segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Porque ainda é Natal!

A festa começa no primeiro de Dezembro, quando as luzinhas dão cor e brilho à cidade, e o cheiro do Natal chega a todos os cantinhos do Funchal. Aqui, a fobia da época não se mede pelas montras vistosas, nem pela profusão de rechonchudos pais Natal, nem pelo número de gadgets inúteis postos à venda, nem sequer pela idiotice de ter um hipopótamo como figura Natalícia.

O sentido é o da verdadeira festa da família, dos amigos, do convívio, da partilha, da solidariedade, destes e daqueles muitas vezes olvidados, tudo em redor da celebração do nascimento do Menino Jesus. As missas do parto, que se iniciam nove dias antes do Natal, e que se celebram às seis da manhã, são a prova de que o religioso se mistura com o pagão. Ainda nos acordam temprano, os grupos de populares que munidos de instrumentos vários como o acordeão, a braguinha, a rabeca, a harmónica, o rajão, as castanholas, o reco-reco, as pinhas, a gaita, o brinquinho, nos brindam à saída da missa, celebrando o momento da Festa do Menino.

Os preparativos começam cedo, e recordo com alegria o dia em que subíamos a montanha para ir buscar o pinheiro de Natal! O Sr.Engenheiro do governo regional, disponibilizava sempre uns salvo-condutos para que, chegados ao posto de controlo florestal do Poiso, com um frio de rachar, o vigia se embrenhasse na floresta, vindo de lá com um frondoso abeto que recebia em casa os mais variados comentários: “É um bocado esgalhado!”; “Este ano saiu um pedacinho desconsolado!”;”Ah, este é muito maneirinho!”. O pote de mármore servia de recipiente, as rochas entalavam e fixavam o tronco na base impedindo-o de tombar, e sob o comando do meu Pai, púnhamos a gambiarra dispersa uniformemente, as bolas maiores na base e as mais pequenas no topo, enquanto a estrela coroava o nosso esforço no final, brilhando na pontinha daquela árvore, que parecia o maior pinheiro do mundo, e o nosso orgulho do Natal.


Mas este orgulho não destronava outro mais importante: a lapinha! A do meu avô ocupava uma parede inteira de uma das divisões da casa, mas a nossa era mais comedida. Passávamos horas a construir casinhas aproveitando o cartão duro das embalagens de medicamentos, a recolher o musgo do cemitério inglês, e a preparar a plantação do trigo nos pequenos cântaros para que as searas despontassem a embelezar o cenário. Neste teatro, a gambiarra branca foi destituída da sua função, a partir do momento em que quase me ia matando de electrocussão, deixando impressas umas marcas de queimadura nas mãos, que ainda hoje persistem.

A primeira coisa a definir era o local da gruta do Menino Jesus, e depois era só encaixar os Reis Magos, o Arcanjo, a aldeia, o rio de algodão, e todos os pastorinhos, casinhas, ovelhinhas e todas as “inhas” do cenário. A maioria das figuras já encarnava uma personagem conhecida e caricaturada em profundas gargalhadas: “Vamos pôr o Sr.João da barraca, aqui ao lado do bar!”; “Ó homem, põe o Padre Rafael ao pé da Igreja, e tira-o da tasca!”, entre outras que aqui não posso revelar...


O cheiro a bolos, margaridas, broas de mel, beijinhos, sonhos, e outras iguarias muito conventuais e pouco convencionais, era uma constante, e todos os dias alguém aparecia para uma visita de Natal, havendo logo lugar a jantar ou almoço. Muitos reconhecidos doentes vinham entregar uma prenda ao senhor doutor, e o peru por vezes era tão grande que tinha de ir a assar no forno da padaria, três números abaixo na mesma rua.

O movimento na cidade era ensurdecedor, e as gentes do campo aproximavam-se da cidade para as visitas de família, e para as compras de última hora. Dão-se muitas lembranças e poucas prendas, porque afinal o Natal é isso mesmo, lembrar-nos de todos sem excepção, não esquecendo nunca as tias, as primas, as madrinhas, e afins! Adorava aquele dia 24, quando a minha mãe enchia diferentes cestos de anonas, peras abacate, bananas, bolos de mel, doces, uma garrafa de uísque, junto com um que outro embrulho, e os homens da casa saíam para distribuir o Natal pela prima Guiomar, Madrinha Natália e Madrinha Henriqueta (que ainda hoje me lembro de ter uma barba rasteirinha..); as primas Lurdes e Cecília (que tinham um presépio com a figura de um Padre a apalpar uma mulher da vida..); e já no fim do recorrido, as eternas meninas do Quebra-Costas: a Igia e a Amélia, cuja cozinha parecia de brinquedo, e onde tudo era pequenino e mimoso. Em todos estes apeadeiros, acontecia sempre o ritual de visitar a lapinha erguida no mesmo local e com o mesmo arranjo, de comer aqueles doces caseiros divinais, de empanturrar-nos com o bolo-de-mel delicioso, e provar os diferentes licores de maracujá, cereja ou frutos secos, que nos iam empapando o sangue na mesma proporção que nos aqueciam os corações. Às minhas Tias da Ribeira Brava era reservado outro dia, com uma cesta reforçada, e quase sempre uns sapatos ou uma saia lhes calhava na rifa, sendo certo e sabido que chegar na hora da missa, era ter que esperar que esta acabasse, e que as bilhardices do adro se actualizassem.


O Natal era isto e muito mais. Um sem-fim de recordações, de vivências, de cores, de cheiros, de aromas, de experiências, de eternas e repetidas fotografias da vida. Lembro e relembro com alegria as tardes do circo, os carrinhos de choque do campo da barca, o algodão doce da feira, os presentes do consultório, as noites do mercado, a missa do galo ouvida sempre no adro, a excitação das entregas do pai Natal, as luzes grandes e coloridas nas árvores, o calhamaço do Diário de Notícias da Madeira no dia 25, as flores “manhãs de páscoa”, as bombas de estalo que eram a banda sonora da época: ratinhos, beijinhos, de garrafa, de barril..; e até os jogos do Marítimo que nessa altura pareciam diferentes, fazendo-se a festa quer houvesse vitória ou derrota.

Milhares de outras simples recordações estão armazenadas em mim, indo e vindo como flashes de uma época, que como outra não há!

É esta a magia do Natal madeirense, único e ímpar, global e acolhedor, mas sobretudo muito familiar, imutável nas suas tradições e festividades. Se me perguntarem o que peço para esta época, respondo-vos:
- Um Natal como o meu!


E porque ainda é Natal na Teoria do Fole: Boas Festas!

sábado, 7 de novembro de 2009

A Volta

A distância é muitas vezes dolorosa e sofredora. Quando nos afastamos e sentimos a falta, nada nos é indiferente. Mas neste caso a distância é apenas física e temporária, sabe-se que terá um principio, meio e já estamos no fim.

Neste longo período arrastado, houve bons e maus momentos convividos, bastas vezes em segredo e em ruidoso mutismo, que contido, ao mesmo tempo tinha de ser gerido em prol de um espírito de grupo, de exemplos dados, e de uma tolerância capaz de conter muitas vezes as tendências aos excesso e aos desabafos extremistas.

A disponibilidade total, a pressão diária de uma rotina de lugares, de pessoas, de situações vulgares e comuns, tornam-se num desgaste à nossa existência. É inimaginável durante cento e vinte dias, todos os dias da semana, vinte e quatro horas por dia, ter de aguentar um ritmo cadente de problemas, situações, relações e muitos arrelios simplórios de reles alminhas, com uma disponibilidade permanente.

A juntar a tudo isto, há as suadas comidas picantes da messe, as ameaças de rockets que nos empurram para os abrigos, as sirenes que nos fazem refugiar aos bunkers, os estropiados que nos chegam sem remédio, as crianças com os cognomes de “danos colaterais”, os atentados que muitas vezes explodem à nossa porta, o olhar vazio e em procura de respostas dos feridos em combate, as impossibilidades de tratamento e impotência médica, a asfixia do claustrofobismo do campo, a distância dos nossos e sua presença constante em nossas lembranças, os uniformes que nos padronizam os estereótipos desgastantes, as rajadas de metralhadora durante a noite que não sabemos de onde vêm e se em nós acabam, os múltiplos estrondos que nos aceleram o coração, a companhia permanente da pistola que nos relembra a nossa primitiva condição, as tempestades de areia que nos nublam a vista, as horas e os dias que se nos transformam em pesadelos de tempo, enfim...

Curiosamente, estes meses serviram de prova de resistência, de tolerância, de demonstração interior de capacidades superiores escondidas, de novas realidades cinematográficas, da valorização de pequenas gigantes coisas, da descoberta de novas competências e novas aptidões, do aperfeiçoamento dessa virtude que é a adaptação ao que não é por escolha nosso.

Qualquer experiência tem os seus pontos que nos fortalecem e nos engrandecem a alma, por muito negativa na sua essência que ela seja. Mesmo na guerra tiramos partido daquilo que é positivo: a camaradagem, a partilha do desconhecido, a nossa camaleónica versatilidade, a tentativa de adaptação saudável ao meio adverso, os mecanismos de compensação inventados, tudo serve para amenizar aquilo que nos está distante e fora de controlo. Ao mesmo tempo, as outras partes tambem crescem, tambem se adaptam à nossa ausência, tambem se independentizam como pessoas e ganham novos reforços positivos do seu “Eu”. Estes novelos físicos que se desenrolam pela distância, voltam-se a enredilhar num aperto mais forte pelo reencontro.

Mas sobretudo a experiência desse sentimento que é nossa pertença na palavra e universal na emoção, que é a saudade. Não se consegue transmitir a emoção de comer bacalhau neste fim de mundo, de sorver um belo copo de tinto, de degustar uma feijoada, uma francesinha, um até real bitoque no nosso aniversário, como se fosse a maior das iguarias gastronómicas. Receber os mimos da família, em géneros e pequenas lembranças que nos fazem voar e flutuar de alegria, os desenhos dos meninos, o vinho escolhido com os chouriços e paios, dão para fazer uma festa e chorar por mais!

Agora tudo isto chegou ao fim, o mau e o menos mau, indo dar lugar ao regresso a tudo aquilo que aos meus olhos é bom: voltar!
Até já.
Mas a teoria do fole continua!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

"O Camólas"

Assim que a noite caía apagando a luz do sol, Camólas descia as escadas de madeira antiga, e abria a pesada porta que dava para uma das ruas estreitas daquele bairro cheio de vida pelo dia. Nunca encontrava ninguém nas escadas, mas provavelmente porque todos desciam à mesma velocidade que ele, pelo que nunca apanhava os da frente, e os que lhe precediam também não lhe punham a vista encima.

A doença de pele não lhe permitia receber os raios de sol desde a infância, sob o perigo de o escaldar que nem um chouriço na brasa. Não conhecia o verdadeiro vermelho forte dos carros de bombeiros, o azul brilhante do Atlântico, o amarelo da Carris, o verde da figueira do quintal, nem tão pouco o cor-de-rosa das cuecas rendilhadas da Deolinda, que secavam desfraldadas ao vento, na corda da roupa do prédio em frente, como se fossem um discreto convite para a rambóia. Apenas conhecia estas cores todas desvirtuadas, mortiças e amareladas, pela luz incandescente dos quartos, ou pelos candeeiros de rua que criavam sombras e circunscreviam espaços de claridade.

A sua pele era branquinha como uma folha de papel, e vestia sempre uma gabardine comprida verde que lhe conferia um ar até algo sinistro. Em criança chamavam-lhe o “pacote gresso”, e apenas saia à rua nos eclipses solares ou nas férias de inverno na Islândia, onde o sol estava sempre em baixo.

Aquela noite era como outra noite qualquer, de um qualquer outro dia de todos os mesmos dias. Mas o calor que se fazia sentir era como se convidasse o povo a uma festa de rua, com sardinha assada e vinho a jorro. Por isso dispensou a gabardine, vestiu os calções curtos de padrão florido, que nunca também tinham visto a luz do dia, e enconjuntou-se com uma camisa de alças amarela que tinha pertencido ao famoso ilusionista “Bambolinetti”. Nunca antes tinha tido tantas partes do corpo assim expostas, mas o calor ainda assim era insuportável.

Quando abriu a tal pesada porta da rua, o ar quente sufocou-lhe os pulmões, e obrigou-o a respirar tão fundo de olhos fechados, e com um esgar facial, que um transeunte que passava gritou antecipando o gesto: “Se me espirras encima, levas na tromba!”.

Saiu saudando toda a gente com quem se cruzava: a Rosa da padaria, o Olavo picheleiro, o mecânico Adolfo, a Micas leiteira a até mesmo o mal-amado bófia Azevedo. Todos andavam na rua a aquela hora pois já tinham fechado os seus estabelecimentos. Só a Charlene – puta de profissão – especada a trabalhar naquele horário, na esquina da Rua Samora com a Travessa da Saudade, levou com a habitual palmada no traseiro: “Ó jóia anda cá ao ourives!”, recebendo o Camólas em troca, mimos de índole diversa e não elogiosa, que visavam a maioria das vezes (e ironicamente...) a sua mãe e restante família...

Costas com costas, à casa do padre Aureliano, estava a melhor boîte do bairro, que o Camólas assiduamente frequentava até a hora do fecho, coincidindo com o desabrochar dos primeiros raios de sol.
Nessa noite quente de verão, entrou como sempre pela porta dos clientes habituais, recebendo um cartão de consumo VIP. Significava que a botelha de uísque que tinha pago na semana anterior, ainda estava na mesma prateleira dos habitué, e que a Marlene do bar lhe tinha dado umas borlas...

Nessa noite acabou com a garrafa, o abafado da gorda solteira do 32 da sua rua, a ginjinha que bebeu de penálti após os brindes do aniversário do caniche da Celeste, e ainda dois cocktails inventados segundo a teoria do fole. À medida que o álcool lhe ia empapando as células do corpo, uma a uma, a sua cabeça rodava como o carrossel da feira do Campo da Barca, não conseguindo sequer quase abrir os olhos. Depois de dançar, dançar, e dançar, como se não houvesse noite seguinte, a sonolência e o torpor começaram a invadir-lhe os comandos cerebrais, pelo que foi “convidado” a sair do estabelecimento comercial. Em primeiro pelo seu estado de embriaguez, e em segundo porque eram 6h da manhã e já só restava o caniche da Celeste amarrado ao balcão.

Assim que saiu encostou-se à parede, deixou-se escorregar e sentou-se no passeio, deixando cair a cabeça entre as pernas. Esteve ali uma hora a destilar ao sabor daquele calor da noite que lhe abria ainda mais os poros, até que os primeiros raios de sol despontaram, e lhe tocaram na pele que nunca antes tinha visto raios gama...Sempre lhe tinham dito os doutores que se o sol lhe tocasse, morreria!

Mas não! Abriu os olhos devagarinho, pôs a mão na testa para os olhos lhe sombrear, e começou a inspeccionar os braços e as pernas nus de roupa. Nada acontecia, não tinha falta de ar, não tinha dores, nem convulsões, nem brotoeja, nem bolhas lhe nasciam na pele!!!!! Estes anos todos enganado, a viver na sombra, no escuro, na fuga do astro-rei que o poderia mitigar, e afinal tudo em vão!

Levantou-se de um ápice, fez o caminho inverso para casa, abriu a tal pesada porta de casa, subiu as escadas encontrando em sentido inverso e pela primeira vez os vizinhos que nunca via, pôs a chave no destrinco, e correu a escancarar os tapassóis da varanda. Foi buscar o melhor divã que tinha, tirou a camisa, e sentou-se confortavelmente reclinado, abraçando os primeiros raios manhã, com um ar de felicidade do tamanho do sol!
Camólas estava curado...!!!

domingo, 11 de outubro de 2009

As Palavras

Dizem que a matemática é o mais próximo que há de Deus, pois os números são artefactos engenhosos, criados pelo homem e para o homem, sem nunca existirem na natureza. Todas as fórmulas, se adicionam, subtraem e multiplicam em complexos arranjos que justificam a ordem das coisas. E tudo isto se torna mais fantástico e esotérico , quando nos apercebemos que os números não existem mesmo, são imaginários, são uma ilusão que nos tenta contingenciar pela ordem, o nosso mundo macro e microscópico.
Os números são omissos na existência da natureza criada por Deus, não são palpáveis. Nem o “3”, nem o “6”, nem sequer o “623”, o que existe sim, são três árvores, seis peixes, seiscentos e vinte e três pães, mas o número em si não cabe na Criação.
E se a matemática é assim, o que serão das palavras! As palavras que nos aproximam e que nos afastam das pessoas, que são tantas vezes causa de equívocos e zangas, mas também reconciliação, reconhecimento e afecto. Se todas têm um significado diferente, como poderemos baralhá-las para que se nos discorra o pensamento pela lógica dos sons e da sua articulação? Do centro da linguagem, numa qualquer área cinzenta, saem os comandos obedecidos pela emoção, que forçam a complexa musculatura a emitir aquilo que nos vai num sítio todavia mais misterioso: a Alma!

Uns falam e discorrem sem nunca nada dizer, outros usam as palavras para se ouvirem a si próprios, outros há que as poupam e logo as atiram de forma rude, emudecendo muitas vezes quem os ouve. Mas sobretudo não há que mal gastá-las com aqueles que não as merecem, ou que delas se apropriam e as usam como se de um eco se tratasse.
Cada uma representa um pensamento e uma ideia única, que não pode ser replicada nem abusada, sob o perigo de desvirtuarmos a fábrica de sonhos do seu autor: o pensamento. Sempre adorei ouvir, escutar, absorver todas as histórias e estórias que se contam nas reuniões familiares e de amigos. Parte da nossa sabedoria é feita de bocados dos outros...
Para falar não é preciso muito, mas para saber fazer-se entender, demonstrar aquilo que se pretende, exige um talento muitas vezes natural e intrínseco, sempre ao sabor dos ventos da gramática. Admiro imenso os artistas da escrita, porque colocam as palavras mudas num arranjo aparentemente irracional, ganhando a força certa com a cadência da leitura. A maneira como conseguem juntar as letras em palavras, e estas em frases, muitas vezes fazem-me ler a mesma frase duas e três vezes, amiúde na tentativa vã dela me apropriar, mas a maioria das vezes apenas pelo simplório prazer de me voltar a espantar com aquela conjugação! Quantas teorias do fole não se teriam espraiado pelas penas da escrita?
De qualquer das maneiras aprecio muito mais os quedos mudos espaços entre as palavras, ou aquelas palavras que se dizem em silêncio, em olhares, gestos simples ou sorrisos francos. O prazer do silêncio é muito maior do que qualquer retórica adjectiva, é inato e carece de explicação. É puro, simples e sereno.
Haverá algo melhor do que apreciar uma paisagem estonteante em silêncio, degustar um bom vinho no silêncio da noite, ou até mesmo sentar-se numa esplanada num dia de verão a ouvir o barulho da azáfama diária, em silêncio..?
Não devemos gastar as palavras com coisas inúteis, não as devemos cansar, não as devemos incomodar com esta mania de lhes delapidar o sentido quando as evocamos repetidamente e em vão. Um silêncio cúmplice ou um silêncio contemplativo, são um bem precioso que devemos saber apreciar e ao mesmo tempo saber partilhar.
Palavras para quê...?
Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer”
MST in “No teu deserto”

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O cangalheiro

Sempre que alguém se fina, lá vem aquela pergunta sacramental: “Então e agora Sr.Dr., o que é que eu tenho de fazer...?”. A resposta também é sempre a mesma: “Não se preocupe, que a agência funerária trata de tudo, agora só precisa ir descansar”. E realmente este é o único malabarismo a fazer, porque a logística é por vezes complexa e deve ser deixada nas mão de quem sabe. Para além disso, e infelizmente, aos próximos não lhes resta pinga de disposição para sequer pensar em como será a urna...

As funerárias são sempre agentes comerciais míticos e fazem parte do subconsciente de qualquer...mortal. Todos iremos lá ter cabimento! Dizem que quando se passa por um carro funerário, nos devemos agachar para que não nos tirem as medidas! E o melhor é mesmo não arriscar, pelo que recomendo que se encolham sempre que os ultrapassarem ou quando tiverem a má fortuna de se cruzarem com um.

As agências funerárias são um bem precioso à humanidade, porque tratam de uma questão de saúde pública, evitam o espalhanço de doenças, e principalmente ocupam-se de uma logística que muitas vezes é dolorosa aos elos próximos.

Geralmente este é um negócio de herança familiar, com todo um saber e conhecimento transmitidos por gerações, e muitas vezes proporcional aos originais nomes comerciais estampados em arco nas montras: “Agência Funerária Irmãos Cadência”; “Agência Funerária Cá Te Espero Pereira”; “Agência Funerária Caixão D´Oiro”, ou até a mais singela “Agência Funerária Levita”, e mesmo a espanhola “Agência Funerária En-Terra”. A maioria deste negócio concentra-se nas imediações dos hospitais, com pequenas lojas, montras pejadas de santos e santas milagreiras, reclames sóbrios, e frases apelativas do tipo: “Descontos ao par”; “Fazemos leasing e abatemos no IRS”; “Tudo incluído, excepto o finado”; e mesmo a vanguardista no conceito “A trabalhar a terra desde 1921...”.

Eu até acho que quem devia comandar os destinos deste país eram os cangalheiros. São um exemplo de organização, de respeito pelo próximo, de apresentação, educação e sobriedade, que tanto agradecemos naquelas circunstâncias. O cangalheiro é amigo, compincha e solícito. Ajuda o cliente a escolher a madeira exótica do caixão, dá a opção de caixão tuning, caixão barbie, caixão caneca, ou até mini-caixotinhos com divisórias e gavetinhas para a guarda dos seus pertences.

Podemos também afirmar, que a língua portuguesa não foi muito generosa na adequação da gramática e fonética aos cangalheiros. Todos sabemos que o calceteiro calceta, o advogado advoga, o condutor conduz, e o massagista massaja. Imaginando, por exemplo, uma reunião de indivíduos num curso de computador sobre a perspectiva do utilizador, onde todos se apresentam, confabulámos a resposta do cangalheiro: “Boa tarde, o meu nome é Alfredo, tenho 32 anos, venho de corroios, como chouriços, e Cangalho”. Para além disso, se lhe deixarmos cair a letra “n”, fica “cagalho”, o que pode parecer um fanhoso, a feiosamente insultar o próximo, no uso de um vernáculo não muito próprio!

Aqui há uns tempos, houve o décimo segundo Congresso Internacional de Cangalheiros, realizado na Finlândia, e onde se debateram assuntos tão importantes como a introdução de música nos féretros aquando dos cortejos (inspiração baiana?), ou a realização de missas gravadas em vários dialectos africanos. A teoria do fole foi o argumento decisivo para pôr fim a esta contenda, e o Japão foi o único país a aprovar a moção, pois já possuía a tecnologia desde há vários anos.
Foi também aprovada a moção de censura à Índia, que teima em embrulhar os finados num lençol e lançá-los aos rio Ganges, e um voto de louvor a Salvador da Baía, onde se festejam os quinados, com vestes brancas e muita alegria candongueira.
Os américas, conseguiram por sua vez, ganhar o prémio inovação, pelas futuristas alterações ao tradicional papel da pequena agência funerária de bairro. Introduziram os velórios por vídeo-conferência, os caterings pré e pós-evento, a manutenção eterna da página facebook, e ainda promoções ocasionais, como a oferta de funeral completo aos familiares directos, no caso de óbito nas primeiras 24h do acontecimento.
Todos estes pressupostos malucos, servem para exorcizar o fim e dar vivas aos princípios, relativizando aquilo que é vida, e aceitando a sua contingência final com a mesma alegria despreocupada e banal.
Só um médico podia falar com esta ligeireza séria...

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Cumprir

Os aviões não param de partir e de chegar, com uma cadência certa durante o dia, e menos intensa quando o sol se decide a acostar. Trazem de tudo no seu interior: as malas carregadas de memórias a recordar; as fardas de verão e de inverno; os livros que nos exercitam Pessoa; os remédios da malária; a pistola que nos estranha, e nos faz descer do alto dos nossos pensamentos longínquos; mas sobretudo a imensa saudade que já se traz ao chegar.

Enquanto uns sentem a imprevisibilidade da chegada, outros culminam na alegria da partida para o regresso. Sim, porque só voltamos ao sítio de onde somos, e pertencemos a aqueles que nos querem.

Nos entre tantos, a vida escorre pela ampulheta com uma constância que não acelera, nem com um simples abano; umas vezes custando a passar, e outras sendo empurrada como a surpresa dum veloz alazão.

Os movimentos são constantes, a todas as horas e minutos, em boas e más alturas, e por fluxos de homens e mulheres robotizados, equipados e armados, vergados pelo peso do cansaço da viagem, ou quiçá do fardo que lhes pesa na consciência. Enquanto esperamos pela hora da saída que por ora tarda, ocupámo-nos em ocupar o tempo que muitas das vezes nos sobra, imaginando que memórias teriam trazido nas suas bagagens.

Os sorrisos sinceros dos filhos, os consolos e beijos das mulheres, as lágrimas das namoradas, os acenos dos pais, o sexto sentido das mães e os abraços dos irmãos. Podíamos imaginar que uns seriam engenheiros, doutores, mecânicos, calceteiros de chão firme, ou ainda músicos ou bailarinos, mas aquelas personagens têm outra vida paralela e misteriosa, que nunca ninguém irá descobrir. Vêm, guerreiam, convivem para sobreviver, e regressam com mais conteúdo na alma. Ou quiçá com mais buracos ainda por preencher.

Esta é uma verdadeira torre de Babel, onde chegam, partem, ficam, e persistem centenas de pequenas e grandes almas que resistem uniformizadas, sendo uma pequeníssima peça da solução que parece muitas vezes uma miragem. Do norte ou do sul, do frio ou do quente, do moderno e do antigo, são oriundos de todos os confins da terra, e de sítios em que o mundo não tem fim, para finalmente se aperceberem que a finitude muitas vezes é aqui.

Botas engraxadas, atavio regulamentar, galões aos ombros e pistola à cintura, contrastam com os que voltam de missões no exterior. O capacete, o colete, a metralhadora de cartuchos vazios, a fadiga do peso insustentável, e o pó entranhado nos seus absortos pensamentos de mais aquele dia, envolvem-nos com soturnas auréolas denunciando pesados combates. É um extenso submundo invulgar.

As guerras assimétricas, ou se resolvem num ápice, ou se adiam por sucessivos prolongamentos, e esta é com certeza das segundas. Nenhuma teoria do fole resiste a estas manobras de combate, com bombas suicidas, atentados indiscriminados, política de medo e insegurança, acenos de falsas bandeiras de moralidade, e sobretudo pelo desrespeito pela verdadeira verdade humana. Mas também há que contextualizar o sistema, a época, a cultura, e acima de tudo a condição humana local na sua essência.

Pode ser que haja esperança, pode ser que as balas se enterrem de vez, pode ser que as bombas se extingam na paz, pode ser que tudo se possa, mas que pelo menos, estes meninos sintam uma nova pátria.

Eu pelo menos vou cumprindo a minha parte...



sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Eleições no Mercado

A campanha tinha começado às zero horas em ponto, do último dia da Primavera, no Mercado de Corroios. O candidato mais bem posicionado à vitória nestas eleições históricas, tinha sido assassinado na bancada da cozinha de um restaurante elitista (ou etílista, conforme a perspectiva alcoólica...), dos arredores de Lisboa. Foi o maior Repolho da sua espécie nos últimos 50 anos, e chamavam-lhe o “Fenómeno do Entroncamento”, sendo um dos fundadores da Associação de Vegetais e Afins da zona Centro, liderando e fortificando um grande e poderoso lobby no comércio das saladas, sopas e gaspachos.

Eram memoráveis os comícios desta referência histórica no mundo dos vegetais. Falava sobre os problemas da reforma agrária, na lavoura, na desinfestação, na apanha e no transporte, no risco da invasão dos repolhos espanhóis, incitando à criação de um exército de barbas de milho nas fronteiras das plantações, com o objectivo de defender as linhas de cultivo e procriação vegetal, dos ferozes gafanhotos marroquinos. Os seus dotes de oratória política eram conhecidos por todo o mundo, recebendo líderes de outras associações e sindicatos vegetais de renome, como a Couve-de-Bruxelas, o Alho Francês, a Mandioca do Pára, o Tomate Inglês, a Baunilha de Madagáscar, e até representantes do grupo de apoio aos vegetais reclusos nos clepes chineses. Como bom diplomata e relações públicas que era, piscava sempre um olho às outras associações que simbolizavam nichos de mercado em expansão, como o Clube Incrementador das Algas e o grupo extremista “Os Vegetarianos Predestinados”.

A sua morte foi envolta em mistério, mas dizem que após o falecimento, o restaurante organizou uma semana gastronómica, onde se serviram oito dias consecutivos da melhor sopa de repolho e bacalhau no forno de que há memória. Tinha 63 anos de idade, um filho menor de apelido “Repolhão”, e deixou viúva a Batata-Doce, que prontamente se viu assediada pelo Pau de Cabinda.

Apesar disso o processo eleitoral não parou, e nessa altura perfilaram-se dois candidatos possíveis á vitória, que representavam dois grandes grupos no Parlamento da roda dos alimentos: O Tomate do Partido dos Vegetais Unidos, e o Kiwi da União Crescente dos Frutinha.
O primeiro tinha um passado sofrido, sendo um veterano da resistência às fábricas de ketchup na Azambuja, e assistindo à morte de milhares de camaradas, ou esborrachados pelos pneus dos camiões, ou torturados...perdão, triturados e cortados pelas finas lâminas da multinacional estrangeira. Era um socialista de princípios, mas um extremista nas acções de combate político, não olhando a meios nem a recursos para dizimar o adversário. Conta-se que certa vez até contratou umas Anonas assassinas para secretamente aniquilarem o seu mais directo opositor, a Melancia sem pevides.

A União Crescente dos Frutinha, por seu lado, tinha tido a maior ascensão como poderio sectário, na altura dos programas de saúde, onde se recomendava sempre uma peça de fruta a cada refeição, para uma boa e equilibrada alimentação. Houve inclusive o conluio de associações estrangeiras como a Inglesa, que lançaram slogans de campanha como: “one apple a day, keeps the doctor away!”. Na tomada de posse do Kiwi, houve muitas reservas quanto à sua capacidade de liderança, ao seu factor novidade nas saladas de frutas, e sobretudo às suas origens longínquas e antípodas das nossas. Era sempre visto como um emigrante de segunda geração, e ainda por cima nunca desfazia a barba!

A sua corrente ideológica estava mais na linha sindicalista e reivindicativa, com modelos como Lula, Wallesa e Torres Couto, mas ao mesmo tempo unificadora e propulsora das economias de mercado em grande escala, sendo um acérrimo defensor das fruticulturas como cerne de desenvolvimento do país. É verdade que se tivermos uma boa fruta, o crescimento acontece!

O debate derradeiro ocorreu no próprio mercado, onde as bancadas de fruta se acotovelavam com as bancadas da hortaliça e afins, enquanto o peixe e a carne ficavam às moscas. Afirmações provocatórias como “sua cabeça de alho chocho”; “és um ganda nabo”; “a juliana não abana”; e “a beterraba é comuna”, eram prontamente rebatidas com graciosidades da mesma ordem e calibre, do grupo do Tomate: “seu cabeça de melão”, “vou-te á fruta”, “ó ananás vais levar por trás”, “abaixo a macedónia”, e o clássico: “levas um banano, que nem sabes de que terra és...”

Nesse dia o clima estava tenso, o ar estava gordo, e o frigorífico mantinha as alfaces frescas. Mas os candidatos não se pouparam a esforços para digladiarem os seus projectos de intenções, as suas propostas eleitorais diversas, e até houve espaço para o leilão de uma couve roxa albina, uma verdadeira pérola da lavoura. Os especialistas dizem que houve um empate técnico, os comentadores não arriscam comentar, e a Dona Celeste da mercearia diz que os devíamos papar a todos!

Dois dias depois das eleições, e depois da contagem de votos em papel vegetal, o vencedor foi anunciado com surpresa pelo conselho de veteranos da ramagem, o Sr.Galho, com a devida pompa e circunstância:

- Tenho a anunciar meus senhores e minhas senhoras, que o comité regional de eleições suburbanas, segundo as regras da teoria do fole aplicadas à searinha da Camacha, declara como vencedor destas disputadas, ferozes, rasmenatadas e proscíbulas eleições...........a mui ilustre e saborosa Banana da Madeira!!!!!!!!!

domingo, 13 de setembro de 2009

Manicómio

De todos os sítios que me lembro com a perfeição que gosto, o manicómio é um deles. Arrumava-se o carro à porta, num pequeno largo que dava acesso à fachada de uma casa que nem parecia aquilo que era. A entrada parecia a de uma casa normal, adaptada à instituição, com quartos e salinhas transformadas em gabinetes e salas de reunião para psicoterapia. Os anexos eram muito maiores, e construídos posteriormente em edifícios contíguos com a traça madeirense antiga, centralizando-se o coração nuns belos jardins cuidados, que atenuavam o fardo das mentes que nele deambulavam.

O meu pai dava consulta dos olhos, todos os sábados de manhã, assistido pela Irmã Almerinda, uma verdadeira máquina a dominar as malucas mais malucas. De uma devoção extrema por Jesus e pelo meu pai, tinha sido de facto abençoada naquilo que fazia, e a sua vida de missionária cumpria-se nestas entregas de saúde e sobretudo de afectos.

Havia de tudo ali; a jovem que ouvia vozes do além; a mulher que insistia em lavar os joelhos 52 vezes por dia; a idosa que em mutismo se abanava em oscilantes desempenhos; a esposa desprezada que numa tristeza maior se tentou acabar por um penhasco abaixo; e até uma maníaca recitava Camões e Pessoa, na perspectiva teológica da teoria do fole, aos pombos que por ali depenicavam.

A ordem de grandeza da loucura, era inversamente proporcional à alocação das insanas, sendo que as malucas violentas estavam encarceradas em salas almofadadas, as “assim-assim” tinham umas horas de liberdade no jardim, as desvairadas inúteis estavam alheias deste mundo e fechadas no seu país das maravilhas, enquanto as lúcidas desmioladas ajudavam na lide diária das freiras.

Certa vez, uma das jovens perguntou ao Sr.Dr. se queria que lhe lavasse o carro de estimação enquanto dava consulta. Erro crasso nesta colaboração, foi assumir que tudo iria correr bem...Ao voltar da consulta, a “Agostinha dos berlindes” lavava com toda a alegria o automóvel do Sr.Dr. com leite de vaca gordo! O velhinho mas reluzente Toyota, teve de apanhar com duas enceradelas para recuperar o sorriso dental...

A nossa visita da praxe era feita por alturas do Natal, e se por um lado eu adorava a recepção das freiras, que preparavam um verdadeiro banquete de bolos, bolinhos e docinhos conventuais; por outro, as personagens que por ali vagueavam ou nos abordavam, causavam-me um medo irracional. Malucas a agarrarem os braços e puxarem com sorrisos desvairados, um miúdo de 10 anos, não era o ideal de tranquilidade. Se me dissessem que aos 18 anos umas malucas me agarrariam e puxariam, creio que iria sonhar com essa miragem, mas ali com certeza que não, e com aquelas malucas, só doido...

Costumávamos fazer a ronda da visita aos vários presépios e lapinhas espalhados pela instituição, não havendo ali lugar para a pagã árvore de Natal. O Menino Jesus tinha sempre lugar de destaque, rodeando-o uma decoração kitch e mensagens de boa-nova, escritas em folhas de papel pintadas com lápis de cor. Nas diferentes salas de convívio singular, as jarras estavam todas enfeitadas com arranjos de antúrios, estrelícias, sapatinhos e orquídeas, trazendo um pouco de vida aos espaços, contrastando com as cinzentas massas cerebrais torradas pelos infortúnios e pela loucura natural daqueles seres.

À aparente normalidade do ambiente, opunha-se o défice de sanidade mental presente, pelo que entrar nesses sítios muitas vezes era como penetrar numa dimensão irreal, em que a deslocação do nosso eu, se alheava do corpo para poder observar de longe tal amálgama de pensamentos dessincronizados.

Todos os anos pela mesma altura, pensava no quão nobre era a missão destas freiras, na devoção, na entrega simples, dedicada e de abnegação na troca, mas também me questionava se algumas daquelas diferenças mentais não teria a sua lucidez própria, o seu mundo particular que por vezes não entendêssemos e que devêssemos cuidar de forma diferente.

Costuma dizer o povo, que "de doutor e de louco todos temos um pouco". Felizmente que de ambos tenho bastante...

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Globalização

Aqui há uns anos, pouco depois do lançamento do álbum da Estudantina “Vivá Paródia”, fomos tocar à Rádio Renascença. O programa era em directo e difundido para todo o mundo, sendo que as comunidades portuguesas espalhadas por aí, tinham uma grande participação. Receber chamadas telefónicas da França, Luxemburgo ou até da Suíça não foi surpresa para nós. Agora, receber pedidos de músicas específicas do álbum, desde a longínqua Austrália, foi uma agradável surpresa!

Não sei se esta coisa que tanto o pessoal fala acerca da globalização, já não foi inventada há uns séculos atrás com o início das migrações. Se formos a ver os flamingos já fazem isso há muito tempo, ou seja o inverno no quentinho do sul, e o verão com as temperaturas amenas do norte. Se calhar os bichos descobriram os encantos das louras suecas antes que nós...

Mas provavelmente a globalização é um termo demasiado grosseiro para aquilo que se quer definir, e ao contrário daquilo que poderia parecer, um pouco limitado e contingente. No fundo, se pensarmos numa bola, esta por si só já nos delimita um espaço, uma ideia, um conteúdo que fica retido e preso pelas costuras do redondo esférico.

A imagem do universal é mais adequada, mais abrangente, menos limitativa e mais “openminded” para aquilo que se quer expressar.
Mas estou eu para aqui a falar das limitações do raio da pelota, quando a verdadeira virtude é a da uniformização e continuidade da sua única face. De qualquer perspectiva ocular se consegue adivinhar o mesmo prisma de pensamento, de qualquer ângulo se adivinha a mesma curvinha com igual secante e tangente, mas sobretudo quando ela rola, rola sempre para o mesmo lado, e em linha recta!

Tudo o que é pensamento, acto e até omissão, tanto se torna verdadeiro e sacramental para o aborígene australiano, como para o emigrante madeirense na ilha de Jersey. Por ora, e nos tempos que correm, talvez o koala aprenda a beber poncha com sabor a eucalipto, mas no futuro tenho a certeza que será tão natural enfrascar-se com aguardente de cana em Sydney, como fazer concursos de lançamento de bosta de camelo, como fazem nas caledónias, ao fresco clima da Camacha.

A partilha de informação, a troca de cartas e baralho, a volta e contravolta de um mero pensamento, pode fazer com que essa verdade simples e simplista possa ser aceite por um mundo novo, espraiando-se pela bola como chocolate derretido. Se tivermos um bom protocolo de actuação, podemos em teoria replicá-lo até a canseira nos permitir, aqui, ou em qualquer lugar do planeta.

E serão à primeira vista vantagens os modelos adoptados pela via da moda, do marketing ou do simples apego humano por aquilo que é apelativo mas sem consistência? É a globalização mais pela forma que pelo conteúdo?
A implementação mundial do Macdonalds, tem uma base de sucesso na homogeneidade da fórmula; onde quer que se vá, o hambúrguer tem sempre o mesmo sabor, a mesma apresentação, os mesmos molhos, o mesmo logótipo, a mesma solução rápida e prática de “serve-te, embucha, e põe-te a andar”. Em Cabo Verde por exemplo, poderíamos confiar naquela imagem e naquela confecção, mas o surgimento de uma xafarica destas, tem duas vertentes perniciosas a prever: primeiro, a de que os indígenas deixariam de se alimentar da sua dieta local eventualmente mais saudável que a dos gringos, e segundo, que os viajantes deixariam de ter o efeito surpresa da descoberta de novos sabores. Pode nessa altura surgir um híbrido: o McCachupa! E se for muito bom, a empresa pode fotocopiar o modelo e aplicá-lo aos chineses.
Perigos: se todos desatarem a comer estas bombas calóricas em vez da soja e do arroz, a vaca charolesa pode entrar em vias de extinção!

O mundo tende assim a ser uno e compartido à distância, sem revelações, sem surpresas, sem paixões, sem os antagónicos anacronismos da real subtileza da teoria do fole. As referências passam a ser universais, com o perigo de serem ultrapassadas e desconsideradas; as riquezas de cultura de matéria única, algumas com especificidades brilhantes, são capazes de ruir a um mero Mcnugget.

E tudo isto acontece, porque a pressão mundana de uma foto de revista que dá a volta ao mundo em trinta segundos, é maior que um pressuposto básico e centenário de uma cultura relacional de gerações.

Será que nesta homeostasia de conteúdos perfeitos e imperfeitos, na estabilização de extremos possivelmente coadjuvantes ou semelhantes, ou até na intersecção de relacionamentos incomuns e aberrantes, nasce a luzidia e expontânea mistura explosiva de uma nova criação de mais-valia universal?

Não sei...mas para mim nada se compara com uma espetada acompanhada de milho frito, à mesa da Pastelaria Santo António do Estreito!

E que ninguém a globalize se faz favor...!

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

"O Zé do Circo"

Sempre que saia de casa levava duas chaves, para o caso de se esquecer de uma no regresso. Morava na rua por detrás do castelo, num primeiro andar de um prédio antigo, fazendo porta com porta à farmácia do Sr. Arlindo, que vendia unguentos, banha da cobra e supositórios para o elefante do circo Marcellena.

Ao passar a ombreira da porta, fazia como os jogadores da bola, ajoelhando-se sobre a calçada e fazendo o sinal da cruz com um beijo no fim. Passava pela botica atirando a velha piada para o interior: “Bom dia Sr. Arlindo, então já o promoveram a comprimido?” E lá fugia ele saudando as jovens moçoilas dependuradas nos beirais, que vigiavam os maganos passeantes e lhes tiravam as medidas pelos contornos.

A véspera tinha-lhe corrido de feição, e a conquista da noite tinha sido uma sueca que conheceu numa loja de venda de galos de barcelos em porcelana. Naquele momento tinha feito um brilharete, ao lhe sugerir que os galitos fossem substituídos pela vaca cornélia, uma vez que as marcas russas já tinham contratado os pintainhos do vale da pinta, para mugirem em coro à passagem do tufão Heloísa.

Almoçaram na tasca do Humberto, que é primo da Celeste da mercearia e cunhado do boticas que lixa o elefante, tendo ido passear para o quinto monte a contar da primeira laranjeira do Sr.João. Ali, os ares não eram calorosos nem baforentos, mas a sueca habituada apenas a tiritar de frio com temperaturas inferiores a 20 graus, quis ficar como veio ao mundo, enquanto Zé só lhe dava tempo a ficar ridiculamente com as calças pelos tornozelos, ao mesmo tempo que corria com passinhos de pinguim acelerado.
Um tubérculo de couves australianas que brotava do chão, foi a lomba assassina para o coitado do Zé, que já tinha batido o recorde do pinguim mor do pólo sul.
Um piparote no ar, meio mortal encarpado à frente, e um belo dum bate-cu esfolando o dito cujo, assentando os respectivos berlindes no único tufo de urtigas num raio de 203 metros! A confusão aumentou ao tentar explicar no seu eslavo mais puro, que tinha “los tomates de fuego”, tendo a sueca percebido “too much fuego”, pelo que ainda mais enalteceu a sua índole de mulher viagrana.

Como a tumefacção local não passava devido ao efeito do tufo, foram até ao centro de saúde da Ramada, onde a primeira pergunta da enfermeira robusta e com buço, foi a de se tinha o cartão de utente: “Sem cartão ninguém é aviado aqui!”.

O médico, que também era primo afastado da cunhada do padrinho do Zé, examinou os ditos como quem apalpa peras maduras no mercado, e até parece que lhes media o peso com as mãos, enquanto mirava a alva sueca e a imaginava a aplicar certeiramente a teoria do fole nessa situação.
Diagnóstico peremptório: edema bilateral do escroto!

- “Ai, meu Deus! (se é que Deus é para aqui chamado nestas coisas mundanas e impuras..); E isso é grave doutor!?”
- “Nãaaao!” Tranquilizou-o, ao mesmo tempo que com um gesto o mandava compor.
- “Isso com uns remédios desincha logo.” “Mas já sabe...”e aproximou-se-lhe ao ouvido em surdina: “o batalhão de apoio à bazuca vai ter de descansar estes dias...”

À saída cumprimentaram a matrafona da enfermeira, que ouvia a telenovela na rádio por detrás do balcão, tendo esta logo ripostado:
- “Que não se lhe olvide de me trazer o cartão, senão frito-lhe os ditos!”

Que vida a de um homem...ontem capaz e agora quase capado!

Depois de deixar a nórdica na finíssima pensão “Três estrelas”, subiu a rua pela sombra, em marcha lenta devido ao volume dos contrapesos, com as pernas escanchadas para que o ar lhe circulasse nos entremeios, tendo entrado pesaroso na farmácia sussurrando em decrescendo:

- “Sr.Arlindo, arranje-me aí um quarto do supositório do elefante se faz favor...”

E pronto! Ainda hoje o grande Zé é conhecido como o “Zé do Circo”...

sábado, 22 de agosto de 2009

Clube Sport Marítimo


“Lá vem, lá vem, os nossos maravilhas,
Os endiabrados, Campeões das ilhas,
Não há, não há, não há outro igual
Como o Marítimo, o mais popular...”


Esta marchinha popular, cantada pela esfusiante cançonetista Laura Alves, apenas a tenho num velhinho vinil de 45 rotações, que já não consegue ocupar espaço no vanguardista ipod.
A bem dizer da verdade, nunca percebi muito de táctica de jogo, de saber os nomes dos jogadores de cor, o ano, mês, dia e hora em que o Checa marcou o golo ao Farruca, e muito menos acompanhar os treinos da equipa de juniores.

Desde as reminiscências do meu avô que não cheguei a conhecer, e em cujo cartão de sócio muito antigo, se destaca uma participação como secretário do clube, até ao fanatismo do meu pai, que deixou de ir ao estádio porque sofria a bem sofrer com o jogo, é natural que a minha existência se fosse alimentando das vitórias do clube do campo da barca. Era o clube do povo!

Quando o meu irmão tinha 13 ou 14 anos e era dotado para o jogo da bola, o Nacional apresentou uma proposta para lhe fazer um contrato “à séria”, mas assim que o mostraram ao meu pai, resposta imediata:
-“Não senhor! Ou é pró Marítimo, ou nã vai para lado nenhum!” Ah ganda papá!

Na altura, o meu pai não cobrava a consulta aos padres, freiras, pessoal da Ribeira Brava, doentes que achasse sem posses, e claro está...aos jogadores do Marítimo.

Lembro-me de aos domingos à tarde, me deitar na sua cama, no quarto cheirando a uma doce mistura de tabaco e perfume, já acordado da sua sesta, a ouvir o relato do Posto Emissor do Funchal, maldizendo os adversários e o árbitro, ao mesmo tempo que sofria com as ofensivas contrárias. Se o Marítimo perdia, rezondava os jogadores para o alto: “Estes gajos nã prestam pa nada! nãm correm à bola! parece que nãm têm garra! estes brasilheiros são moles”, quase que rasgando o cartão e dizendo que nunca mais pagava as quotas.

Tudo não passavam de ameaças e descompressões, e a prova de fidelidade materializou-se, quando recebeu a medalha de ouro do clube...50 anos de sócio (pagante...).

Uma herança destas não se discute. Recebe-se, honra-se e transmite-se. O Francisquinho já é sócio desde que nasceu!

Os jogos e o ambiente no estádio dos Barreiros eram empolgantes, começando sempre com a charanga do nobre hino do Marítimo, enquanto um homem dava uma volta completa ao campo com uma cruz de alecrim de dois metros a fumegar, afugentando o mau olhado à equipa. Eu gostava mais de ir para o peão do que para a central, ficando de pé, ao lado dos pescadores e bêbados locais, e fartando de me rir com as “bocas” que mandavam durante o jogo, num típico sotaque madeirense cerrado: “Vái Calistre! Infilhitra-te e cruza pó sarrame!”

É difícil ao longo de toda a infância e adolescência, resistir à paixão de um clube que serve de bandeira mais do que a própria região. Desde a brilhante conquista do Campeonato de Portugal em 1926, com uma equipa de rudes estivadores e pescadores que se bateram contra os Belenenses da metrópole, à célebre digressão em África nos anos 50, e até as participações na Taça UEFA, o nosso Marítimo tem umas cores e uma alma que me faz esquecer qualquer outro clube com maior palmarés.

“...Com o faúlhar das suas vitórias, com a simpatia da sua correcção, e com a espontânea e inalterável alegria, os atletas do Marítimo fizeram, ao sul do Equador, a melhor e a mais sadia propaganda da Madeira. Tornaram-na mais conhecida e adorada, e mais fizeram crescer na Metrópole, o prestígio do futebol insular. (...) Mais do que o futebol – repetimos – é a Madeira que está em causa. Palmas, flores, músicas e hinos em coro, esperam o Marítimo no seu regresso ao doce Lar Madeirense. (...) Benvindo seja o Marítimo, e glória aos seus triunfos...”

Costumam perguntar-me amiúde, que dos “grandes”, qual é o meu clube.
Respondo sempre que “dos grandes...sou só do Marítimo!”
“Com Orgulho! E Altivez!”

Legenda da foto:

De pé: Abel Gomes(suplente),Silvestre Rodrigues, Francisco Vasconcelos,João Pimenta.José Rodrigues(Barrinhas),João Mota e Albin Yud.Sentados: Francisco Vieira,António Castro,Cornélio da Silva,Luís Gouveia e José de Sousa.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O jogo da Cabra e o Ginjabol


Um dos desportos nacionais no Afeganistão é o Buzkashi. Trata-se de um jogo centenário, que consiste basicamente num percurso feito pelos jogadores a cavalo, entre dois postes colocados nos extremos dum campo, que disputam uma cabra entre si. A equipa de um lado tem de levar a cabra até ao campo do adversário, dar a volta ao poste oposto e regressar à base sem sofrer perdas de “bola”. Chegando a estar com 50 cavaleiros em simultâneo no terreno, a particularidade do jogo é a “bola” ser uma cabra. Cortam as patas e a cabeça à desgraçada, removem-lhe as entranhas, enchem-na de areia, cosem-na, e fica assim a marinar de um dia para o outro. No dia seguinte vai directa para o campo de jogo.

Os jogos podem durar dias, e são muito violentos, sendo que os cavaleiros usam roupas muito pesadas e protecções para a cabeça, evitando os golpes de chicote e botas dos adversários. Inclusive já recebemos no hospital, um jogador com as costelas todas partidas...
Mas a população ficou realmente atónita, quando lhes contei que uma organização a sério, é aquela que surge em torno de uma partida de Ginjabol!
Passo a explicar!

No próprio dia do jogo, as forças policiais habitulmente dispõem-se em bloco, em torno das roulottes mais importantes, para permitir a entrada de uma forma ordeira e sóbria no recinto. À polícia montada está reservado o show erótico, que antigamente era perpetrado pelas manas Romanov e sua caniche da Tasmânia. Toda a festa se monta em redor da praça de touros onde decorre a partida.

Quando os bravos machos jogadores da selecção entram em campo, com os seus ursinhos de peluche, robe, pijama e rolos no cabelo, são entusiasticamente recebidos com serpentinas de papel higiénico, balões de sebo de girafa, algálias de longa duração, e exfoliantes de casca de tremoço das raras quintas capitalistas e feudais de Corroios.
Este jogo desenrola-se por tradição, numa arena circular com três orifícios na zona central, com cerca de 8 cm de diâmetro, e cada equipa é constituída por 7 elementos que rotativamente aplicam a sua jogada. Em cada uma destas jogadas se bebe uma ginjinha, seguida de um lançamento do respectivo caroço a partir de vários círculos a diferentes distâncias dos tais orifícios centrais. Os círculos mais distantes dos orifícios centrais dão uma maior pontuação, pelo que essas apostas são habitualmente utilizadas pelos jogadores com maior capacidade de sopro, e em alturas onde se pretendem recuperações de desvantagens no marcador.
Há no entanto várias técnicas de arremesso do caroço: uns enchem o peito de ar e cospem com precisão militar o caroço, outros lançam o caroço na vertical e de seguida chutam-no, e outros há ainda, que tapam uma narina e fecham a boca, arremessando o míni esférico pela narina oposta. Nestas ocasiões o caroço é envolvido por um ranho verde e viscoso que permite uma aterragem com maior acerto, pois o atrito é maior.
Em extremos diametralmente opostos da arena, coloca-se a equipa técnica de cada uma das selecções, com toda a parafernália necessária ao decorrer do jogo. Uma vez que este se pode prolongar durante horas, a máquina de imperiais é essencial para que se mantenha uma boa hidratação dos jogadores, enquanto o tradicional banco de suplentes é substituído por mesas corridas onde abundam os leitões assados, javalis no espeto, codornizes de Albufeira, saladas de frutas, e chamuças gigantes. O grupo de assistência técnica é formado por massagistas faciais, ensaiadores de sopro, psicólogos de sábado, quiromantes, cartomantes e especialistas de decoração Feng-Shui.
Neste tipo de provas, a equipa fixa de arbitragem é habitualmente constituída por dez elementos, uma vez que têm um grande desgaste. No lançamento de cada uma das equipas, o árbitro principal brinda, e ingere a ginja e o caroço. Os que têm um maior índice de massa corporal suportam várias jogadas seguidas, mas quando começam a andar de gatas para validar os caroços nos buracos, têm de ser rápidamente substituídos.

Nestes jogos, os míticos penáltis pertenciam ao melhor elemento da equipa da Selecção, conhecido como o “Versus”, que desempenhava os chamados penáltis invertidos, com consequente cambalhota e arremesso da pevide ao buraco. Um portentoso jogador era também o “Gasgas”, que de tão rápido que era a engolir a ginja, por vezes até engolia o caroço. Outra verdadeira lenda do Ginjabol, era o “Muf”. Uma pontaria certeira, umas trajectórias elípticas, o maior número de jogadas seguidas sem cair em campo! Tornou-se uma verdadeira imagem de marca, ter sempre o bacalhau assado e a máquina de imperiais por sua conta...
Mas estes torneios, tinham a vantagem de ser um motor impulsionador da economia local, pois a sua preparação durava dias, e o jogo propriamente dito era capaz de prolongar-se por horas a fio. Durante todo este período de festa, eram consumidas toneladas de géneros alimentícios e milhares de milhões de hectomililitros de cerveja Bávara.
Mesmo quando se dava por terminada a disputa, que ocorria quando dois terços dos elementos de uma das equipas ia parar ao Hospital, a vitória era celebrada num qualquer bar da localidade, com uma sanfona, percussão e vários instrumentos de cordas, congratulando-se todos pela sua equipa ter aplicado certeiramente a brilhante teoria do fole durante o jogo...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Que Verões


Assim que o avião descolava do Funchal em direcção ao Porto, levantava-me à casa de banho para sorrateiramente roubar sabonetes e toalhetes refrescantes. Aquela satisfação secreta de poder encher os bolsos de um acessório que na altura podia ser considerado um gadget, contrastava com o incómodo e vaidade, das sapatilhas novas que sempre inauguravam as férias de verão. A única excepção era o meu irmão que usava umas botas ortopédicas pois diziam que tinha o “pé chato”...

À chegada, lembro-me que invariavelmente contávamos os volumes para confirmar se algum larápio de aeroporto não teria desviado os nossos pertences, e na saída lá estavam os primos da Vila da Feira, os meus Tios e Primos de Espanha, e algum que outro familiar de ocasião que já “nã via o Alípio há tantos anos”.

A minha avó estacionava bagagens em casa dos primos da Feira, e íamos sempre almoçar num restaurante de um conhecido-amigo-sócio do primo Rui, onde de facto comíamos que nem uns abades, e de onde levávamos uns ricos folares da feira.

Com os carros sempre vigiados, pois as matrículas espanholas podiam chamar a vontade alheia, lá metíamos viagem em direcção à terra da minha outra avó. Lembro-me daquela odisseia de horas de viagem no antigo Peugeot do Tio Isauro, muitas vezes sob um calor tórrido e sem ar condicionado (luxos da nova modernidade, que me põem sempre fanhoso...).

Largávamos à estrada: Gaia, Porto (sem o ver), Vila do Conde, Póvoa, Esposende, Viana (com a sua ponte única, com uma curva e contracurva nos dois extremos...!), Moledo, Caminha, Vila Nova da Cerveira, Valença... Ainda hoje quando por aqui passo, sorrio sozinho e abro a janela do carro, inspirando fundo para conseguir sorver um pouco daquele passado.

Atravessávamos a fronteira por uma ponte de ferro em jaula, onde no fim estava o escudo da bandeira espanhola. Cantávamos em coro no carro “Eh Viva Espanha”, passando o controlo da Guardia Civil e seus penicos na cabeça. A partir daí era Tui, Porrino, a subida de Puxeiros, e ao descer a colina lá apareciam as luzes dos edifícios de Vigo. Tinham começado as férias grandes!

A casa da minha avó ficava no bairro do Castanho, e era a liberdade total! Juntávamo-nos os primos e lutávamos contra os do bairro da Salgueira, construíamos cabanas multiusos, fazíamos explodir garrafas de spray em fogueiras, desencantávamos corridas de bólides pela encosta abaixo - onde muitas vezes o travão, eram vários montes de terra cientificamente alinhados ao fim da pista!

De manhã saímos com os meus pais, no magnífico Seat 600, (ou “La Pótita” como carinhosamente lhe chamávamos), em direcção à praia de Samil. Na altura, a água gelada não a sentíamos como hoje, ficando lá dentro apanhando as ondas, até que os dedos ficassem velhinhos e enrugados. O sol não queimava, e não havia campanhas contra o coitado do astro-rei.

O regresso para o almoço era tarde, e lembro-me que comíamos numa mesa onde sempre cabia mais um. As tortilhas, as empanadas, a ensaladilla, os pimientos de pádron, o pulpo a la féria, os callos de la Abuela Hermínia, a Mirinda, os polos de laranja, as pastilhas elásticas do bar da dona Rosa...

À tarde víamos uma série de dibujos na hora de mais calor, bebíamos o leite com ColaCao e untávamos o “pan de barra” com Nocilla, para de seguida largarmos as energias pelos campos fora até o sol mirrar.

Quando comecei a escrever esta crónica, as memórias saltavam-me do passado para o presente com uma rapidez e lucidez tão grandes, que as teclas não conseguiam acompanhar.
Dá quase para um livro! Fecho os olhos, revejo, sinto, cheiro, toco e alegro-me com os pequenos momentos que vivi. Pequenos a esta vista, mas agora imensos e cheios de plenitude, de uma alegria que é só minha!

Esta nem a teoria do fole explica...

domingo, 9 de agosto de 2009

O Pó



Hoje tivemos a primeira tempestade de areia. Habitualmente as nuvens de pó giram e rodopiam como os bandos de pombos, criando diferentes imagens geométricas no ar. Mas como estas nunca vi. Começa-se a levantar uma leve brisa, o vento começa a ser cada vez mais forte e de repente uma nuvem imensa de pó e detritos invade o ar, não se conseguindo ver um palmo à frente. Faz-me lembrar uma série da minha infância “Espaço 1999”, onde as aterragens lunares faziam sempre uma onda de gases galácticos. Para além disso, a poeirada que entra pelos olhos, pelos ouvidos, e pela boca, se esta estiver aberta, é o equivalente a engolir uma “catrapilha” (caterpillar em madeirense) cheia de areia e brita.

Os grãos acumulam-se em tudo quanto é canto, e a máquina fotográfica guardo-a num cofrezinho quando não está a ser utilizada, para que também não se lhe afecte as juntas. Fica guardada pela trabuca, que repousa sem trabalho no mesmo habitáculo. Como é uma zona de segurança, também já pensei em deixar aqui aquela posta de bacalhau, para um dia fazer um belo “bacalhau au pimpolho”, acompanhado de umas belas batatinhas a murro. Mas não me parece que o aroma fosse o melhor naquelas instalações...

O pó sempre foi um problema para alguns mais desvairados, mas se repetirmos várias vezes a mesma palavra, podemos criar sonâncias e muitas dissonâncias que criam um ambiente de festa: “PópóPóPóPópópó”. E se repararem, podemos simplesmente cambiar de vogal para que a variância sonora fique diferente. Imaginem o que seria ir pela rua trauteando “PipiPiPiPipipi”! Na primeira pensariam, “vem aí um camião!”, e na segunda imaginavam que seria a belle Dominique e seu transformismo, a conduzir o mesmo camião...

Eu no fundo, também não percebo de onde vem tanto pó nesta terra. Estamos aqui a 1900 metros de altitude, e ainda assim rodeados de montanhas, que parecem os pais destas onde estamos assentes. No fundo, esta imagem alegórica será como um penico no topo de um monte de terra, onde as paredes constituem as montanhas à volta, e nós seremos o fundo do vaso impoluto que recebe a poeirada. Ainda olho para o céu de vez em quando para ver se avisto um vulgo traseiro assentar nesta bacia imaginária...em vão (e ainda bem!).

É por esta forma espacial de organização geográfica do campo, que eu acho que o pó em circulação nestas tempestades é sempre o mesmo. Às vezes até consigo imaginar os grãos em alta velocidade a gritar uns com os outros:
- “Ó sr.grão, parece-me que já nos cruzámos na última tempestade de areia...”
-“Pois foi, eu até passei por si naquela última volta à pista, e consegui entrar no carburador do jipe dos portugas. O problema é que eles traziam um tal de “grão vasco”, que me deixou um pouco zonzo...”

E a teoria do fole explica isto muito bem: se ao sairmos do duche entrarmos numa tempestade de areia em Cabul, com certeza sairemos como um croquete. Ou com sorte, como um pastelinho de belém polvilhado de canela, com areia até nos regos e contra-regos!

Mas este pó não se compara com o nosso. Na última reunião internacional - numa desavença argumental que não interessa para o caso - o nosso representante vendo que a batalha estava perdida, expressou-se vernaculamente desabafando com o adversário um sonoro : “Pó car...!”, e saiu triunfante da sala.
Dito e feito! Os representantes, embora não entendendo o sentido literal das palavras, captaram o gesto muito ilustrativo, e deram por encerrada a sessão...

E viva o pó nacional!

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Relatividade



Será que ser objectivo é uma qualidade inata e absoluta? Por exemplo, se eu afirmar que a chuva é boa, isso pode-se aplicar nas épocas de seca em que o gotejo celestial faz engordar as cerejas, mas se isso se aplicar numa qualquer terrriola de monções, a consideração chega a ser abusiva.

Nunca poderemos dizer que a vaca só dá leite, porque já estaremos a condicionar uma opinião que pode não ser válida amanhã! Será que as vacas do futuro não podem dar cerveja ou sumo de laranja? Nunca o saberemos... e ao dizer isto já nos estamos a encalacrar, porque os “nuncas” de hoje, podem ser os “talvez” do amanhã, ou os “sempres” do futuro. E a teoria do fole nem sempre explica tudo.

Nas verdadeiras assunções científicas, podemos ter alguma certeza de opinião, mas nas certezas de café nunca poderemos querer apostar o joker. Quantas conversas de tasca não tentam impingir ao amigo: “olha, se tu puseres casca de chá de gengibre na vista, nunca mais vais ter problemas com a próscaca!” E pronto, a mensagem passa de bêbado em bêbado, até aparecer nas revista “del corazón”, migrar para as sociedades científicas paranormais, e acabar com um estudo multicêntrico e randomizado, para publicação numa revista de urologia. E viva o método científico!

Apesar de almejarmos a perfeição - e a perfeição quer-se objectiva – teremos sempre que fazer uma adaptação real a aquilo que nos parece verdadeiro e inequívoco. Se eu procedo assim com algo, e se essa é a atitude universal, então esse é o procedimento correcto e universal. Mas por outro lado eu também devo questionar essa essência, e não tomá-la como um dado adquirido. Se esta noção se aplica ao factos neutros ou positivos, o mesmo já não acontece aos infortúnios ou aos azares. Aí, a verdade pode até ser inquestionável, mas a atitude perante a mesma é que tem de ser modificada no sentido de não a objectivar mas sim de a relativizar!

Se furarmos um pneu na estrada, isso é uma verdade absolutíssima! Mas se o relativizarmos e considerarmos que isso não é o mais importante, mas sim o termos estado em segurança, então passaremos a encarar as bandas sonoras da vida como percalços, que nos ajudam a dar valor à essência da nossa condição e do nosso feliz acaso em ter nascido assim.

A semana passada recebemos o Lalai, de 13 anos, vítima de um fogo cruzado no sul. Dois projécteis entraram e saíram a alta velocidade provocando muitos estragos, e um terceiro ficou alojado na anca destruindo-a completamente. Chegara de helicóptero acompanhado pelo pai, que vencera o medo de voar para não perder o filho de vista, perguntando à chegada se seria ali que o curariam...Uma bola de futebol aos pés da maca, completava a ironia de alguém que nunca mais a iria poder chutar. Naqueles impactos, parte daquela infância ficou irremediavelmente perdida, e parte talvez tenha ganho coragem acrescida para a vida.
De repente penso que a relativização aqui faz muito sentido...

A certeza deste destino está traçado e o nosso também, por isso relativizamos e agradecemos a nossa sorte.

Espero que um dia o Francisco também saiba reconhecer a sua fortuna...

quinta-feira, 30 de julho de 2009

O Fole


fole
s. m.
1. Instrumento para soprar o lume, para introduzir ar nos canos do órgão, etc.
2. Taleira de couro.
3. Passadeira de couro, nos arreios das muares de diligências.
4. Árvore da Guiné.
5. Pop. Estômago.
6. Tufo, papo (na roupa que não assenta bem).
7. Parte dobrável e extensível de uma câmara fotográfica.
8. Caixa de acordeão.
9. Cam.-de-f. Corredor flexível de comunicações entre duas carruagens de passageiros.
adj. 2 gén.
adj. 2 gén.
10. Ant. Que é de má índole.
11. Beira Fruto podre ou nervado.



A sanfona sempre foi um instrumento que me agradou. Adapta-se à música tradicional, popular, clássica, erudita, e até o jazz a utiliza nas suas peças virtuosas numa muitas vezes aparente anarquia musical. Existem magníficos executantes deste instrumento que imprimem uma força e sonoridade única às músicas que interpretam.



Há quem diga que isso se deve ao fole e à sua famosa teoria, desenvolvida há muitos séculos por uma qualquer congregação secreta, que exercia a sua acção no campo das ciências do na altura “ó-culto”. Esta ciência era cantada diáriamente do cimo da torre mais alta de um grupo de aldeias de anões e cavalos pirilimpampantes, por um período de 32 minutos e 7 segundos.



Normalmente, essa digamos...oração, era acompanhada pelo som da fanfarra do Grupo de Amigos das Aldeias de Anões e Cavalos Pirilimpampantes (GAAACP), aparecendo como único solista a sanfona e o seu tocante de teclas, enquanto que a conjugação do verbo Pirilimpampar ocorria de forma harmoniosa e cadente:



“Eu Pirilimpampo
Tu Pirilimpampas
Ele Pirilimpampa
Nós Pirilimpampamos
Vós Pirilimpampais
Eles Pirilimpampam”



Este acompanhamento vocal era feito por um ganso amestrado e três velhinhas, que pelo simples facto de lhes faltar o ar para manter o "si" no sítio, emitiam cada uma, numa voz fininha, frágil e oscilante nas notas, harmónios e dinâmicas pouco celestiais. Estas figurinhas, mantinham sempre um ar compenetrado e profissional, quebrado apenas pelas inúmeras caretas hilariantes de boquinhas e olhos esbugalhados às notas agudas. Neste ramalhete, o coitado do ganso servia de sineta ao princípio e fim da música, com um sonoro “Quac” quando se lhe apertava o gasganete...



Mas a evolução da sanfona sofreu várias transformações e já não é apenas exclusiva do GAAAC. Hoje em dia existem sanfonas, acordeões, concertinas, gaitas e dezenas de versões caseiras, daquilo que é hoje também chamado o piano mais portátil do mundo.



O fole e toda maquinaria de teclas e botões que armadilham estas peças de arte custam centenas de euros, e é por esta razão que este é um desporto caro, mas cuja verdadeira vantagem é adaptar-se a qualquer tipo de instrumento em parelha. Já se viram sanfonas com as panpipes dos Andes, acordeões com solos de ukéléles, e concertinas com acompanhamentos de castanholas de osso de tucano das ilhas Vanuatu.



Mas a combinação mais perfeita é a da Sanfona Alpina, que consegue emitir notas em frequência gama, aliada ao grupo amador de largadores de traques estereofónicos. Este é um grupo de origem recente, oriundo de uma aldeia transmontana tradicional, constituído por 16 aldeões séniores, agrupados em diferentes categorias de peso, cujos elementos emitem a partir das suas próprias tubuladuras de gases interiores, as diferentes notas que irão constituir a harmonia final. Este conjunto destaca-se por possuir uma maior escala sonora que a habitual, conseguindo reproduzir para além das notas tradicionais constituidas pelo dó-ré-mi-fá-só-lá-sí-dó, o mais perfeito do “fóooooo”! Estas magníficas performances são sempre optimizadas através de técnicas de aumento da chamada “ventanajem inferior”. Este doping é sempre conseguido por uma dieta de forte feijoada e grão-de-bico, três ou quatro dias antes dos espectáculos, que ocorrem perante multidões frenéticas que concorrem a estas performances únicas e originais.



No fundo, a brilhante Teoria do Fole é a pedra chave no desenvolvimento de qualquer nova criação, e é aplicável em todos os campos das artes e letras. A sua fácil aplicação e os seus fundamentos fortemente científicos, são uma grande mais valia em qualquer sociedade organizada e evoluída.



Ela vai aparecer em todos os trabalhos realizados nesta humilde secção, de uma forma ou de outra, umas vezes mais alegre, outras mais esquizofrénica e outras até sob a forma de nuvem que também sorri, mesmo que com chuva.



Remata-se a crónica introdutória com uma salva ao melhor sanfonista dos Algarves e arredores (mais ou menos até Marte...):



“Viva il virtuoso Pipas y su sanfona di fole!”