sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Trepo


Vivia em Arroios desde que tinha chegado a Lisboa. Ali foi parar quando desembarcou num país que pouco se parou no seu passaporte. Abriram, olharam para a fotografia quadriculada, confirmaram as feições, carimbo vermelho da República, e nem um obrigado. Como autómatos, limitaram-se a reconhecer o trâmite da legalidade.

Arranjou um quarto numa zona onde os gemidos faziam parte da venda ambulante de carícias de adultos, e onde homens compravam um cantinho de amor. Começou por trabalhar nas obras que lhe davam bom sustento para manter a vida de homem vulgar, gastando em tabaco, bebida e nas vizinhas dos gemidos. 

Depressa resolveu mudar a vida muito vulgar, e começou por lavar pratos no restaurante do senhor Abel. Ficava na baixa, e era um daqueles estabelecimentos em que os empregados se vestiam de calça preta, camisa branca, colete preto e lacinho à moda francesa. Vinicius, como estava sempre a lavar pratos, espreitava quando podia pela janela da cozinha para a sala cheia de veludos e cetins, imaginando-se vestido de lacinho dourado a comandar a sua tropa de empregados de mesa.

Apesar de naquela altura se começar a sentir muito cansado ao longo do dia e das semanas, com febres que iam e vinham, começou a habituar-se a que aquilo fosse normal. Ao fim de alguns meses passou-lhe, e embora o seu cérebro tivesse ficado mais lento sem perceber porquê, até foi promovido para ajudante de cozinha categoria B. Isso implicava que teria de transportar todos os pedidos recém-feitos para o famoso balcão de recolha dos empregados de mesa. Aí começou a perceber que a sua grande mais valia eram os pratos quentes e todos os tachos com uma temperatura acima da média. Enquanto todos os outros ficavam a soprar nos dedos com o escaldão, Vinicius pegava em tudo sem o menor esgar de dor! Parecia o super-herói das travessas!

Este pormenor, fez com que o chefe de sala reparasse nele e na sua performance, pelo que num mês passou para a sala de refeições. Aquele foi um dos dias mais felizes da sua vida, se não contarmos com o dia em que o seu pai o levou ao futebol. 
Recebeu a calça preta, o colete preto, a camisa branca imaculada e o famoso lacinho preto, juntamente com umas notas extra para comprar uns sapatos pretos que se moldassem ao pé. Ficou tão contente que naquela noite arranjou não uma, mas duas companheiras de gemidos que o deixaram literalmente de rastos. Já não era tão novo assim e desde que a mulher falecera de tuberculose ainda jovem, a sua vida de amores fazia-se por pagamentos.

O restaurante recebia clientes da alta sociedade e era conotado com o partido no poder, pelo que depois de umas pequenas instruções de como servir e de como fazer um pouco de etiqueta com os comensais, depressa se tornou num eficiente empregado. O emigrante tinha dourado a sua pílula de sucesso, e ganhou até um tique involuntário de um abanar afirmativo de cabeça que acabou por se tornar permanente. Independentemente de lhe pedirem o que quer que fosse, estava num sim repetido.

Ao fim de algum tempo estava muito eficaz na sua prestação e andava entre mesas com um porte altivo e militar, como se marchasse carregando nos calcanhares e lançando as pernas prá frente em passadas muito abertas. Carregava travessas quentes e pratos a escaldar, coisa que os outros empregados não faziam, permitindo que a comida chegasse às mesas ainda a fumegar. Era um portento de serventia!

A senhora Corte-Real, almoçava todos os dias na mesma mesa e à mesma hora, fascinando-se com o serviço de Vinicius. O seu marido era diplomata e na maioria das vezes estava em missão fora do país,  pelo que se tinha habituado a fazer as refeições fora. Aquele restaurante de luxo era quase uma cantina, onde se sentia em casa e onde os empregados lhe faziam todos os mimos.
-Bom dia Madame Corte Real! Hoje vem muito bonita! Dizia-lhe o porteiro com um levantar do chapéu
-Deixe-me pendurar o seu casaco no bengaleiro- dizia-lhe afável o chefe de sala
-Hoje guardamos-lhe aquela fatia do seu bolo preferido-sussurrava-lhe Vinicius.
Vestia-se de forma impecável, os melhores fatos de alta-costura, o perfume mais cheiroso, mas almoçava sempre sozinha, sem uma amiga, sem um familiar, sem ninguém.
Tinha um carinho especial por Vinicius e gostava muito de falar com quem lhe ouvia o que tinha para dizer e desabafar. Ele chegava naquela passada patética e naquele abanar de cabeça, com o guardanapo dobrado sobre o antebraço,  curvando o tronco em sinal de deferência:
-Hoje temos faisão com arroz de trufas e um consommé de aboborinha, Madame! Penso que vai adorar!
Nesse dia reparou que Vinicius tinha uma ferida na mão esquerda e perguntou:
-Aleijou-se na cozinha Vinícius?
-Foi a levar uma travessa a ferver para uma das mesas, Madame. Agora se fico muito tempo com a travessa na mão, queimo-a. Mas não me dói nada, não se preocupe. Tenho muitas dores é nas canelas e incomodam-me muito estas bolinhas que me aparecem debaixo da pele, mas nada de importante-Disse isto com um sorriso conformado enquanto se retirava.

Corte-Real estranhou muito e ficou a pensar que não seria normal, pelo que decidiu marcar-lhe uma consulta. Tratou de tudo nessa tarde, e na manhã seguinte obrigou o pobre coitado a estar na baixa de manhã cedo com um seu amigo que tinha consultório ali por perto. Fez questão de o acompanhar mas não entrou no gabinete, não fossem as más-línguas congeminar tortuosos pensamentos pecaminosos entre os dois.

O Dr.Almeida era um médico experiente, com uma carteira de doentes imensa, que tinha trabalhado muitos anos em África, tendo inclusive recebido uma medalha de mérito do Governador de Lourenço Marques. Assim que viu entrar Vinicius naquele andar típico e o abanar afirmativo de cabeça, franziu o sobrolho como quem cheira a doença. 
-Sente-se meu caro. Em que posso ajudá-lo?
Vinicius sentiu que podia abrir a sua alma e expor figuradamente os seus órgãos a tão distinto médico, pelo que não se coibiu de contar a sua vida de fio a pavio, sem omitir nenhuma parte mesmo que íntima.


O Dr.Almeida, especialista em doenças sistémicas, infecto-contagiosas, venéreas e do foro neuroendócrino, ouviu atentamente dirigindo o interrogatório habilmente, medindo-lhe o pulso, palpando-lhe as ínguas, auscultando os sopros, diga 33, adivinhando os órgãos internos com as finas mãos e o frio do estetoscópio…
Ouviu, ouviu, ouviu e falou pouco, concluindo de forma vitoriosa:
-Da avaliação que lhe faço nesta anamnese e exame objectivo exaustivo, concluo que o meu amigo só pode ter uma doença que se enquadre: Sífilis Terciária! Uma clássica tabes dorsalis,  as gomas sifilíticas, provável aneurisma da aorta, enfim, precisamos só de confirmação laboratorial para começar o tratamento! Não lhe garanto que fique como era, mas não vai piorar!


Saiu dali cabisbaixo, derrotado por perceber que tudo aquilo com que lutava se relacionava com uma doença. Mas aceitou, agradeceu à Madame o cuidado, e encarou a fatalidade como uma oportunidade de continuar a sua vida. A vida que escolheu.
Vinicius ainda hoje, e ao fim de 20 anos, continua a ser o melhor empregado de mesa daquele restaurante!
Assim foi…