sexta-feira, 6 de julho de 2012

Mundo Paralelo


As rotinas que detinham cumpriam-nas com rigor e pontualidade. Saíam os dois para o trabalho à mesma hora, encontravam-se para almoçar de marmita sempre no mesmo sítio, e voltavam os dois para casa no 37 que acabava a noite a resfolegar do esforço, na última paragem da Musgueira norte. Nunca tinham ido jantar fora, o cinema era para eles teatro barato, e as únicas loucuras que se permitiam era passear nas barquinhas do lago da cidade, ou ir ao circo no Natal.
 
Num destes episódios repetidos da vida, e no trajecto tortuoso para casa, calcorreando avenidas largas que alternam com becos de estreita manobra, chegaram ao cruzamento da avenida Pôncio de Loyola com a Mestra Lufanica.
 
No preciso bico da esquina, encontrava-se um duende dos países baixos da Lapónia, que comia uma arrufada de gengibre. Este era um sinal que ambos tinham de parar, e declamar a bem sucedida teoria do fole!
 
Assim o fizeram, e prontamente se dispunham a continuar quando da voz do anão verde saiu um fininho mas decidido:"Alto!"
 
Abrandaram em passo lento, estacando a um palmo da criatura verde e verrugosa.
 
Ele tinha decidido que Alfredo teria de fazer o percurso da rua do Turragulho até a Praça de Paquita Sonajera, para assim chegar a casa.
 
Toda a gente sabia a fama daquele percurso, e Alfredo teria de abandonar a cara-metade para seguir rumo, na esperança de chegar são e salvo.
 
Nestas alturas, havia sempre cabines públicas dispersas pela cidade, apetrechadas dos necessários fatos e restante indumentária para esta aventura.
Vestiu os ténis supersónicos, as cuecas de lã caprina, e o fato-macaco cosido com retalhos de panos de cozinha. Deste inglesíssimo outfit, fazia também parte uma saia de tule cor de rosinha, e um taco fofo de basebol.
 
Beijou a testa da dita - e apenas isso da cuja - desatando a correr pela avenida que desembocava na Gran Vía, fugindo dos quadrados rosa da calçada, que salpicavam o chão como se ali tivessem aterrado de emergência.
Cruzou-se com vários missionários que corriam à mesma velocidade, e lhe gritavam conselhos como: "roda a mangueira para oeste"; "arrefinfa-lhe uma marretada ao anão da dízima"; "grita: culélé! bulúlu! muluku! no jardim".
Com estas dicas talvez se safasse...

A Gran Vía estreitava-se ao longo do percurso, teimosamente avessa ao nome que detinha, acabando numa rotunda calcetada, onde o leite derramado pelo leitoduto amaciava a entrada dos corredores. Parou e avaliou a situação, reparando que a mangueira do leitoduto estava apontada para nascente. Rapidamente saltou a dominá-la como quem faz uma cernelha, virando-a para oeste e alagando as entradas dos afluentes viários da rotunda Maior. Esta manobra permitiu que os leiteiros se deslocassem, deixando caminho livre para Alfredo. Toca a correr!

A saída que pretendia, dava para um jardim colorido de massas fettuccine e farfalle. Embrenhou-se naquele bosque como um desvairado, abanando as suas folhas e frutos que caíam no chão, prontos a serem colhidos para uma tomatada de pasta al dente. O barulho fazia com que os passarinhos de pés de ornitorrinco e corpo de minhoca, acordassem do seu letargo, gritando coisas como:"bilele"; "ramimi"; "gudúra", que Alfredo sabia serem o sinal de alerta para os faisões assassinos da cantina italiana.

Não podia deixar que estes estúpidos pássaros arruinassem a sua performance, de maneira que começou também ele a gritar: culélé! bulúlu! muluku!, na expectativa de baralhar os faisões e acordar as mulas do reino da candonga. Estes seres tinham a forma de um saca-rolhas, deslocando-se em parafuso e tocando um sininho à medida que progrediam.

Reagiam sobretudo aos culélés, saltando das suas tocas e engolindo as aves raras barulhentas e incomodativas, ao mesmo tempo que soltavam uma nuvem azul perfumada que se erguia nos céus como uma baforada de Chanel nº5,7.
A última linha do jardim era cercada por plantas carnívoras que trituravam tudo, excepto restos de Lili Caneças. Alfredo aproveitou o embalo da corrida e deu um mortal à frente, sentindo os clacks-clacks dos dentes carnívoros a quererem mordiscar-lhe o traseiro, por uma questão de milímetros.

Aterrou de rabo numa fina faixa de areia que o amparou de partir umas costelas, mas que lhe ofereceu uma grande dor de cú. Assim caiu, assim ficou a olhar! A única saída daquele deserto era um tapete rolante gigantesco que acelerava em movimento contrário sempre que se tentava avançar. Assim que Alfredo corria para cima da rolanda, esta acelerava em movimento inverso, cuspindo-o de volta à areia fofa! Como sair dali?!
Sentia-se encurralado porque para trás impossível cair nas garras das plantas carnívoras, para os lados era só deserto, e para a frente que era o caminho, tinha um tapete rolante enorme que não parava e rodava para trás!

Justamente ao lado da entrada do tapete, estava um anão que tocava sem parar um realejo estridente. Aproximou-se devagar e perguntou:
-que fazeis aqui anão?
-ora! Sou o anão da dízima e tendes que a dar!-disse sem parar de dar à manivela
O rápido pensamento de Alfredo fê-lo agarrar no taco de basebol, e cá vai malho na calva do anão da dízima! Foi tão forte e certeiro que o enterrou direitinho até ao pescoço, parando o manípulo da caixinha estridente e com isso retirando a energia ao tapete castrador. Tinha conseguido pará-lo sem saber como!
 
Correu os últimos cem metros como obikwelu em tartan, cruzando a meta de braços no ar num êxtase de chariots of fire.
Caiu directamente num poço, escorregando em velocidade estonteante por um sistema de tubos torneados, que o cuspiram às cambalhotas na sua rua.
Sacudiu o pó que se acumulara pelos caminhos, e olhou à volta...
Os lampiões estavam acesos, ninguém passeava no crepúsculo, e as luzes nas janelas adivinhavam o conforto das famílias nos seus ninhos.

Subiu os degraus de sua casa, abriu a porta e abraçou-a.

Nesse dia tinha superado a prova rainha do mundo paralelo!

Parabéns!