quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A fonte "Bruta Seca"

A água deixara de correr naquela fonte fazia muitos anos. Tantos quantos os que o pai da irmã da Anita estaria em parte incerta. Saiu para comprar cigarros e nunca mais ninguém o viu desde então. Por vezes, dá-se o acaso da notícia de algum viajante que diz tê-lo avistado por terras de Bouro, logo se lançando um boato de que Aníbal voltava rico e próspero, para assumir a vergonha da paternidade daquela filha que sabia não ter dele sangue.

Mas foi mesmo no pico do verão que tal façanha se deu. Primeiro uma humidadezinha que apenas empapava, depois um fiozinho tímido de água, para ao fim de três dias jorrar uma fonte tão pura e cristalina quanto se dizia a mulher de Aníbal. A fonte "Bruta Seca" como lhe chamavam, decidiu abrir de novo as goelas da terra, e lançar a água mais perfeita e milagrosa do mundo.

Logo o manco decidiu bebê-la e andou. A cega molhou a cara e começou a vislumbrar a sua na poça que restava. O maluco declamou Pessoa em verso e prosa, e até o leproso suas chagas curou com uns pingos que lá caíram. Só milagre não reconhecido foi o da mulher de Aníbal, que dizia ter emprenhado ao lavar-se entre partes, com a dita água da fonte.

A notícia espalhou-se como um caminho de peças de dominó, e toda a gente das aldeias vizinhas se encaminhava em romaria para ver tamanha obra de Deus. Ou da Terra..
Depressa longas filas de espera se formaram para encher bilhas, vasilhas e tudo o que pudesse arrecadar aquele líquido abençoado, para depois o usar, vender ou negociar em terras daquém e dalém.

A carrinha da câmara fartava-se de colher amostras para comprovar a sua salubridade, mas quem atestou a pureza do produto foram uns americanos que por lá apareceram. Vieram em três jipes de vidros fumados, saindo de dentro com uns fatos assépticos brancos e umas sofisticadas malas que abriam com um código cifrado. Os óculos escuros não permitiam vislumbrar para onde dirigiam o olhar, mas de porte altivo seguiam em frente sem respeitar filas.
-"Filhos da p*%#, dos gringos, acham quisto é deles!"

A água era mesmo boa e podia usar-se para qualquer princípio, meio e fim.
O caudal da fonte aumentava a cada jorna, servindo de rega e utilização comum para todos os habitantes em redor.
As peregrinações de gente que acorriam ao local para ver a primeira fonte santa do país, redundavam num negócio florescente de frasquinhos de amostras benzidas, de réplicas da fonte bruta seca, para além dos habituais relógios, esferográficas, lenços, guarda-chuvas, t-shirts, cachecóis, atoalhados, todos com a imagem do Papa a benzer a dita fonte.

Em poucos meses, uma tal dinâmica se gerou em volta da fonte, ao ponto de transformar uma aldeia que outrora albergava uma vintena de famílias remediadas, numa amplificação da sua existência para uma autêntica urbe com cerca de meio milhão de almas. A parafernália instalada, sugava e explorava todas as vertentes possíveis e imagináveis relacionadas com a água...

Assim, os prados verdejavam a cada gota, as colheitas eram às meias dúzias por ano, e até frutas tropicais cresciam naquele interior tipicamente beirão.
A vida corria com prosperidade, e no tempo em que as cegonhas vêm e vão, coisas muito estranhas começaram a acontecer...

Tudo o que lhe era relativo, redundava em abundância e progresso, mas quem começou a notar nos poderes absolutos foi a mulher de Aníbal...
Costumava ir de madrugada cedo, ainda a fonte parecia adormecida mas sempre a jorrar. Os animais aproveitavam a altura de calmaria humana para saciarem a sede, e a mulher de Aníbal pôde constatar o quão transtornados ficavam ao beberem da dita santa fonte.

Os cães passavam a miar, as vacas assobiavam como passarinhos, o porco da tia Matilde recitava de cor Pessoa, as rolas vendiam a teoria do fole, e até os mochos contavam anedotas às formigas. Estes efeitos duravam apenas alguns minutos, mas foram suficientes para que a mulher de Aníbal pensasse que a água também lhe estaria a afectar os joelhos artrósicos.

Correu assustada e começou a reparar na população local. Afinal não eram os seus olhos, mas o merceeiro tinha mesmo escamas, a Julieta pregava aos sinais de trânsito, o cedro da praça em vez de folhas dava plumas, o pároco fazia ballet no coreto, e até o jumento de Maria fazia bostas da altura de um adulto!
Ainda bem que naquele dia não tomara água...
De repente a aldeia tinha-se transformado numa fantasia, talvez saída de um mundo de Alice.

A insanidade continuou assim, dias a fio, com a aldeia num tropel incessante de loucuras e personagens transformadas, desde o alucinante ao burlesco.
Rádios e jornais de todo o mundo colocavam a agora macro-aldeia no centro do foco internacional, centenas de jornalistas acorriam para relatar o feito mais mirabolante ou a personagem mais bizarra em que se tinham transformado os habitantes locais.
Médicos, físicos, químicos, cientistas, agências de segurança! Todos instalaram laboratórios de pesquisa e intervenção, na tentativa de perceber o sucedido.

Andar nestas ruas era como passear numa qualquer cidade do cinema, com dragões, fantasmas ou cowboys à mistura.
Mas o ritmo dos acontecimentos sucedia-se como uma descida de montanha russa, e quando a aldeia já estava cercada pelos militares, com controlos de entradas e saídas rigoroso e totalitário, eis que algo de surpreendente de novo acontece...

O grande jorro de água encolhia e encolhia a olhos vistos. As pessoas inquietavam-se e aproveitavam cada gota expelida pela rocha dura, como se a última fosse. Mas o sinal estava dado, e irremediavelmente a fonte estava a mirrar. Em poucas horas transformou-se num fiozinho de água, reduzida apenas a uma porção do seu esplendor, ficou intermitente, e por fim quando já todos se acotovelavam para sugar o resto, uma humidadezinha foi o que sobrou durante duas luas.
Findos dois dias a fonte ficou tão seca como folha em outono frio!

Como num de repente, os aldeões e mulheres voltaram à normalidade, os bichos comportavam-se como tal, o circo mediático montado desapareceu, os noticiários já abriam com uma qualquer guerra de homens, e em poucos dias a rotina voltava ao meio rural.

Nunca ninguém explicaria o fenómeno da fonte "Bruta Seca", nem tão pouco os livros de escola se lembrariam sequer que aquela aldeia alguma vez tivesse existido...

Tudo parecia bem de novo, e até Aníbal regressou aos braços da mulher...

domingo, 23 de setembro de 2012

Campo da bola




Esperara muitos anos por aquela notícia, mas agora era tarde demais.

Quando era criança brincava muito na rua. Essa rua que agora tem carros mal estacionados, e onde os cocós dos donos salpicam os passeios já estreitos. Deviam fazê-los mais largos para que houvesse espaço para todos. Cocós e pessoas.

Também tinha pena de nunca ter tido um cão. Mas nunca o tendo, pelo menos o consolo de não ter de lhe apanhar os cocós...

Sempre que vinha da escola, saltava o muro curto do estádio do Atlético e marcava um golo atrás do outro, em fintas imaginárias e livres direitinhos ao ângulo.
As bandeiras, os cachecóis e os apitos, rejubilavam com mais uma fantasia de grandeza que o transformava numa estrela do nada e do ninguém.

Cresceu com a mágoa de nunca ter visto o seu campo da bola com relva. Assim como quem morre com a mágoa de nunca puder ter visto as suas próprias costas.
Tanta gente que morre com mágoa e magoada..

Até ele, ali estendido na cama à espera que o chamem pela última vez.
-Não te zangues que não estou a fazer ronha! A preguiça entranhou-se em mim e agora tenho de esperar pela notícia!

Quando uma vez o Benfica veio jogar, até a erva daninha deixaram crescer no meio campo. Mas foi sol de pouca dura, porque assim que as águias abalaram, deixando a maior enchente da história do Atlético e a maior derrota desde a sua fundação com nove golos do pantera negra, a terra continuou a bater tanto no meio campo, que mirrou a pouca erva ruim que pincelava de verde o chute inicial.

-Estas dores matam-me de dores!
E eu prá aqui virado, porque o lençol se enrodilhou e não me deixa virar para oeste, que é onde se põe o sol. Que ironia! Agora que me vão apagar a luz de vez, estou virado a nascente.!
-Até me dói de rir!
-Também posso virar a cabeça para Sul que dizem é mais quentinho?

-Espera! Tás com pressa homem?
-Mas afinal quem sofre mais? Tu da pressa da espera ou eu com dores?
-Não percebes que estou esperando só por isto?

Uma vez veio um engenheiro da capital, ver o que se podia fazer. Tinha de ser muita maquinaria pesada, que os tapetes de relva fofa aos quadrados custavam uma fortuna, e o presidente da câmara não queria gastar o orçamento do anexo da sua casa para ajudar o clube da aldeia.

Tratou-se então de arranjar o tractor do Chinguilha para levantar terra, assentar com o rolo compressor, e finalmente lançar as sementes da relva que iria germinar nos buraquinhos milimétricos ponteados pelo ancinho.

Mas o Chinguilha ficou de boca à banda e o corpo deixou de lhe obedecer de repente!Primeiro uma perna bamba, o braço, a boca de lado, sem falar, mas quando espumou e começou a revirar os olhos já estava arrumado. Disseram que lhe deu uma trombose, ou um avc no entender dos entendidos, pelo que como ninguém sabia mexer no tractor, a sementeira foi-se...

-Ai!!! Porra pra isto mais a teoria do fole! Outra puta doutra guinada!!!"
-Raios partam esta doença que nos rói os ossos e come a carne por dentro!
-Quando chegar aí acima, vou-te perguntar se fizeste o mesmo ao camarada Juca da sapataria!

Tenho mais de mil artigos e recortes do atlético desde que sou vivo e agora quase morto. Pra que é que será que guardamos tanta trapalhada inútil? Temos medo que se nos borre da memória quando envelhecermos e não soubermos nomear um qualquer presidente? Sim, porque nomear presidentes é uma prova de lucidez para além do patriotismo. Lembrar-se de ninguém que nada fez...

Como os recortes! Não falam, não reclamam. Cristalizam os golos e resultados para todo o sempre. Será que alguém vai aproveitar aquilo para o museu?

-Caramba! Tardavam em chegar com notícias. Daquelas que eu esperava ouvir!
Uma cama de hospital não tem bonitos adereços onde um se possa entreter..

Uma vez foram à aldeia do meu pai e levaram também umas notícias. Daquelas que ninguém quer ouvir. Os telegramas do ministério da guerra vinham buscar os moços e o seu sangue.
Nos ouvidos das mulheres ficavam a retumbar aqueles momentos imensos, que duravam a distância do calor de uma terra que diziam ser em África.

Não sei se estão a chegar mas já me sinto cansado nesta enfermaria que tresanda a éter. Os olhos que pesam toneladas e um respirar ao acaso, como se me lembrasse vagamente de inspirar fundo de quando em quando.

Ao esforço do ar a entrar, inversa a facilidade em sair, e a expectativa da audiência em ver se havia outra golfada de oxigénio miraculosa por parte do moribundo paliativo.

-Parece que é desta!
Mas se ainda penso, não foi, não é...?
Mas um pensar já vazio, cansado de sofrer, um corpo definhando e um revirar de olhos quase como o Chinguilha. Não aguenta mais. Coitadinho..

A porta abriu-se lentamente num prenúncio.

Arnaldo ofegante e a chorar de alegria, anunciou que o campo de relva do Atlético tinha finalmente sido inaugurado e benzido!

O silêncio abateu-se no quarto e os rostos transfiguraram-se..
A enfermeira abanou pesadamente com a cabeça.
Fechou-lhe os olhos.
Plácida e serenamente cobriu-o com um lençol.

Podia ter frio na sua última viagem.

Adeus dores...

domingo, 9 de setembro de 2012

O Fiel


 
Acordava cedo porque assim o dia rendia mais e melhor. Mal saltava da cama, fazia a sua higiene habitual, tomava o pequeno almoço já servido, e saía de casa pela porta dos fundos para que ninguém o apanhasse.
Era vê-lo a caminhar pelo passeio com o seu porte altivo e confiante, como se o dono do bairro fosse.

Ziguezagueava pelos transeuntes como uma criança, e todos refilavam com ele quando por vezes lhe apetecia fazer uma linha recta. Salvador ignorava tudo e todos, serpentando apenas pelo prazer das curvas e contracurvas, como se um labirinto imaginário percorresse.

Por todas as casas ajardinadas que contornava, os cães ladravam-lhe com ar feroz e violento.
Ao aproximar-se da mansão da sua Aninhas, passou por um portão entreaberto de onde saiu um quatro patas enorme, pronto a abocanhar-lhe o rabo. Só teve tempo de correr os 100 metros em estilo olímpico para não servir de almoço naquele dia...

Ficou a arfar mas valeu a pena, porque despistou o doberman e o dono que o seguia.

Cansado, reparou que estava à porta da lanchonete da Rosalina. Entrou, e dirigiu-se ao balcão para pedir um pouco de água fresca, mas depressa veio o empregado com ar enfurecido gritando "fora daqui já!", pelo que rapidamente deu à sola.
De facto já tinha ouvido em casa que na lanchonete da Rosalina já não se fiava...

Seguiu o seu rumo em direcção ao jardim municipal, passando pela florista, pelo relojoeiro, e pelo veterinário que simpáticamente lhe acenou como se já o conhecesse.

Nestas deambulações, pensava ao acaso como seria a vida se ele próprio fosse um gato? Saltaria de muro em muro à procura de gata, comeria latinhas gourmet, lamber-se-ia todo-que nojo!-, eriçar-se-ia todo ao ouvir Tony Carreira, e se calhar falaria francês ou tocaria piano. Que vida mais burguesa e inútil!

Perdido em delírios divagatórios, encontrou por acaso Walter, um seu velho amigo da altura em que moravam no mesmo hotel. Seguiram rumo juntos, discutindo o caso tão badalado do momento, em que duas gaivotas embateram no cockpit do concorde. Que animais tão estúpidos, pensaram..

Enquanto se enredavam nos meandros de conversa, cruzaram-se com um bando de emigrantes afegãos, de porte altivo, magros e esguios, com a sua cabeleira farta, mas  estes nem lhes dirigiram palavra. 
-Pfu! Exclamaram. Nem sequer têm onde cair mortos, mas com aquele narizes afilados também não chegam longe!

Despediu-se de Walter, que ia comer um sorvete com uma amiga comum, e perdeu-se nos seus pensamentos loucos percorrendo a  avenida frondosa e em flor.

Nunca pensou em dissertar sobre futilidades, ou só sequer sobre devaneios alheios, como acontece com a teoria do fole, mas o que é certo é que o requinte de pensamento construtivo e delirante de Salvador estava ao rubro.

Achava-se um homem forte e bonito, louro, de olhos claros, que fazia tanto sucesso com as mulheres como um iPad no meio de japoneses. Imaginava-se em banhos de imersão com champanhe eslavo, e um quarteto de violinos tocando o hino da sua terra. Estes sonhos, compulsivamente fizeram com que se decidisse a submeter a uma plástica e retirar aquele ar boçal que possuía. Entrou na clinica de reconstrução decidido a alterar a sua verdadeira condição, mas assim que abriu a porta, foi literalmente enxotado à vassourada pela própria empregada da limpeza.
Acaso não estaria decente? Ou será que era tão feio, tão feio, que até assustou a rapariga?
Hum...se calhar a própria da empregada negra era racista...

Não faz mal! Decidira tirar o resto do dia para se cuidar e cruzou a estrada entrando no   SPA da Lolita.
Aqui sim, foi muito bem recebido! Era só abraços e mais abraços, até que o levaram para uma sala zen e o puseram na banheira de hidro-massagens a relaxar um pouco. Seguiu-se um bom duche e uma massagem com sabonete de lavanda, esfregando-o uma tailandesa de braços robustos, que findou a sessão com um corte de cabelo moderno e arrojado.
Ah! Assim sim, a vida vale a pena!
Despediu-se dos restantes clientes e da própria Lolita, que lhe abriu a porta, e acenando rematou num sorriso aberto:
-não se preocupe, que depois ponho na conta do costume!

O dia tinha sido longo, e Salvador dava graças aos deuses pelas benesses que detinha.

Virou a esquina e entrou na rua de sua casa.
Entrou pela mesma porta dos fundos daquela manhã, e foi-se deitar de rabo a abanar aos pés do seu dono suspirando:
-que bom é ser cão....!

sábado, 4 de agosto de 2012

Fado



Não sei se alguém sabe onde, e quando nasceu o fado, mas todos são unânimes em afirmar que ele é a voz do povo. 
Porque dele nasceu, mas sobretudo porque é ele que o canta, e é ele que o faz perdurar nos nossos imaginários perfeitos de recordações.

O povo português tem uma profundidade que o fado espelha bem: a melancolia, a saudade, a jovialidade, o atrevimento, a sofreguidão do sentimento na voz do fadista.
Ainda bem que o mundo reconheceu um património que é nosso, mas que de tão humano que é, passa a ser da própria humanidade que o acarinha.

Os patrimónios imateriais são designados, porque protegem e muitas vezes blindam as ameaças ao próprio produto original. Para além de serem uma forma de divulgação e promoção daquilo que pode ser difundido como género de qualidade e peculiaridade.
Mas o problema é que os nichos de cultura própria, são muitas vezes rodeados e contaminados de uma cultura global e globalizada, que se muitas vezes imprime valor acrescentado, na maioria das situações acarreta uma padronização aculturada daquilo que é corrente e banal. Alguém conhece o vinho do Porto, made in Califórnia?

Será que o fado vai aguentar esta investida universal? Será que se vai sentir ameaçado pela invasão de género depois deste reconhecimento mundial? 

Nos últimos anos têm sido várias as experiências e cruzamentos musicais com outras sonoridades, e de uma forma natural com o flamenco e o tango, géneros também viscerais e profundos. E profundos no sentido de que envolvem não apenas a música, mas sim uma filosofia de vida que lhes serviu de base de sustentação. 

O fado vive-se, respira-se, sente-se e canta-se porque os cantadores e ouvintes têm todas estas premissas nas suas veias. É por esta razão que ainda não se sente ameaçado, porque nunca será pertença de ninguém.

Pode haver fado experimental, fado com orquestra, fado com ritmos latinos, fado com ópera, fado com pop e rock, mas será sempre um fado com sabor a...vestindo-lhe apenas uma jaqueta, como quem se adorna para uma festa de estilo diferente.
O fado só se perderá, se um dia se perder a essência do viver português ou se a nossa vivência se adulterar no conteúdo. Se os macdonalds substituírem as tasquinhas, se as guitarras portuguesas forem electrificadas, se alfama morrer para um condomínio hermético, ou se o petisquinho for comido pelo barbecue.

No outro dia passando pelas ruas estreitas da mouraria, dei com uma gaiata a ouvir Amália no seu cante mais profundo e tocante. Chorava sentida, como uma criança não sabe sentir o chorar da curta vida, porque a mágoa ainda não lhe ensinou.
-porque choras menina?
-porque esta guitarra que toca era do meu avô, porque a minha mãe ouve esta música todos os domingos, porque a canto no restaurante do meu tio, porque as letras são lindas, porque este é o fado da minha vida!

Esta menina é a fachada do que nós somos: construtivamente elaborados na simplicidade!

Façamos um hino ao fado, aos seus compositores, aos seus músicos, aos seus intérpretes, aos seus criadores, porque todos o merecem.
Se ele foi escolhido para património mundial, é porque estes fundamentos assim o justificam e devemos para além de rejubilar com isso, reforçar a sua identidade e replicar o seu âmago, pois assim estaremos a preservar a alma e força como povo.

E para que finalmente a teoria do fole contribua para tal desígnio, aqui fica o mote:
"Que Viva o Fado!"
"Que não troquem nunca as vogais ao Fado!"

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Mundo Paralelo


As rotinas que detinham cumpriam-nas com rigor e pontualidade. Saíam os dois para o trabalho à mesma hora, encontravam-se para almoçar de marmita sempre no mesmo sítio, e voltavam os dois para casa no 37 que acabava a noite a resfolegar do esforço, na última paragem da Musgueira norte. Nunca tinham ido jantar fora, o cinema era para eles teatro barato, e as únicas loucuras que se permitiam era passear nas barquinhas do lago da cidade, ou ir ao circo no Natal.
 
Num destes episódios repetidos da vida, e no trajecto tortuoso para casa, calcorreando avenidas largas que alternam com becos de estreita manobra, chegaram ao cruzamento da avenida Pôncio de Loyola com a Mestra Lufanica.
 
No preciso bico da esquina, encontrava-se um duende dos países baixos da Lapónia, que comia uma arrufada de gengibre. Este era um sinal que ambos tinham de parar, e declamar a bem sucedida teoria do fole!
 
Assim o fizeram, e prontamente se dispunham a continuar quando da voz do anão verde saiu um fininho mas decidido:"Alto!"
 
Abrandaram em passo lento, estacando a um palmo da criatura verde e verrugosa.
 
Ele tinha decidido que Alfredo teria de fazer o percurso da rua do Turragulho até a Praça de Paquita Sonajera, para assim chegar a casa.
 
Toda a gente sabia a fama daquele percurso, e Alfredo teria de abandonar a cara-metade para seguir rumo, na esperança de chegar são e salvo.
 
Nestas alturas, havia sempre cabines públicas dispersas pela cidade, apetrechadas dos necessários fatos e restante indumentária para esta aventura.
Vestiu os ténis supersónicos, as cuecas de lã caprina, e o fato-macaco cosido com retalhos de panos de cozinha. Deste inglesíssimo outfit, fazia também parte uma saia de tule cor de rosinha, e um taco fofo de basebol.
 
Beijou a testa da dita - e apenas isso da cuja - desatando a correr pela avenida que desembocava na Gran Vía, fugindo dos quadrados rosa da calçada, que salpicavam o chão como se ali tivessem aterrado de emergência.
Cruzou-se com vários missionários que corriam à mesma velocidade, e lhe gritavam conselhos como: "roda a mangueira para oeste"; "arrefinfa-lhe uma marretada ao anão da dízima"; "grita: culélé! bulúlu! muluku! no jardim".
Com estas dicas talvez se safasse...

A Gran Vía estreitava-se ao longo do percurso, teimosamente avessa ao nome que detinha, acabando numa rotunda calcetada, onde o leite derramado pelo leitoduto amaciava a entrada dos corredores. Parou e avaliou a situação, reparando que a mangueira do leitoduto estava apontada para nascente. Rapidamente saltou a dominá-la como quem faz uma cernelha, virando-a para oeste e alagando as entradas dos afluentes viários da rotunda Maior. Esta manobra permitiu que os leiteiros se deslocassem, deixando caminho livre para Alfredo. Toca a correr!

A saída que pretendia, dava para um jardim colorido de massas fettuccine e farfalle. Embrenhou-se naquele bosque como um desvairado, abanando as suas folhas e frutos que caíam no chão, prontos a serem colhidos para uma tomatada de pasta al dente. O barulho fazia com que os passarinhos de pés de ornitorrinco e corpo de minhoca, acordassem do seu letargo, gritando coisas como:"bilele"; "ramimi"; "gudúra", que Alfredo sabia serem o sinal de alerta para os faisões assassinos da cantina italiana.

Não podia deixar que estes estúpidos pássaros arruinassem a sua performance, de maneira que começou também ele a gritar: culélé! bulúlu! muluku!, na expectativa de baralhar os faisões e acordar as mulas do reino da candonga. Estes seres tinham a forma de um saca-rolhas, deslocando-se em parafuso e tocando um sininho à medida que progrediam.

Reagiam sobretudo aos culélés, saltando das suas tocas e engolindo as aves raras barulhentas e incomodativas, ao mesmo tempo que soltavam uma nuvem azul perfumada que se erguia nos céus como uma baforada de Chanel nº5,7.
A última linha do jardim era cercada por plantas carnívoras que trituravam tudo, excepto restos de Lili Caneças. Alfredo aproveitou o embalo da corrida e deu um mortal à frente, sentindo os clacks-clacks dos dentes carnívoros a quererem mordiscar-lhe o traseiro, por uma questão de milímetros.

Aterrou de rabo numa fina faixa de areia que o amparou de partir umas costelas, mas que lhe ofereceu uma grande dor de cú. Assim caiu, assim ficou a olhar! A única saída daquele deserto era um tapete rolante gigantesco que acelerava em movimento contrário sempre que se tentava avançar. Assim que Alfredo corria para cima da rolanda, esta acelerava em movimento inverso, cuspindo-o de volta à areia fofa! Como sair dali?!
Sentia-se encurralado porque para trás impossível cair nas garras das plantas carnívoras, para os lados era só deserto, e para a frente que era o caminho, tinha um tapete rolante enorme que não parava e rodava para trás!

Justamente ao lado da entrada do tapete, estava um anão que tocava sem parar um realejo estridente. Aproximou-se devagar e perguntou:
-que fazeis aqui anão?
-ora! Sou o anão da dízima e tendes que a dar!-disse sem parar de dar à manivela
O rápido pensamento de Alfredo fê-lo agarrar no taco de basebol, e cá vai malho na calva do anão da dízima! Foi tão forte e certeiro que o enterrou direitinho até ao pescoço, parando o manípulo da caixinha estridente e com isso retirando a energia ao tapete castrador. Tinha conseguido pará-lo sem saber como!
 
Correu os últimos cem metros como obikwelu em tartan, cruzando a meta de braços no ar num êxtase de chariots of fire.
Caiu directamente num poço, escorregando em velocidade estonteante por um sistema de tubos torneados, que o cuspiram às cambalhotas na sua rua.
Sacudiu o pó que se acumulara pelos caminhos, e olhou à volta...
Os lampiões estavam acesos, ninguém passeava no crepúsculo, e as luzes nas janelas adivinhavam o conforto das famílias nos seus ninhos.

Subiu os degraus de sua casa, abriu a porta e abraçou-a.

Nesse dia tinha superado a prova rainha do mundo paralelo!

Parabéns!

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Destino


Já passava da meia-noite, e naquela estrada ampla só se viam as luzes que pontilhavam a negra paisagem, entrecortada pelos faróis de outros viajantes que vinham do meu próprio destino. O caminho já era longo, e a previsão de chegada também estava longe.

Nestas alturas aproveito para pôr os telefonemas em dia fazendo a viagem em companhia, ou então opto pelo aleatório do moderno iPod, que descarrega as músicas com a imparcialidade fria das máquinas.

Optei pelo cantante, que tão depressa emitia a alegria dos acordes, como a melancolia das baladas que nos fazem sorrir e fixar o traço contínuo do asfalto.

Pequenas luzes intermitentes brilham lá no alto.

Para onde irão aqueles aviões? De onde vêm? Quem levarão lá dentro?

Consigo imaginar o emigrante que vai tentar a sua sorte, a sobrinha que passa férias com a tia do Brasil, o chinês que negoceia fogo-de-artifício, a modelo contratada para uma festa nas arábias, o padre que vai em missão para um qualquer lugar remoto, a madame que compra tudo em Paris, ou até o sobrinho-neto que vai ao funeral da tia-avó.

Quantos milhares de vidas se cruzam e entrecruzam, por encruzilhadas paralelas, e muitas vezes fotocópias umas das outras? Neste preciso segundo que escrevo esta frase e que vocês a lêem, alguém torce um pé, alguém come um bolo, alguém rebola na relva, alguém disserta na teoria do fole, alguém finge que nada acontece no outro lado do mundo.

Afinal não estamos sós!

Por isso é tão difícil inovar. Porque alguém já pensou nisto antes, ou melhor, está a pensar neste momento!

Somos tantos a pensar que até me espanta como há pessoas que conseguem inovar sem renovar, romper com o pensamento circular e fechado, permitindo-se ver mais além. São com certeza elementos com uma visão não redutora ao nível da terra. Imaginar-se ave e elevar o ponto de visão da terra para o céu como se a sobrevoássemos, é um exercício que todos podemos e devemos fazer. Temos mais amplitude, maior visão global e uma maior previsão dos movimentos.

É como ver um jogo de futebol da linha lateral ou vê-lo do terceiro anel. No primeiro somos próximos, mas redutores e com pouca abrangência. Nos segundos, temos uma noção exacta e um filme corrido daquilo que discorre na fita da vida.

Este é por isso um grande exercício a praticar em todos os momentos. Não focalizamos o problema ou obstáculo, mas vemos para lá da cerca e distribuímos a perspectiva, podendo até nos comparar a outros na mesma situação, e que se situem nas nossas antípodas geográficas.

Passei agora a portagem, e o revisor trouxe-me de volta aos meus pensamentos mecanizados.

Parar, ticket, pagar, receber cartão de volta, prendê-lo entre dentes, meter primeira, acelerar e entrar de novo na via do pensamento distractivo.

Este caminho asfaltado tem uma meta e um alcance definido, mas o nosso próprio caminho tem tantas vicissitudes e interlúdios que dependem bastas vezes de pequenos pormenores. Se eu me atrasar três segundos posso não apanhar o comboio daquela paixão, mas posso no mesmo timing embarcar num amor infeliz. O empenho e a vontade têm marcante preponderância no nosso rumo, mas o acaso das coisas troca as linhas tal como nos caminhos-de-ferro as mudanças de agulhas definem os apeadeiros e as estações de chegada.

No outro dia vinha a atravessar a rua e parei a olhar para trás, porque senti que alguém me chamava em surdina. Nessa fracção de tempo retomei a marcha e não fui apanhado por um Toyota, porque aquela voz me segurou um milésimo de segundo. Sorte? Adivinhança? Premonição? Ou apenas Destino?

Quem sabe...?

Entrei na recta final da minha viagem programada! Esta discorreu sem percalços e sem contratempos de percurso, graças também aos acasos dos outros caminhos que não se impuseram ao meu.
Estacionei, puxei o travão de mão, desliguei o motor e fiquei uns segundos recostado, a imaginar de como seria a vida em amarelo!

Chego à conclusão que ela é maravilhosa, às cores e ao vivo...








quinta-feira, 17 de maio de 2012

Ops!



A azáfama da urgência era caótica desde que tinham fechado as extensões de saúde dos arredores, e todos os dias toneladas de doentes eram despejados à pazada na porta daquela que se dizia a maior, e melhor urgência do país.

Uma pequena entrada dava acesso a um serviço cheio de remendos e acrescentos, com planta de construção datada dos anos cinquenta, e claramente fora de toda a racionalidade de eficácia e eficiência da era moderna.

Médicos, enfermeiros e auxiliares eram sempre poucos, as horas de espera ao atendimento revelavam as dificuldades, e serviam de prova de resistência aos doentes que menos se queixavam na hora da inscrição.

Se na primeira linha de abordagem, as tosses e febrículas se misturavam com as dores vagas e os entorses; no internamento, as tromboses, os enfartes e as hemorragias, eram vigiados e tratados com maior afinco e vigilância.

Às cinco da tarde, dava entrada uma senhora trazida pelos bombeiros da Musgueira, aparentando uns sessenta e poucos anos de idade sofridos, já muito difíceis de adivinhar na cor negra de pele e nos sulcos profundos das rugas da face. A sua atitude era calma, o seu discurso era imperceptível e ficava fixamente a olhar para nós respondendo guturejos cantados.

Foi inscrita com os documentos que aportava, e depois de muita auscultação e palpação, a D. Adelaide passou a ser conhecida pela maca doze, que aguardava o raio X à cabeça.

Parecia responder ao nome, mas logo vinha um chorrilho de palavras esgrouviadas que até nos pareciam insultar, não fosse a entoação suave e atitude serena.

De uma das portas semicerrada, ouvimos o auxiliar de acção médica aos gritos do fundo do corredor:

-"Ó Juvenal! Traz daí a velha da maca 12 prà TAC!"

E assim foi a Dona Adelaide, que mirrava na cama de vergonha cada vez que lhe perguntavam o que quer que fosse.

O exame não deu nada e por isso decidiram interná-la para observação e vigilância, com o pomposo rótulo de acidente vascular cerebral isquémico. Ficou num corredor, a seguir à maca 11 com o carimbo de hemorragia digestiva, e depois da maca 15 com a senha de enfarte do miocárdio. Todos pareciam comunicar menos a D.Adelaide, que diziam ter afasia e lhe custava a entender-se e explicar-se como deve de ser.

Aquelas noites eram frias, e no corredor sentia-se a brisa que entrava cada vez que as portas automáticas se abriam para engolir mais uma série de candidatos a doente, triados de pulseiras verde, amarela ou laranja, conforme a seriedade da enfermidade. Com o sono entrecortado, lá descansaram todos um bocadinho, que o cansaço aperta naquelas horas, estejamos mais ou menos doentes.

No turno da manhã, grandes jarros de metal amolgados pelo uso do combate diário, distribuíam o leite em canecas de loiça barata e tosca, enquanto as carcaças com manteiga eram repartidas pelos estropiados auto-suficientes, segundo as regras de higiene da teoria do fole.

Os serviços seguiam-se uns aos outros por turnos de oito horas cada um, e tanto os médicos como os enfermeiros registavam nas suas avaliações e observações consecutivas da D.Adelaide, coisas como: "doente sem défices motores", "afasia de compreensão e expressão", "duvidoso desvio da comissura labial", desconhecendo o povo que tínhamos uma "comissura" no corpo e ainda para mais na boca!

No dia seguinte entrei ao serviço, e depois de dar uma volta aos doentes debrucei-me sobre qual seria o destino a dar à D.Adelaide. Uma senhora daquela idade, apesar de se mexer sem problemas, iria ter com certeza muitos handicaps a ultrapassar nas suas actividades de vida diária. Temos de convocar a família! Pensei eu.

Como fazia o turno da tarde que coincidia com o horário das visitas, assim que vi alguém ao pé da maca 12, lancei a mira e fui. Era uma jovem de raça negra, alta e esguia,  com traços finos e delicados, extremamente bem vestida, que facilmente passava por princesa de uma qualquer tribo africana.

Com muito meu espanto, as duas pareciam falar animadamente, embora não me conseguisse aperceber do que é que falavam, porque a confusão das visitas era tal, que não permitia ouvir com clareza a aquela distância. Curioso como pelo menos gesticulavam em consonância, parecendo até que estavam em amena cavaqueira...

- Boa tarde!

- Boa tarde, Senhor doutor! Disse, rasgando um sorriso nuns dentes perfeitamente alinhados como albas teclas de um piano sedutor!

- A senhora é familiar da D.Adelaide?-Gaguejei, perante o impacto!

- Temo dizer-lhe que a sua avó não consegue falar nem entender o que diz porque teve uma trombose no cérebro! Mas neste momento está estável...

- Como diz doutor!!?- disse levantando o tom de voz e desvanecendo aqueles marfins alinhados.

- Pois...mas pelo menos anda sozinha e faz a higiene por si própria.. Retorqui, tentando fazer reaparecer aquele sorriso de novela.

- Sabe que por vezes estas coisas...

- Mas que disparate vem a ser este doutor? A minha avó é cabo-verdiana e chegou a Lisboa há uma semana! Ela Só fala e Só percebe crioulo....!!!!!!! E fala e entende tudo como antes....

Nesse momento percebi que a nossa medicina tinha sido fintada pelo dialecto africano .....

PS: história real de uma qualquer urgência real deste real país.