidade, sob a batuta vigilante da teoria do fole.


Com este primor de ensaios, claro que perdemos o jantar da cantina e acabamos por comer uma francesinha mesmo em frente ao coliseu, fruindo o movimento e a azáfama natalícia da rua. Soube tão bem, que rematei com um Brandymel aquecido (a ver se maximizava as suas propriedades terapêuticas), e de volta aos camarins para um último ensaio antes de entrar em palco.


Agora sim é que entrava o nervoso miudinho!
Os semblantes estavam mais sérios, e mesmo que tentassem disfarçar não conseguiam esconder uma certa preocupação e tensão.


Tinha sido o intervalo e a tuna que abria a segunda parte já estava em palco.


Subimos as escadas posicionando-nos no backstage, para que assim que acabasse o grupo anterior entrássemos nós. Aquela espera é um momento de ansiedade e concentração, tendo como hábito andar de um lado para o outro, pedindo repetidamente a uma guitarra ou ao acordeão que me liberte o tom da música. Isto de entrar "a seco" e sem rede, pode parecer, mas não é fácil…


Já está! A tuna anterior acabou a actuação e cruza-se connosco de feição descontraída e aliviada por nos passar o testemunho, pronta para festejar em grande. Que inveja!


Enquanto o pano está em baixo, tomamos as nossas posições em frente aos microfones. Quase um por voz, e um por instrumento. Fico posicionado entre o acordeão e a percussão, ajustando e alinhando o micro, mas nesta altura já só desejo é entrar em acção! Cada um traça a sua capa evitando derrubar o sistema de som montado, enquanto do outro lado da cortina se desenrola um pequeno sketch humorístico, dando-nos tempo a posicionar correctamente. Falam de um qualquer momento futebolístico norte-sul...


Bom! Tudo a postos e umas últimas palavras do psicólogo de serviço: "Sorriam!", "Força pessoal", "Dicção, e cantem à homem!”, gerando em resposta uma onda de comentários murmurados e palavrões à mistura..


Oiço então os apresentadores num coro retumbante:
-"Senhoras e senhores fiquem então com...A Estudantina Universitária de Lisboa!", ao mesmo tempo que o pano subia e os holofotes nos iluminavam o rosto esvaindo-se engolidos pelo negro das batinas.


Nesse preciso instante e num ímpeto de animosidade, uma chuva de insultos, impropérios e duríssimas palavras que em nada lisonjeavam as nossas mães ou mulheres, encheram a sala num basqueiro verdadeiramente ensurdecedor. Como se estivéssemos num estádio de futebol e entrasse a equipa mais arqui-rival do clube da casa. Afinal a rivalidade Lisboa-Porto tinha sido transposta para esta arena e teríamos de a enfrentar!


Confesso que estremeci, e ao rodar a cabeça pude ver vários sorrisos amarelos estampados em caras de pânico! Em alguns conseguia ler nos olhos e adivinhar entre dentes o pedido "Começa a cantar car@€;)5&@!0...".


O público continuava a apupar ruidosamente, mas permanecemos firmes e em muda posição durante uns infindáveis 4-5 minutos! O Coliseu quase que vinha abaixo...


Não podia desatar a cantar a solo com aquele protesto...


Uma serena calma me invadiu enquanto seguia pelo canto do olho os tiques nervosos de alguns que eu já conhecia. Não iria começar sem que se calassem, e a certa altura a tuna ficou mais nervosa comigo por não começar, do que propriamente com o coro de assobios....


Finalmente as vozes se foram encolhendo, não sei se pelo cansaço se pela nossa inderrubável afronta, e aí retomei de confiança. Quando o público se calou, olhei de novo para o lado e anuí subtilmente com a cabeça como quem diz: "Vamos a isso!".


Fechei os olhos, respirei fundo e soltei com segurança a primeira estrofe do Infante:
-"Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce"...


Nesta altura o silêncio na sala era absoluto, e o coro entrou com um corpo tão compacto quão impressionante. Arrancamos aplausos espontâneos e verdadeiros no fim da música! Estavam rendidos! Ufa!


Numa apresentação sóbria, completa, com exímia execução e cheia de alma, fomos música-a-música ganhando o público e conquistando os seus corações. Boas execuções, força e corpo nas vozes, timings perfeitos e apresentações sóbrias, engrandeceram músicas originais e arranjos lindíssimos. Tudo isto, fez com que no fim de cada música os assobios se tivessem transformado em palmas, e os apupos em bravos! Que reviravolta surpreendente! Que momento!


Quando saímos de palco, os abraços sentidos aliviaram a tensão acumulada naqueles 40 minutos e entrámos em modo descompressão com sensação de missão cumprida.
A Estudantina tinha mostrado todo o seu valor, classe e postura de forma exemplar!


Uma noite memorável!
Um abc


PS: Neste festival arrecadámos os prémios de melhor solista e 1º lugar…J