segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O homem invisível

 
Dêmos graças a Deus por aquilo que temos! Pode ser o meu Deus, o teu Deus, ou até o Deus do agnóstico. Mas vivamos agradecidos a cada dia que passa, por tudo aquilo de bom que acontece nas nossas vidas. É, e precisa ser obrigatório ter este pensamento minuto trás minuto!
 
Naquele dia, acordei como o tempo que diziam estar carregado. Carregado de sonhos desfeitos, de vontades por alcançar, de tantos sucessos em carteira para equilibrar os pratos da balança. Leio sempre o jornal da manhã e a teoria do fole, para entreter os entretantos da fatia que crepita na torradeira. Diáriamente lanço um pão na fogueira da inquisição, mas ele não se importa, porque a seguir sabe que vai ser barrado pela manteiga fofa e deliciosa das ilhas. Faço o café que borbulha de contente quando ferve, e aqueço o leite que se juntará ao fundo da caneca amarela.
Afinal já começo a contrariar o tempo que apregoavam.
 
Por isso tomo um duche, não sem antes dobrar vincando 3 vezes a roupa que vou vestir, e de escovar os dentes de cima pelo menos sete vezes para cada lado. Manias, o que é que querem!?
Fiquei sem emprego de há uma semana para cá, e desde então parece que o tempo sobra não sei para quê.
-Lamento muito mas vamos ter que dispensar a sua colaboração, porque a empresa vai fechar a sua secção.
Que lata! Eu que vesti a camisola daquele serviço durante cinco anos! O que é certo é que ele continua a andar de Mercedes e eu quase sem dinheiro prá gasolina!
 
Saí de casa e descia para a garagem, quando um qualquer vizinho marreta me fechou a porta na cara como se eu não existisse. Ser desempregado não é ser invisível!
O carro demora a aquecer, mas depois disso até que desliza bem. Aquele caminho conhecia-o bem, como se fizesse parte da minha rede de tubos de auto-transporte, mas hoje o trânsito estava caótico.
 
Uma passadeira obrigou-me a parar bruscamente para não atropelar um senhor que a atravessou lentamente a olhar para mim. Estacionei imediatamente a seguir, e contrariando a lentidão com que o vi a atravessar, aproximou-se da minha janela batendo levemente no vidro.
-Pronto! Lá vou ter de ouvir mais um sermão de alguém que acha que é porta-voz da humanidade e da cidadania. Que não devo andar tão depressa. Que devo respeitar os sinais de trânsito. Que devo abrandar para os peões, etc, etc, etc.!
O homem deveria ter os seus 80 anos, bem vestido com um fato e gravata sóbrios, perfume equilibrado e jornal gratuito na mão. Tinha ar de quem tinha trabalhado uma vida inteira, de quem se tinha dedicado a fundo a um trabalho como eu gostaria de ter tido na minha empresa. As suas rugas denunciavam momentos de agruras e alguma tristeza, mas ao mesmo tempo uma serenidade e paz de espírito naquela provável vivência da reforma.
 
Baixei o vidro automático e ensaiei a minha melhor expressão de empatia.
-Bom dia menina. Queria-lhe só agradecer a gentileza em ter parado na passadeira. Não é algo vulgar nos tempos que correm...
Esbocei apenas um sorriso de agradecimento e fiquei desarmada neste meu mau pensamento.
 
Não podemos julgar ninguém nem nenhuma atitude, sem que ela aconteça. Estaremos logo a ripostar na defesa de um ataque inexistente. Eu ali, com idade para ser sua neta e ele a dar-me uma lição de humildade e reforço de acções positivas...
Nisto começou a tremer e a não fixar-me o olhar, enquanto suas mãos suavam e se agarravam uma à outra nervosamente.
-Queria...queria pedir-lhe um favor muito grande menina....
Fixei um dos botões do casaco de fazenda, de corte impecável, evitando cruzar o olhar.
-Sim...sim, diga se faz favor..
-Eu...eu....
As palavras embrulharam-se numa bola descomunal na garganta, e de boca aberta parecia que iria gritar, mas fechou-a cansado num sussurro quase imperceptível:
-Podia-me dar uma esmola....?, disse quase em surdina.
Senti uma tontura enorme que quase me fazia cair, um aperto tão sufocante que até me fez doer a alma com a pressão das toneladas de quilos daquelas palavras.
 
Aquele homem que imaginava eu tivesse passado a sua vida em festas glamourosas, altivamente respeitado, talvez até um diplomata ou militar de carreira, carregava um peso nos ombros que lhe tolhia a voz num bafo fraco.
Virei-me de soslaio, mas desviou o olhar trémulo para o chão.
-Desculpe...não percebi...-insisti eu.
Voltou a inspirar como que a ganhar fôlego para enfrentar um pelotão de fuzilamento, e repetiu aquilo em que eu não queria acreditar:
-Podia-me dar uma esmola por favor...?
Os seus olhos brilharam de lágrimas que não transbordaram, contraiu os maxilares com tensão, e como um desabafo rouco, profundo e visceral, disse com raiva contida entre-dentes:
-Tenho fome...
 
Naquele momento senti impotência, revolta, injustiça, repugna pelos líderes que governam o meu país e não o país das pessoas. O país das pessoas que trabalharam, que lutaram, que construíram uma vida de retalhos, agora reduzida a farrapos e sem dignidade na memória dos outros. Somos nós que fechamos os olhos a estes dramas individuais, esta decadência humana,  só porque já não produz, porque já só tem custos, porque já só apenas é um número a caminhar para o zero.
 
Lavada em lágrimas apetecia-me abraçar aquele homem e dizer-lhe que não estava só no mundo, que as dificuldades da vida superam-se, que teria uma família, que o passado brilhante tem um futuro, e que eu iria lutar por pessoas como ele.
Peguei na carteira desorientada e dei-lhe tudo o que tinha.
Agarrou-me nas mãos e soluçou, evitando-me:
-Obrigado menina, muito obrigado, que Deus a abençoe...
Virou-se, e foi.
 
Tinha envelhecido mais vinte anos, e fugia curvado da vergonha como se a própria sombra o fosse caçar. Vi como no seu rosto corriam lágrimas de humilhação e frustração, assentes numa dignidade tão quebrada como as suas costas.
Para onde iria? Qual seria o seu refúgio? Como se vivem estes dramas escondidos do mundo?
Os transeuntes passavam indiferentes a toda está miséria, a este insucesso da nossa sociedade. Ninguém reparou que um senhor chorava. Ninguém perguntou ao senhor porque chorava. Ninguém ajudou o senhor que chorava, porque nem sequer o viam.
Ninguém o via, porque todos estavam ocupados a verem-se a si mesmos, a não perder tempo com algo que as pudesse atrasar a elas próprias. Como se tivessem de chegar a algum sítio imaginário, não importando se algo ou alguém ficasse abandonado. Sabendo que esse alguém poderiam ser eles próprios no futuro, e que deixando-os para trás também estariam a deixar um bocado de si. Um bocado daquela dignidade e compaixão que distingue os homens das lesmas.
 
Atrás de mim, um qualquer palerma esbracejava e apitava para que seguisse em frente...
 
Aqueles minutos tinham posto o meu contador da vida a zeros. Sou uma pessoa diferente agora. Não sei se melhor, se pior, se reactiva, mas seguramente atenta e sensível ao mundo que muitas vezes nos é invisível...