quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O Avô Francisco


As notícias ouviam-se sempre na BBC, num rádio castanho-escuro, onde o gato se costumava enroscar ao zoar das válvulas quando aqueciam. Emitia um som rouco, com um genérico instrumental e a voz conhecida do locutor, descrevendo o que tinha acontecido nessa semana na guerra. Os alemães continuavam a ganhar terreno e o seu desejo expansionista ainda não era contrariado pelos Aliados, por quem todos torciam nesta zona.

Apesar de tudo, naquela vila perdida no meio do Atlântico, sobrevivia-se às consequências da guerra e a todas as contingências que ela acarretava. Os bens essenciais importados da metrópole, não chegavam sequer para abastecer meio mês de carregamentos do cargueiro “Rovuma”. 

Aproximava-se a época do Natal, e nesta altura a Ribeira Brava engalanava-se com arcos de verdura pelas ruas da baixa, fitas coloridas enroladas nos postes e largos panos brancos com a cruz de Cristo encimada. Pequenas luzes cintilavam durante a noite, distribuídas apenas pelas árvores do átrio da igreja e da rua principal, uma vez que o conflito obrigava a restrições de toda a ordem.

A casa do avô Francisco ficava num dos topos do vale desfrutando de uma vista desafogada da vila que ainda se localiza à beira mar, na desembocadura de uma ribeira que no inverno ganha a fúria da torrente da Serra D’Água. Era proprietário de uma fábrica de pirotecnia, e naquela época o trabalho era muito intenso, uma vez que os festejos de Natal e o Fim do ano aumentavam a procura de barris, estralinhos, ratinhos, vulcões de lava, bombas de garrafa, bengalas douradas e outro material de maior calibre para o fogo a sério. O fabrico artesanal era ainda o habitual, sendo a mescla de explosivos doseada com pesos e medidas muito rigorosas. Apesar desta indústria herdada do seu pai, o avô Francisco trabalhava na alfândega da Ribeira Brava, mandando e desmandando tudo aquilo que era encomenda e produto importado via marítima.

A guerra que grassava na Europa e à qual Portugal estava apartado por um Salazar paternalista, trouxe muitas carências e necessidades, a uma vila afastada de uma capital e duma ilha já de si longe de tudo e mais alguma coisa. Ainda para mais naquela época natalícia, em que o consumo aumentava e as pessoas gostavam de trocar prendas e preparar as iguarias típicas com os melhores ingredientes.

O Natal perspectivava-se magro, apenas com uns bolos de mel e umas broas extra, mais uma ou outra lembrança virada para as crianças. Em casa do avô Francisco, a época era vivida com intensidade e muita preparação, estando inclusive um quarto da casa reservado à construção da lapinha, com a gruta de Belém no centro e uma extensa construção em papel pardo escurecido a imitar a rocha, por onde se espalhavam as figuras dos pastores, as casinhas de cartão mais pequenas no cimo, a aldeia com a igreja e o largo, o riacho em algodão, as prateleiras com as searinhas crescidas do trigo plantado há uma semana. Toda a gente vinha apreciar aquela obra de arte na casa do Sr.Araújo.


A avó Felicidade era funcionária dos Correios Postais da Ribeira Brava, e todos os dias recebia notícias por telegrama, com anunciadas desgraças impostas pelo ameaçador império nazi. Expedita em comunicação morse, muitas mensagens encriptadas enviou, sabe-se lá a quem e com que motivo… O traço, ponto e traço saía-lhe no automático, e recebia os mesmos intervalos, que reescrevia num papel timbrado em letras, pontos e vírgulas. 

Neste entretanto, o império alemão continuava a conquista continental e a sua Armada navegava no Atlântico com um poderoso dispositivo bélico. Os famosos submarinos U-Boolt serviam a Marinha Alemã, na altura designada de Kriegsmarine. Afundavam navios Aliados carregados de munições e abastecimentos, através de um eficaz sistema de submersão e poderosos torpedos lançados da profundidade. Embora não lhes estivesse autorizada a navegação em águas territoriais portuguesas, muitas vezes as atravessavam e nela navegavam sem pudor, pois a Marinha Portuguesa não tinha a tecnologia suficiente ou sequer os meios de os detectar.

Naquela antevéspera do dia de Natal, o avô Francisco saiu a meio da noite disposto a trabalhar para um Natal diferente. Vestiu-se com o uniforme de trabalho, e pé-ante-pé saiu pela porta de casa fechando-a sem o mínimo barulho. Desceu até a vila, e no cais esperavam-no dois homens num bote, com várias caixas de verdura, fruta e meia dúzia de garrafas de vinho Madeira. O mar estava chão, e foi fácil aos dois embarcadeiros afastarem-se noite dentro e mar fora. Já só viam a silhueta assustadora da ilha, quando o avô Francisco conferiu o rumo e fez três sinais de luzes com uma potente lanterna, ao meio do oceano. Tiveram três outros toques luminosos de resposta, ao mesmo tempo que puderam ver à luz do luar, emergir do fundo oceano um imponente submarino alemão, que para seus espantos apenas criou uma pequena ondulação que oscilou o bote. A escotilha abriu-se num escorrer de água, e de lá um graduado aflorou com uma bandeira branca em sinal de paz. Com ele trazia umas caixas, que não eram de fruta ou verdura..O avô Francisco sorriu, e num alemão muito básico cumprimentou o oficial alemão, ao mesmo tempo que se colocavam a bombordo para amarar. A troca de caixotes foi muito rápida, e tão depressa o submarino submergiu no negro das águas assim como tinha emergido, começando os homens a remar felizes rumo a terra.
Ao chegarem a bom porto, ainda de noite, certificaram-se que ninguém estaria espiando e dividiram os conteúdos dos caixotes pelos três. 

O avô Francisco subiu contente a estrada, e antes de entrar em casa descalçou os sapatos, abrindo a porta da sala com o menor ruído possível. Pousou a caixa em cima da mesa e abriu-a com os olhos cintilantes. De lá tirou um sortido de chocolates, amêndoas, patés de beluga, duas garrafas de champanhe austríaco, e um carrinho de bombeiros em miniatura. Apesar de ser pelos Aliados na guerra, aquele negócio de troca com os nazis não o chocava e achava que seria uma permuta justa: bens frescos aos alemães, que retribuiriam com doces e iguarias que de outra forma não encontrariam na ilha naquela época. 

Nessa manhã, acordaram e foram dar com esta inesperada prenda de Natal junto ao presépio! Um cantinho de aconchego num mundo em guerra, onde por um momento se esqueceram das privações e celebraram o simbolismo do Natal!


Boas Festas a todos e muita Saúde!