quinta-feira, 26 de julho de 2018

A Comitiva

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Talvez a ressaca da primeira tivesse deixado más memórias. Talvez na altura não quiséssemos confusão. Talvez lhe chamassem cobardia. Mas o que é certo é que Portugal continuava fora da segunda grande guerra. No meio de espiões, refugiados, exilados, foragidos e alguns românticos, as poeiras da guerra chegavam ao país de muitas formas e feitios. Embora naquele cantinho do Alentejo se estivesse como se o paraíso ali fizesse plantão.

Todos tinham adquirido o hábito de ouvir religiosamente o noticiário da BBC, onde os miúdos seguiam as peripécias dos aliados e dos nazis como se um filme de aventuras se tratasse. Saiam depois para a rua, onde brincavam ao pião, às corridas, aos soldados, à bola de trapos, a espreitar os namorados escondidos das irmãs. 
Aquele seria uma dia igual aos outros, onde Teodoro se imaginava destruindo os tanques inimigos com uma pistola de madeira e uma fisga que lançava projécteis flamejantes. Divertia-se assim com os amigos, quando próximo da praia ouve um rugido ensurdecedor a sobrevoá-los! Eram 4 aeronaves da Luftwaffe, a temível força aérea nazi que por vezes surgia sobrevoando os céus ibéricos, com incursões regulares de controlo e vigilância da entrada do estreito de Gibraltar. Voavam a baixa altitude e vinham ao longo da costa, ficando os miúdos no topo da arriba quase ao mesmo nível daquela trajectória. Eram 4 assustadores caças Messerschmitt Bf109, muito utilizados e aperfeiçoados durante a sua aparição na guerra civil espanhola.

Estavam todos de boca aberta e espantados com aquela visão, mas sobretudo com o rugir daqueles potentes motores, quando um outro barulho se sobrepôs. Perpendicularmente e vindos do mar, surgiram 3 caças da Royal Air Force. Três Spitfire ingleses que vinham já a descarregar munição sobre os aviões alemães! O coração de Teodoro batia com tanta força que quase abafava o barulho que as rajadas de metralhadora cuspiam. Deitaram-se todos no chão, e puderam ver que um Me109 tinha sido atingido deixando um rasto de fumo negro, ao mesmo tempo que a distância lhes permitia ver o rosto de pânico dos pilotos alemães. Caiu a pique, despenhando-se logo a seguir à arriba e erguendo-se uma coluna de restos de avião pelo ar. Os outros caças trocaram fogo errático pelo espaço, digladiando-se por uns minutos em curvas e contracurvas apertadas,  e tão rápido como apareceram, assim de rápido desapareceram.

Por esta altura não eram só os miúdos alertados, mas toda a aldeia correu para o local da aeronave atingida. Quando os bombeiros lá chegaram, já todo o avião ardia em chamas e sem sinais de vida por perto. Nunca se tinha visto nada assim por aquelas paragens!

Na altura, Ernesto Cuco, o pai de Teodoro, era o representante do governo civil na província e autoridade máxima para aquelas questões que não têm incumbências em foro de ministério algum. Foi ele quem tratou de todos os ofícios e oficiosas do salvamento e rescaldo. Uma das imagens que ficou gravada naquela criança de 10 anos, foi ver o seu pai coordenando e ajudando a subida daqueles quatro corpos carbonizados arriba acima, até a capela da aldeia. 
Ernesto Cuco assumiu a liderança do acontecimento, uma vez que estavam todos um pouco atordoados e sem saber o que fazer. 

A primeira coisa que fez foi enviar um telegrama urgente para a metrópole a pedir instruções sobre que tratamento dar à crise, pois tratava-se de militares alemães e a questão era obviamente muito delicada. A resposta veio tão rápida como foi, e do próprio Presidente do Conselho de Ministros: “Que se enterrem os corpos com todas as honras e toda a dignidade que o nosso país demonstra!”
O seu coração começou a bater de forma acelerada, e levantou os olhos para o seu secretário dizendo entre dentes para si e para o outro:”Albino, vamos organizar um cortejo fúnebre como nunca se viu!”

Sediou o centro de operações na câmara municipal, enquanto o povo velava os bocados de carvão em forma de homens na capela local. Convocou o chefe dos bombeiros, o governador civil, o bispo, o representante da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, o comandante da zona militar, o chefe da GNR, o dono da funerária local, o chefe da filarmónica, e claro o presidente da câmara!
Todos chegaram afogueados e suados, não se sabe se do calor, se do peso da responsabilidade que sabiam ir-lhes calhar.
Ernesto Cuco foi peremptório e acutilante: "Meus senhores, todos sabem que temos militares alemães a quem devemos prestar um respeitoso e digno funeral, não obstante as convicções e ideologias de cada um, porque a nossa pátria assim o pede! E vamos ter um funeral memorável!"

Quatro dias depois, os corpos eram devidamente acondicionados em féretros de faia maciça  cobertos com a bandeira suástica, encontrando-se dispostos no altar-mor da capela e sendo velados por uma guarda de honra que veio da escola de cadetes da Armada. Cá fora espalhavam-se os militares portugueses detrás da igreja e os populares por debaixo das oliveiras, abrigando-se de um sol abrasador já àquela hora da manhã. Ernesto estava firme na entrada da capela, com o seu melhor fato, ladeado pelo presidente da câmara e o bispo. Assim que viram a nuvem de pó levantar-se no horizonte, deram indicação ao Coronel de infantaria que chegara o momento. Os pelotões que tinham vindo do quartel de Vendas Novas nos seus uniformes de gala, formaram alas de um lado e outro da capela numa esquadria perfeita.

Os três autocarros chegaram ao perímetro mas pararam a uma distância razoável. Deles saíram também dois pelotões de cerca cinquenta alemães cada, vestidos com o negro da Werhmacht, a poderosa força armada do terceiro Reich. Ali, no meio do Portugal profundo e neutro…
Formaram-se rapidamente à voz do comandante Hans Hümmel, e na frente ficaram dois porta-estandartes com uma enorme bandeira onde sobressaíam as cruzes suásticas, replicadas a vermelho nas braçadeiras dos militares. Do lado português engoliram em seco, e Ernesto avançou cumprimentando o embaixador alemão entretanto saído do seu Mercedes também negro.

A missa foi breve, pois não sabiam bem se isso não iria ferir susceptibilidades religiosas, mas em compensação a banda filarmónica tocou alguns requiems de compositores alemães. O cortejo abriu com dois porta estandartes, um com a bandeira nacional e outro com a bandeira alemã, seguido pelo bispo e o clero, as urnas com um pelotão alemão à frente e outro atrás, o ministro do interior alemão e altas patentes alemãs, o embaixador, o ministro da guerra português e seu ministério, generais e almirantes nacionais, os pelotões de infantaria, entidades públicas locais, Ernesto Cuco, a banda filarmónica, e a fechar a comitiva todo o povo da aldeia e arredores em tons de luto com um cravo branco mostrando respeito. Estendiam-se serpenteando por uns bons 1500 metros, dando uma grandeza ao acontecimento como nunca antes vista, e deslizavam num silêncio tão sepulcral como digno da nobreza do gesto.

Chegados ao cemitério, dispuseram-se em redor dos sete buracos já escavados no solo, enquanto os militares formavam várias filas em sentido. Puxaram das armas à voz única de comando, e lusitanos com alemães dispararam três salvas de tiros em direcção ao céu, enquanto os falecidos desciam cada um para o seu rectângulo reservado na terra. A banda tocou a marcha fúnebre de Siegfried, No crepúsculo dos Deuses, e rematou com o dramático Ich hatt'einen Kameraden do compositor Friedrich Silcher. Nem um sussurro de pássaro se ouviu, nem um lamento de carpideira, nem sequer o barulho de pensamento ruim no ar. Homens e mulheres unidos na dor da perda.

Foi assim naquela tarde de 27 de maio de 1943, em que Ernesto Cuco como um cidadão comum se empenhou em cuidar da humanidade, dignificando todo um povo, e dando esperança à compreensão entre os homens!

Teodoro tinha crescido e feito vida. Quando seu pai adoeceu de verdadeira velhice, encontrou no sótão a medalha da Grã Cruz da Ordem da Águia Alemã, com a cruz branca ladeada pelas águias em ouro sob as suásticas. Emoldurado estava também um diploma de agradecimento firmado em mão pelo próprio Adolf Hitler...
Aquilo que de soturno embebia a homenagem, escondia uma nobre e generosa atitude do povo português!
Assim continuemos…

Baseado em factos verídicos da batalha de Aljezur