quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Idas e Voltas


Chegam, partem, abraçam-se, choram, alguns felizes de contente, alguns tristes da separação, alguns alegres do reencontro, outros em trabalho. Assim são as vidas de aeroporto.


Na modernidade alguns chamam-lhes "hub", e são uma plataforma giratória de coisas tão diferentes como culturas, emoções, expectativas, doenças, mosquitos, e bagagens de ilusão. São também uma porta de entrada e saída de dois mundos que podem ser tão díspares quanto a distância impõe. Um dia na cidade, outro dia na aldeia recôndita. Um dia na neve, outro dia no fim do mundo. Um escape de uma muralha cercada, uma aterragem em pé firme. Uma desilusão de amor, uma nostalgia do que já foi.

É por isto que viver numa ilha rodeado pelo mar e muitos Adamastores em guarda, faz com que o desejado ensejo de se meter num qualquer avião, nos agarre para outras viagens.

Assim é desde criança.

Aquele pedaço de asfalto do aeroporto, muitas vezes transportou o meu imaginário verniano, embasbacado que ficava a olhar os aviões a levantar e a aterrar na pista de Santa Catarina.

Cedo se criava a rotina de ao domingo, acelerar nas poucas rectas da ilha paralelas à pista, ou de se ir ver levantar e aterrar os Boeings naquele minúsculo bocado de alcatrão que ainda ocupa o mar.

Enquanto os carros se acumulavam na berma da estrada de Santa Catarina a apreciar o movimento aeronáutico, grudados à rede de protecção, o melhor spot era sem dúvida o restaurante "A varanda", de onde para além da vista privilegiada, podíamos saborear uns ultra-mega-deliciosos pregos em bolo do caco com uma fresca brisa maracujá!

Na maioria das vezes, os pilotos experientes eram muito certeiros na pontaria de alinhar o avião, e fazê-lo aterrar como um brinquedo naquela pista que muito curta e estreita deveria parecer aos seus olhos.

Uma vez houve, em que essa perícia não foi suficiente para enganar a tragédia traçada...

Lembro-me bem de quando caiu o TAP 425 na pista. Numa das sucessivas tentativas de aterragem, com uma tripulação já exausta das horas de voo, a aeronave fez aquaplaning, saindo pela cabeceira da pista e despenhando-se no mar ceifando 125 almas. Nesse dia a Dona Isilda fazia anos, e a interrupção da emissão da RTP-Madeira a convocar todo o pessoal do hospital e apelar aos dadores de sangue, gelou aquela festa. Arrepiantes dezenas de sirenes e o repicar de todos os sinos das igrejas do Funchal, marcaram decididamente a minha memória. O inferno instalado em momentos angustiantes e dramáticos, pulsavam à medida que se iam sabendo dos amigos "que vinham no avião"... Tantos foram, que na ilha não havia caixões que acomodassem tamanha multidão, pelo que os féretros tiveram de vir da capital para fazer face a tanta escassez imprevista.

Depois disto tudo, o medo de viajar gerou-se, mas para vencer as amarras de uma ilha não há muitas alternativas..

Ainda que com estes desaires, andar de avião era um acontecimento nessa altura! Fazíamo-lo pelo menos uma vez por ano, nas férias grandes, quando embarcávamos rumo a Vigo. O Funchal-Porto encurtava-se em duas horas, e tínhamos impreterivelmente Tio Isauro e o primo Rui à nossa espera, para outro trilho clássico até Espanha.

A roupa desse dia era sempre a mais bem escolhida, e os ténis de estreia le coq sportif eram orgulhosamente exibidos, ainda imaculados da vitrina do expositor.

Lembro-me que tudo era moderno, que as hospedeiras eram todas bonitas, que aquela comida de bordo servida em caixinhas se comia com talheres de metal, e que aquele voo nos levaria de novo a um mundo recorrente e familiar. Até as idas ao toilette me proporcionavam o secreto prazer de roubar sabonetes e toalhetes perfumados da TAP!

Assim eram os meus aeroportos, os meus portos de ida e volta, de fuga e escape da rotina de um ilhéu..

Mais tarde, tornou-se uma necessidade. A entrada na faculdade e os estudos em Lisboa fizeram com que já fosse encarado como um qualquer vulgar meio de transporte.

Natal e Páscoa eram verdadeiramente santos, e mais uma que outra vez no ano, lá apanhávamos o voo TP qualquer coisa para matar saudades. Neste processo de regressos, havia sempre os reencontros das nossas raízes, do nosso mundo, do nosso conforto, que nos recebia sempre de braços abertos e sempre incondicional....O amor de casa tem este poder de ser incondicional e eterno, e é bom saber que existe assim.

Andar de avião transforma-se numa espécie de jaula de personagens de um qualquer teatro, que vão mudando de cenário conforme as agendas próprias. Como se a mudança física nos tirasse dum frasco e nos metesse noutro diferente. Hoje estou nesta vida, mas amanhã estou noutra. Amanhã não volto a estar aqui onde fui feliz. A felicidade espera-me lá..

Por isso o fascínio pelos aeroportos! Nesta fase em que as viagens são cada vez mais em busca de um paraíso anunciado que um éden por nos procurado, uma ida ao aeroporto é quase libertadora. O simples facto de levar alguém ao check-in, transporta-me de imediato a uma plêiade tão grande de mundos e submundos, que me refresco sabendo que não estamos sós neste planeta. O homem de negócios que lê a teoria do fole, o jovem surfista que vai à procura de ondas, a Madame que vai fazer compras a Paris, o árabe que vai passar o Ramadão à sua terra mãe, o japonês que colecciona fotografias que nunca as irá ver.

Ponho-me a pensar como será a vida de cada um deles, sonhando que posso ser um pouco de cada um, e um desejo secreto que levem os meus sonhos naquelas malas por esse mundo fora, anunciando que alguém está ali disposto a escutar e a partilhar o seu mundo com o deles.

Sentado nas partidas a observar a azáfama que se desenrola, é como assistir a um sem fim de mini-novelas mundiais. Pretos, brancos, amarelos e matrizes dispersas entre estes todos, passam à minha frente como uma passerelle do planeta. E eu invisível, criando histórias que se encaixem neste e naquele.

Nos aeroportos caímos na consciência real do ínfimo grão de areia que somos, que o mundo é próximo ao infinito, e o nosso ponto de partida pode ser sempre o ponto de chegada de alguém.

Para onde vai, de onde vem, que mundos se descobrem? Não interessa.

Arrisque, embarque, e desfrute da viagem que o levará a um qualquer mundo novo...