quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O meu banco de rua


Sentei-me ali como me sentava desde que me lembro. Naquela rua, o banco estava no passeio e virado para o passeio. Os transeuntes cruzavam-se como formigas atarefadas que se desviam umas das outras, ziguezagueando pela calçada rumo ao virar da esquina, onde quem sabe eram devorados por algum extraterrestre verde.
Consigo ouvi-los a mastigar e a rirem-se baixinho.
 
Em criança sentava-me com o meu avô, a comer gelados e a desfrutar da brisa fresca da primavera. Os meus pés ficavam dependurados a balancear no ar e divertia-me a ouvir os seus ossos a ranger como dobradiças de castelo.
Contava-me histórias da sua infância, das suas brincadeiras na avenida do mar, das primeiras fotografias que tirou ao pôr-do-sol, da fome que passou na guerra, e até de algum ou outro namoro que lhe tinha levado um troço de coração.
Todas as tardes no mesmo banco de rua.
 
Dos bancos de rua vêem-se vidas ambulantes, ombros carregados, peitos altivos, rostos decididos e mesmo meliantes descontraídos sem arrelias.
 
Quando cheguei com os pés ao chão, já era eu que levava o meu avô a comer o gelado. O banco de rua era o mesmo, e estava tão gasto como as pedras da calçada. Das três lojas que víamos em frente, apenas uma tinha mudado de ramo. Uma mercearia, uma loja de licores e um talho que entretanto virou pastelaria.
 
As lojas não haviam nunca de fechar. Altera-nos o sentido de orientação. Imaginem as coordenadas de sempre "na rua do restaurante caravela", ou "viras ali na esquina do picheleiro e do lado direito está a farmácia Honorato". As coisas têm de estar onde sempre estiveram, para que não nos percamos. Já chegam as lojas de chineses para que se nos desorientem os pontos cardeais.
 
Nessa altura já o meu avô não rangia, e pensava eu que lhe tinham metido óleo nas juntas. Convenci-me dos extraterrestres...
 
Contava-lhe histórias das minhas brincadeiras de jovem adulto, da guerra que estava pra vir e pra onde eu iria, dos muitos amores que me roubavam os mesmos troços de coração iguais aos dele.
 
Dizia-me que daquele banco de rua se via o mundo, e que se abrisse bem os olhos poderia ser o que quisesse.
Engraçado que toda a gente me ensinou antes a fechar os olhos e a imaginar que poderia ser o quisesse...
 
Dali via a vida do pobre, do rico, do orgulhoso, do capaz, do honesto, do cumpridor, do bom pai de família, do avarento, do violento, do adepto do nada e do tudo.
Se olhares para o chão, sabes que 50 homens construíram aquele passeio, se sentires a madeira sabes que marceneiros fizeram o banco, se olhares para a frente podes rever-te nas montras das lojas, se olhares para cima vês que a natureza te protege.
Enquanto esvoaça em remoinho um panfleto da teoria do fole, aprecio o passeio de bicicleta da mãe e do filho, o vagar do reformado que passeia, a pressa do senhor dos correios, a leveza da jovem que facilmente me levaria um troço de coração.
 
Sabíamos que os bancos de rua são diferentes dos bancos de jardim. Os de jardim são melancólicos, vazios, tristes e sozinhos. Os de rua são vividos, fortes, com muitos segredos guardados de horas e horas de diferentes traseiros neles sentados. Rabos gordos, magros, malfeitos revezavam-se com outros delicados, redondos, sensuais. Se nos pusermos no lugar do banco, talvez imaginemos o que muitas vezes sofre e o que muitas vezes se deleita com estes afagos nadegueiros..quem sabe até não ganhem vida...afinal de contas não sabemos se o marceneiro se chamaria Gepeto...
 
Houve alturas em que não frequentava o banco de rua. Já era adulto e fazia coisas de adulto, pelo que não tinha tempo nem vagar de me sentar no banco.
 
Curioso que os adultos não têm estatuto próprio, têm só personalidade. Cada um é como é, e desenvolve o seu perfil de conhecido. As crianças e os velhos por seu turno, têm um carisma globalizado. Direitos adquiridos, princípios universais e regentes. Ninguém os chama pelo nome, todos os tratam por igual.
 
Uma senhora sentou-se a meu lado, com o seu cãozinho de colo. Naquele instante não era de colo mas sim de rua, e tinha acabado de fazer um cocó mesmo aos meus pés. Fingi que não tinha dado por nada, mas olhava em frente pelo canto do olho, como quem vigia um animal selvagem a ver se este não se atira a mim. A senhora desculpou-se e tirou de um saco plástico que albergou o dejecto. Levantou-se e transformou o cão novamente de colo, enquanto na outra mão segurava com dois dedos o excremento envolto no seu saco mortuário. Até os cocós morrem com mais dignidade que as pessoas...
 
Fiquei a vê-los afastar, e consegui vislumbrar o ar de gozo do cãozito a olhar pra mim, com a pose altiva de quem tem posse do seu dono.
 
No segundo seguinte, sentou-se um homem na mesma ponta do banco de rua, e começou a falar, a falar, a falar, numa verborreia tão grande, que nem percebi com quem gesticulava. Não havia ninguém à nossa volta a escutar, mas consegui visualizar o seu amigo imaginário em frente deste homem, divertindo-me a conjecturar se seria um barão decadente ou um fantasma de Minotauro. Levantei-me antes que me desse uma cornada!
 
Volta e meia tenho flashes de memória. Lembranças de momentos.
 
Certa vez sentei-me no banco de rua, à noite. Voltava de uma festa de aniversário, e aquele banco foi providencial, na medida em que amparou as minhas pernas já um pouco cambaleantes. Tinha razão um amigo meu: "O vinho fo@&-me todo!"
Desta vez fui eu que falei com ele. Desabafei, chorei, ri, contei-lhe as amarguras da guerra que vivi, confessei-lhe que sou feliz. Abracei-o.
Ouviu em silêncio e nada disse. Foi neste momento que o polícia interrompeu a nossa relação e perguntou se precisava de alguma coisa. Levantei-me o menos oscilante possível, agradeci a ajuda e despedi-me do meu banco confidente, seguindo o instinto até casa, que nem pombo-correio no regresso.
 
As folhas caíram e voltaram a nascer setenta vezes, a calçada foi mudada três vezes, o tapete de asfalto foi trocado seis vezes, as lâmpadas de rua foram enroscadas e desenroscadas centenas de vezes, e milhares de vezes choveu na rua do banco de rua. Só uma vez tinha sido pintado, e só uma vez lhe tinham trocado a pata.
Aguenta-te!
 
Naquele dia estávamos os dois sentados no banco de rua. Eu já de bengala e tu sem chegares ainda com os pés ao chão, balanceavas as pernas enquanto comias o gelado.
 
Contavas-me as tuas brincadeiras na escola, os trabalhos de casa que fazias, o que irias ser quando fosses grande, os troços de coração que ganhavas às namoradas.
 
Daquele banco de rua podíamos ver tudo, alcançar tudo, conseguir aquilo que quiséssemos, quer de olhos fechados ou abertos!
 
Aquele banco de rua seria para sempre o nosso mundo. Um mundo feliz!

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Lado a Lado

 
As rotinas criam-se ao longo dos tempos. Umas vezes assim, outras assado, umas impostas pelos filhos pequenos, outras pelos filhos já crescidos, outras ainda pela crise. Os homens adaptam-se ao destino que lhes é imposto pelo próprio destino. Esse sim, traça linhas rectas sem curvar por pedido.

Casados há 50 anos, eram mais um que dois. Ela enérgica, bem-disposta, irradiando e distribuindo alegria. Ele calado, reservado, sempre com um sorriso plácido e contemplativo da sua eterna paixão.
Flores nos aniversários, passeios no parque, bilhetes escritos em pedaços de papel, pequenas cumplicidades mudas com alcance de léguas e léguas.
Complementavam-se como uma teoria do fole perfeita.

Recém-casados, a vida corria como se sempre fosse verão e as coisas simples tinham um valor de coisas caras. Passear à beira-rio, ir ao cinema, tomar um café, oferecer uma rosa, ir à praia de mota significavam uma partilha permanente em grande placidez de espírito. Não eram necessários grandes restaurantes, nem compras chiques, nem viagens longínquas e exóticas. Aliás, o sítio mais longe onde até aí tinham ido, foi uma viagem na mítica vespa à Estremadura espanhola, para que os pais do noivo conhecessem a prometida. Toda uma aventura para a época. Uma travessia a dois, de um caminho que saberiam longo.

O primeiro revés foi logo o serviço militar em Ceuta. Estava-se em Espanha, mas numa Espanha estranha, onde apesar do domínio de Castela, se respira árabe e mais árabe. Cortês, educado e cumpridor, rapidamente deu por terminado o seu tempo obrigatório, num meio que nada tinha a ver consigo.
As tropas são sempre limitativas das liberdades individuais e muitas vezes castradoras do pensamento livre. Não há sobressaltos, tudo é regulado, tudo é previsível e controlado, por isso satura e cansa. O que seria de nós se não saíssemos do quadrado, se não nos excedêssemos, se em vez do caminho certo não atalhássemos pela aventura e pela descoberta...
Mas não se excedeu a si próprio, e voltou com a mesma paixão de quem foi ali tomar um café ao virar da esquina e veio.
Três filhos geraram, como uma continuação das suas próprias vidas. Tudo o que sabem lhes dão, tudo o que fazem lhes serve de exemplo. Mas a década era de recessão, e como tantos outros que lhes precederam, largaram a vida profunda para tentar maior sorte lá longe.

Por incrível que pareça, hoje já não há longe, tudo está perto, o mar já não separa. Quando se quer, quando nos apetece, à distância de um botão. A saudade esbate-se numa figura de voz e imagem, que antes a carta ocupava. Já ninguém escreve cartas aos parentes, aos amigos, às namoradas. Cartas de amor, de desabafo, de protesto, cartas em papel de linha azul. Levezinhas. Assim acabam com os selos!

Atravessaram oceano para um país de língua semelhante, mas com um calor que nem lembraria ao diabo. Em Caracas, a mesma loja de tecidos da terra tinha aberto uma filial para os vestidos e cortinados de tudo quanto era família abastada. Confiaram-lhe a missão, e como esta família não se separa nunca, foram todos viver uma nova vida, com novas sementes, novas paisagens e novos corações abertos para o sonho de vingar.

Assim como foram juntos, assim voltaram juntos alguns anos depois. O sonho não tinha acabado, mas sentiram que não valia a pena abdicar das pessoas, dos próximos, quando estes estão tão longe. Só se vive uma vez, e a selva venezuelana foi um apeadeiro para tomar o comboio de volta.

Viver junto é diferente de viver com. Viver com, tem o pressuposto de duas partes que convivem, mas que sobrevivem uma sem a outra. Têm vidas separadas que trocam experiências.
Viver junto, significa que os dois são a parte de um maior. Um, que não se dissocia do outro, mas que respira ao mesmo tempo que ele, que partilha o mesmo sentir.
Andar de mão dada, braço pelo ombro, beijos e abraços, não eram necessários para estarem juntos. O simples existir um com o outro, é de um significado tão forte que se adivinham os pensamentos e vontades de ambos.
-Estou aqui ao teu lado, dizia-lhe.
A idade avança e o mundo gira, mesmo que andemos para trás. Podemos enganá-lo e correr em sentido contrário, mas de nada serve, porque ao pararmos ele leva-nos para onde ele decide que se vá.

Nesse tempo vieram os netos. Disseram que nunca os veriam fazer a primeira comunhão, porque já cá não estariam. Disseram que nunca os veriam acabar o liceu, porque já cá não estariam. Disseram lado a lado, como sempre, que nunca os veriam acabar a faculdade, porque já cá não estariam. Disseram que nunca os veriam casar, porque já cá não estariam. E por aqui não disseram mais nada, esperando que o inevitável chegasse, sem imposição de tempo.

Tinham envelhecido mas os perfis estavam lá. Ela positiva, enérgica e cuidadora. Ele calado, sereno, um gentleman em todas as poses e ocasiões.
A perda de eficácia das células é inevitável com o decorrer do tempo. Ganham ferrugem, os músculos atrofiam-se, as cartilagens fazem atrito, os ossos ficam ralos, a pele ganha vincos como a terra ao secar, o coração dilata, e pior que tudo, o pensamento transvia-se, engana-se e baralha-se com facilidade.
Flagrante o escrever, o ditar, o ler, a confusão das letras que se percebem, e que também queremos escrever mas...não sai.

Nos últimos tempos a memória já lhe falhava, e não conseguia por vezes articular o pensamento como o raciocínio deveria. O jornal já não o lia bem, e a escrever, as palavras saiam-lhe tortas e em formato infantil. Queria dizer-lhe que estava bonita como sempre. Que a sua luz irradiava felicidade. Que o seu dia se enchia de ar puro. Que fosse sempre feliz que ele a veria.

Vezes sem conta tinha tentado escrever uma frase simples, mas já a fita era inteligível. O esforço da caligrafia era em vão. Sabia o que queria deixar na folha para todo o sempre, mas a caneta não obedecia ao comando fino da letra.
Naquele dia pediu um papel. Alisou-o com a mão trémula, e traço a traço, firme, desenhou a sua última escrita, desta vez com uma perfeição imaculada:
-Te quiero Lolita....
Isto sim, era o que queria que perdurasse.
E confirmo que ainda perdura