domingo, 2 de novembro de 2014

A queda


A notícia era abertura dos telejornais do mundo inteiro. Ninguém sabia como podia aquilo ter acontecido, que estranhas forças poderiam estar por detrás de tão invulgar fenómeno. Neste caso poderíamos até chamar de falta de forças, uma vez que ele não se susteve lá em cima...

Foi tão abrupto como um raio, e quase tão chocante como uma cena de pânico.

Batiam as 12 horas e quinze minutos do dia 19 de Agosto de 2014, quando a vida decorria tão normal como poderia decorrer, naquele mundo igual a tantos outros.
O sol brilhava lá em cima tão intenso, que alguns até lhe rogavam pragas para que se apagasse...
E não é que às 12 horas e dezasseis minutos do dia 19 de Agosto de 2014, as forças deram acção aos pensamentos, e o sol....caiu?

Sim, caiu tão a pique como a pique brilhava no minuto anterior. Como se estivesse pendurado por um fio imaginário e alguém o tivesse cortado. Caiu em silêncio, sem estrondo, sem estoiro ou explosão hollywoodesca, desaparecendo na linha do horizonte e fechando o pano da sua actuação.

O sol tinha caído e mergulhado a terra na negritude total!

Toda a gente foi apanhada de surpresa: os carros chocaram uns com os outros baralhados, o rapaz que descia a escada a correr ficou sem luz e espatifou-se contra a parede dum meio-piso, e alguém não conseguiu ler a teoria do fole enquanto sentado na retrete se aliviava dos restos do dia anterior...

O pânico gerou-se de imediato nas populações, e todos acharam que vinha aí o fim do mundo! O apocalipse traria os quatro cavaleiros ceifando tudo e todos, as pragas desceriam à terra, os ventos soprariam rugindo, e o fogo brotaria da terra engolindo os homens. Mas nada disso aconteceu... Apenas a noite tinha caído para sempre no planisfério.

Os animais calaram-se num silêncio ruidoso e inquietante, mas rapidamente retomaram as suas rotinas de caça ao gato e ao rato, passado o susto inicial...

O dia transformado noite de forma tão pacífica, tinha gerado uma adaptação das luzes e iluminação àquele horário esquisito.

Todos, atónitos, saiam à rua olhando o céu tentando vislumbrar o outrora astro-rei. Mas nada...

Jornalistas, comentadores, astrólogos e até bispos, venderam a sua teoria em troca de uns segundos de fama num qualquer canal televisivo.

Cedo as tentativas de respostas se centraram na comunidade científica. Teorias de translação, da conjugação do ropirininau com o pátátús, de energias inversas, de sustentação do ozono, e até da atração-repulsa dos corpos celestes.

Com o sol caído para lá do horizonte, como fariam para o recuperar? Quando algo cai, alguém se agacha para o apanhar, mas neste caso a situação era bastante mais complexa, porque quem é que pega numa bola em brasa e a coloca outra vez no céu? Como iria a ciência resolver este imbróglio astronáutico?

Pôs-se em marcha a maior operação mundial de todos os tempos, e encontrar uma solução concertada para pôr o seu, no seu sítio. As agências espaciais trabalhavam noite após noite para que uma rápida solução fosse achada. Porque o mundo simplesmente não podia viver à luz permanente do halogénio!

As plantas ficavam raquíticas, os fungos floresciam, a visão ficava escurecida, os níveis de cortisol e melanina baralhavam-se, os painéis solares dormiam em permanência, o galo não cantava, e nem as sunset partys tinham a parte "pela noite dentro".

Enquanto isso, todos lançavam palpites de como repor a luz! Uns com ideias de focos gigantes de holofotes reguláveis, outros a imaginar o desvio de estrelas da galáxia mais próxima, e os russos a maquinarem a tentativa de intersecção de feixes nucleares que criassem um novo sol... Todas as ideias eram válidas, mas pouco exequíveis na prática...

Surpreendentemente, a resposta viria de um menino de 7 anos de idade!
Na sua simplicidade, apenas pensou em voz alta: se o sol caiu lá por trás e agora está lá em baixo, o que temos a fazer é descer a terra para um sítio mais abaixo do sol...

Solução brilhante, afirmaram os cientistas! Mas como iriam deslocar uma massa de triliões de peso, pelo espaço, para que esta adoptasse uma localização diferente daquela em estava desde a sua existência...? A terra não se mexe assim como assim...

Nesse entretanto, todas as cidades viam o seu funcionamento habitual afectado por este fenómeno quase paranormal. As rotinas eram controladas apenas pelos relógios, mas nunca batiam certo com a lógica do ciclo dia-noite, ao mesmo tempo que as reservas de energia se iam consumindo rapidamente, uma vez que tudo o que era luz artificial tinha de ser mantida acesa 24 sobre 24h. Para além disso, a serotonina e os ritmos circadianos alterados, faziam com que a irritabilidade das pessoas fosse em crescendo, notando-se já alguns distúrbios sociais e focos de tensão em bairros urbanos mais desfavorecidos onde a energia falhava amiúde.

Enquanto se remexiam soluções e mais soluções, já se tinham passado 42 dias do fatídico  apagão...

Curiosamente, a mesma criança que alvitrou a solução, também pensou na resposta: então e se saltássemos todos ao mesmo tempo e afundássemos a terra para um plano inferior?

Todos clamaram aleluias que a solução do problema estava à vista, que iriam resolver o assunto em menos de nada, mas ninguém se lembrou de como executar um plano deste tipo.

Como iriam pôr a saltar 7 mil milhões de almas ao mesmo tempo, de maneira a que a força fosse toda feita ao mesmo tempo, e o impacto fosse ao segundo? E a sincronização desta gente toda? Daríamos uma alerta mundial via rádio, tipo "3, 2, 1, agora?.", e o mundo todo dava um salto sincronizado? Corresponderia a uma força de 3,2 joules por pessoa o que com as agulhas bem afinadas daria um impacto total de 21 biliões de joules. Seria suficiente para deslocar a terra para baixo? Os cientistas quando se interrogaram sobre isto, baixaram os ombros e levaram as mãos à cabeça desanimados...

Mas houve um que se levantou de repente, de olhos muito esbugalhados e completamente despenteado como um porco-espinho.
Fitando o horizonte, sorriu misteriosamente e murmurou entre dentes: já sei!

Melhor que dispersar a ordem de saltar em uníssono, a força teria de ser aplicada num determinado ponto que servisse de fulcro, e para isso apenas necessitariam de meia dúzia de indivíduos com índice de massa corporal superior a 51. Isso, e um ponto algures na terra, resolviam a equação...

As notícias desdobraram-se e os noticiários faziam saber que o COSARPLATE (Comité de Salvação do Astro Rei e do Planeta Terra), procurava basicamente gordos e muuuito gordos para o salvamento da Terra. Ou do sol, conforme a perspectiva...

Os americanos foram os primeiros a responder com um eunuco de 32 anos e 522 quilos, os alemães ofereceram duas mamalhudas com 381 quilos, os albaneses lançaram um exemplar de porte baixo e redondo com 403 quilos, a polinésia francesa com um indivíduo quase aparentado de javali com 381 quilos, e os portugueses com o redondo do Carlinhos de Alfama, cujo fígado pesava uns impressionantes 183 quilos!

Foram apresentados nos noticiários como os peso-pesados da estratosfera, posando em tanga e exibindo todas as suas flácidas gorduras pendentes, com um orgulho descontraído.

Depois de muitos cálculos e equações rigorosas, decidiu-se que o epicentro que iria fazer estremecer a terra e abatê-la uns bons metros, estaria no terreno da Teresinha dos rissóis, em pleno centro de Massamá!

Ali se montou a maior tenda de telecomunicações do mundo, em que cientistas, investigadores, engenheiros e cartomantes beirãs, estudavam o ponto exacto em que o grupo dos gordos teria de saltar.
Para esse fim, construíram cinco torres em volta de um determinado ponto marcado com uma cruz amarela, em que os peso-pesados teriam de acertar.

O dia chegou em grande azáfama, com os presidentes das grandes potências mundiais a marcar presença no local, rodeados de um fortíssimo aparato de segurança. Havia quem não gostasse de chamar-lhe "o dia", uma vez que a terra estava imersa num escuro breu desde há quase 223 dias, mas para o caso pouco importa.

Os gordos estavam tão concentrados e focados na sua missão, que nem repararam que tinham rejeitado uns pratos de tripas com favas e uma francesinha de sobremesa. Começaram a subir as torres, ajudados por uma grua que lhes poupava o esforço dos pequenos músculos, tolhidos pela gordura que pendia flácida e luzidia de tudo quanto era recanto e prega do coirato humano. Ao chegarem lá cima, olharam concentrados para o X onde teriam de aterrar, sabendo que da precisão e pontaria dependiam milhões de almas fotosintéticas.

A contagem decrescente foi dada a nível mundial e todos a acompanhavam pela televisão, como se da extracção da lotaria do Natal fosse.

Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, e......atiraram-se no vazio em câmara lenta num movimento artístico que os fez cair todos no mesmo exacto segundo, enquanto a assistência sustinha a respiração de ansiedade...

Puuuuumba!!!! Um estrondo imenso abalou as estruturas mundiais, numa escala de richter enormíssima e de tal maneira, que a Terra foi mesmo impulsionada para baixo e o sol ganhou a sua posição lá no alto! Tal e qual como tinha previsto o rapaz!!!

Assim como desapareceu, assim recuperou o sol o seu lugar lá no cimo. Brilhava de novo tão intenso e quente como se dali nunca tivesse saído.

Foram sete dias de festejos e de folia, que devolveram a esta gente uma alegria e uma jovialidade nunca antes sentida na Terra...

Assim se fechava um período negro da história do planeta.

Assim os homens demonstraram que basta unir-se para que o sol brilhe para todos...

Assim nos unamos para que o bem comum aconteça...

Assim, seja...

domingo, 10 de agosto de 2014

A cereja no topo


Trabalho, honestidade e.....bom senso! Este é o ingrediente em falta para completar a minha trilogia de sucesso.
Ninguém sabe o que é, mas todos o usamos no dia-a-dia. Ou pelo menos todos o deveríamos usar....

Por um lado funciona como um sexto sentido, em que intuitivamente assumimos as nossas opções, por outro lado funciona com uma análise racional e pensada daquilo que vamos decidir.

Chamemos-lhe a opção pelo feeling, e a decisão pela táctica do xadrez.

No feeling, que nem toda a gente possui, o bom senso é aplicado mais ou menos ao calhas, e apenas pelo faro de que se tomarmos aquele caminho as coisas vão funcionar bem. Mas não é suportado por nenhum indicador à vista. Digo à vista, porque provavelmente os inputs que fomos recebendo ao longo da vida, dão-nos confiança empírica de que a opção acertada será aquela. Aqui o anglicismo expressa na perfeição a génese, e resume um abstrato que fundamenta esta lógica-pouco-lógica. Podemos dar como exemplo, o bom senso de contornar um beco escuro para chegar são e salvo ao destino. É quase como uma intuição que nos indica a melhor malha.

Enquanto o feeling funciona como um instinto primitivo, o bom senso aplicado com a regra do xadrez é mais elaborado e racional. Tal como no xadrez, o jogador avalia o tabuleiro, analisa a jogada e sabe que com aquela jogada, poderá ter uma série de sequências na cabeça que lhe permitirão reagir conforme o movimento das peças brancas. Ele sabe e consegue prever as diversas alternativas que se desencadeiam por mover a torre para E4. Não é futurologia, mas apenas uma dedução de combinações que se podem suceder de forma matemática até prevermos o xeque-mate.

Tomemos como exemplo aparentemente estranho, a discussão ocasional de dois transeuntes! O bom senso nos dirá que devemos intervir sem tomar partido apaziguando os ânimos, porque o nosso objectivo é que ninguém se aleije, sabendo de antemão que o restante processo de (des)entendimento não nos caberá a nós. Mas antes desta intervenção, devemos prever todo o processo mentalmente: se há condições de segurança, se estão armados, se aparentam pouca ou muita ferocidade, se têm indícios de doença mental, se temos ajuda por perto, etc, etc, etc. Ou seja, nesta modalidade aplicamos o bom senso de forma racional e estimada, avaliando os riscos e benefícios do cenário em questão.

Podemos quase inferir, que o bom senso não sendo uma ciência exacta, se comporta em alguns aspectos como uma ciência. Na análise, na ponderação, na colocação de hipóteses e metodologia própria de confirmação, eventualmente até no campo da própria experimentação.

O bom senso aplica-se sempre numa encruzilhada, numa paragem, numa tomada de rumo que irá determinar qual o caminho a enveredar. E é este factor que determinará o sucesso da opção escolhida. Porque podemos trabalhar muito e ser muito honestos, mas nas verdadeiras decisões de vida, o bom senso é que vai fazer a diferença. A diferença para o positivo, para o rentável, para o gerador de ganhos e conquistas que lançam pontes e ampliam ligações capazes de gerar mais sucesso. No fundo é aquele toque de magia que distingue muitas vezes o bom do excelente!

O senso é um domínio que somos chamados a exercitar em todas as tarefas do dia a dia. As que têm mais impacto são geralmente mais exigentes, e demonstram uma maior capacidade na sua aplicação. Uma teoria do fole num exemplo real, exige uma grande dose de senso, para que a loucura não se derrame e invada de letras este ecrã. Desde que acordamos até que nos deitamos, o senso é aplicado em tudo. Nas ocasiões e nas acções. Todavia, enquanto o senso é aplicado por todos de forma universal, o que distingue uns dos outros é a diferença daqueles que utilizam o senso, daqueles que utilizam o "bom senso" que falamos. Os primeiros usam-no por necessidade, os segundos para resolver uma necessidade com eficácia. Jogar à bola todos jogamos, mas marcar golos nem todos...

O bom senso implica também saltar cercas. Superar chavões e disciplinas balizadoras, sulcando um caminho para alcançar o sucesso. É por isso que nenhum fundamentalista pode ser sensato, pois a aplicação cega de uma regra não permite a maleabilidade suficiente para reconhecer que ao tomar determinada acção através duma conduta inflexível, ela o vai impedir de alcançar muitas vezes o desiderato correcto. Podemos quase chegar ao exagero idealista de afirmar que as regras foram feitas para as quebrar. Por isso o fundamentalista puro não alcança o sucesso pleno. Porque se bloqueia nas suas próprias soluções estanques, e não introduz as circunstâncias na sua equação de solução, agindo irredutívelmente numa solução quadrada e limitada.

Não tenho dúvida que o bom senso é o calço que possibilita o acesso ao sucesso, e a prova disso é a de que os grandes estadistas e universalmente reconhecidos como personalidades consensuais, utilizaram o seu bom senso em questões sensíveis e delicadas. Ghandi com a sua atitude pacifista evitou uma guerra civil que seria terrível, Obama com a sua gestão de bons-sensos leva à reforma do sistema de saúde americano, e mesmo o Papa Francisco consegue reunir várias religiões, passando a mensagem da paz de forma universal.

O bom senso é também um processo de aprendizagem, de maturidade, e muito denota de ponderação. É importante que analisemos os seus processos de aplicação para que possamos corrigir erros e transmitir essas experiências a outros. Por defeito, os idosos tem em regra uma aplicação do bom senso mais optimizada e aperfeiçoada. Não é também à toa que habitualmente, as pessoas lhes pedem conselhos e opiniões. Tem a ver com este processo de tentativa-erro e feeling que cada um possui.

Ninguém se pode prender à obsessividade de alcançar o bom senso absoluto porque é quase impossível, mas concluo tal como comecei: trabalho e honestidade como a base da trilogia, e bom senso aplicado no topo do vértice!

Esta é a fórmula da trilogia do sucesso!

Bons feelings, então!

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Honest-age


Para além do trabalho, a honestidade é outra das virtudes essenciais ao sucesso. Mais uma vez, independentemente das características ou atributos de alguém, este é um bem intrínseco pelo qual devemos lutar para que se interiorize e mantenha nas nossas vidas, transformando-se quase numa bandeira ou num desígnio de luta.

Não sei se a podemos definir como uma qualidade, uma característica, uma aptidão, um mecanismo ou conceito de viver, mas é de certeza um valor nuclear que permite à espécie humana distinguir-se das restantes. Devemos ser honestos connosco, com os outros e entre nós.

A honestidade para com terceiros, coloca-nos num patamar de confiança que permite ao outro saber que o nosso alicerce é aquele. Seja da forma que ele se comportar, sabe que a nossa honestidade é o reflexo da transparência e sinceridade. Por isso a honestidade é tão importante. Porque engloba uma série de outros pressupostos e valores de carácter concreto, tais como a sinceridade, a confiança, a justiça, a franqueza, a coerência, a responsabilidade, a correcta postura filosófica de uma forma de vida.

O simples facto de os outros saberem com aquilo que contam por parte do honesto, poderá parecer uma fraqueza. Fraqueza no sentido de que poderão explorar essa honestidade, e daí tirar vantagem numa qualquer situação. Nada mais errado! Aqui a honestidade poderá ser percepcionada como tal, mas transforma-se numa arma muito poderosa pelo simples facto de ser na sua essência, genuína e imutável. A constância e solidez da honestidade, é como um desfile militar: simples, ordenado, transparente, e sabendo que para lá é o caminho.

Por exemplo, com estas atitudes sabemos que um vendedor da teoria do fole que vende um produto maluco, fornece a confiança suficiente para que os outros saibam que vão adquirir a maluquice naquela dose que estão à espera. Da mesma maneira o merceeiro honesto vende a fruta fresca, o padeiro honesto vende carcaças do dia, e o aluno honesto pode virar-se para o professor e retorquir: "não percebi"...

A honestidade pode ser inata, mas tem também uma componente dinâmica e de treino regular, quase como uma religião. O honesto praticante, algumas vezes tem de frontalmente assumir a sua honestidade perante as situações com que se depara. Se eu encontrar um envelope com dinheiro na rua, terei de frenar o ímpeto de ficar com ele, se receber um segredo de alguém terei de saber guardá-lo, se prometi jogar à bola ao fim da tarde terei de cumprir a minha promessa. Por isso é um exercício diário, umas inconsciente e outras conscientemente, de uma postura de vida recta e com rumo certo.

Mas nem sempre conseguimos isso. Só os santos são cem por cento honestos, e ainda assim veja-se Judas...

Mesmo com o conceito enraizado, não quer dizer que por vezes não fujamos dessa linha de orientação e conduta. O que também não significa que sejamos desonestos. Ter falhas de honestidade não se transforma no fim do mundo, mas não se pode é ser recorrentemente desonesto e viver nessa lógica permanente, como vivem algumas pessoas. Todos tivemos os nossos momentos de desonestidade, mas o importante é que a nossa vida se paute pelo trilho da integridade e reflexão desses momentos de lapsos de atitude. Só assim poderemos aceitar que este é um processo em contínua evolução e consolidação.

Por curioso que pareça, a honestidade também existe nos maus ambientes e nas disputas regulares. Tomemos a referência da guerra, em que alguns pressupostos "honestos" são honestamente cumpridos. Num campo de batalha respeitam-se geralmente as bandeiras brancas, as equipas de saúde, os cessar-fogos, os controlos de pilhagens, certo? É de comum senso que os prisioneiros de guerra sejam tratados com dignidade e respeito, com cumprimento honesto das regras entre vencedores e vencidos. Que contra-senso, a existência de actos de honestidade nestes cenários de Dante, verdade...?

Na lógica inversa e seguindo o reflexo do espelho, podemos ver aqueles que apregoam honestidade através de alguns actos honestos e colaborantes. Solícitos, prestáveis e sedutores, muitos são, na sua essência diária desonestos, apesar de darem uma imagem contrária. Nunca cair nesta malha ao primeiro engodo, embora admita que pode ser difícil. É aquilo a que o pensamento popular identificou já há muito: o chamado lobo vestido com pele de cordeiro...

A honestidade nem sempre é o caminho mais fácil de escolher. Pela simples razão que implica muitas vezes a nossa preterição e abnegação, de algo que à partida poderá ter algum valor. Porque por vezes ser honesto, é abdicar de algo que até poderia ser bom para alguém ou para o próprio, mas o conceito de honestidade tem outro implícito, que é a coerência. Coerência nas escolhas e atitudes que reflectem a nossa honestidade. Apenas como exemplo, designo a coerência em abdicar de um determinado prazer ou luxo, porque os nossos princípios nos afastam do desperdício.

Sempre houve e sempre haverá desonestidade neste mundo, mas temo que a honestidade de hoje não seja a mesma de ontem. A de ontem, fazia-se cumprir por pressupostos e regras comummente aceites como imutáveis, como um código de honra que nunca pode ser desrespeitado. Selar contratos com simples apertos de mão, é de um simbolismo tão grande e tão eloquente, que chegamos a ter consideração pelos mafiosos....

Como se pode ver, uma palavra que engloba tantos pergaminhos e tantos submundos escondidos, confere uma força e um carácter enormes a quem a usa e abusa, a quem a pratica e a quem a cumpre com rigor, daí colhendo os seus frutos e vivendo na plenitude da paz.

Acima de tudo, significa um grande legado transmissor que é o da responsabilidade. Responsabilidade no contágio destes conceitos, de forma a que se espalhem e se tornem universais, de forma a que criem um núcleo social de referência, de forma a que se tornem estruturais e virais. Sobretudo para aqueles que nós próprios criamos de perto.

É este valor seguro que vejo e revejo nos meus pais, e é este valor seguro que quero demonstrar e passar aos meus filhos.
Nos actos e nas omissões.

domingo, 6 de julho de 2014

O trabalho sem C



O trabalho sempre foi uma pedra de dois gumes: ora dá saúde, ora causa doença!

Dá saúde porque activa a mente e o corpo, sendo estas as duas partes mais importantes do eu e do nós como pessoas. Activa a circulação, estimula-nos o cérebro, ocupa-nos a mente, coloca-nos desafios muitas vezes mais complexos que um cubo de rubik. Parar é de facto morrer, e ninguém quer antecipar a sua morte cessando o que quer que seja. Mas tudo isto também é verdade se o trabalho que estivermos a fazer for minimamente aprazível, interessante, e dentro dos nossos horizontes de ideal de vida.

Caso contrário, teremos um trabalho que não nos trará saúde, mas sim doença. Porque irá gerar stress, ansiedade, insatisfação, descontentamento e como diria alguém famoso: inconseguimento, podendo nestes casos concluir que o trabalho não faz bem a ninguém...

Mas também há os trabalhos que de facto causam doença, directamente relacionada com a sua actividade: os mineiros com a maldita bronquite crónica, os aviadores com os tímpanos lixados, os atletas com artroses de velhinhos, os djs com ouvidos moucos, os salva-vidas com melanomas, não esquecendo os cervejeiros com cirrose, e os leitores da teoria do fole com surtos psicóticos. Aqui temos uma acção comprovada da relação causa-efeito de que tanto se fala na moda da ciência..

Sem dúvida, considero o trabalho uma das virtudes mais importantes para se alcançar o sucesso. Podemos ser muito espertos, muito sabedores, muito criativos, muito talentosos, mas sem o hábito enraizado de trabalhar nunca seremos ninguém, nem nunca alcançaremos algo que nos dignifique como prova superada por nós mesmos.

Podemos ter e gostar dos momentos de preguiça e lazer, mas o dia-a-dia daquilo pelo que nos esforçamos por ser, fazer, e ter, é o componente mais importante para atingirmos aquilo a que nos propomos. É por esta razão que os preguiçosos ou aqueles que se penduram no trabalho e dependência dos outros, nunca têm plenitude nem chamam obviamente oportunidades para si.

Curiosamente, na época moderna e na abordagem empresarial do trabalho, os tempos de lazer e de descanso são cada vez mais incentivados e aplicados, promovendo-se uma lógica de quase diversão  no trabalho. As grandes multinacionais têm ginásios, clubes de actividades, espaços de lazer e convívio, para que o trabalho que os seus funcionários executam, seja estimulado pela via do prazer e do bem-estar.

Historicamente, a maioria dos trabalhos eram de força, de labuta, de esforço físico intenso. O clássico sangue, suor e lágrimas. Isto porque se tornava penoso o esforço aplicado na lavoura, na construção, nas limpezas, essas sim objecto de trabalho e dedicação física intensa. Daí a simbologia que melhor representa o trabalho ser a foice e o martelo. Longe de analogias partidárias, faz sentido que sejam estes os instrumentos ilustrativos daquilo que primeiramente conseguimos pelo trabalho base: a lavoura e a construção.

Os trabalhos foram evoluindo de tal maneira, ao ponto de quase todos serem considerados de profissões, catalogando-se as diferentes actividades conforme os diferentes desempenhos específicos: médicos, cantoneiros, juízes, padeiros, pintores, professores e até imaginem-se: políticos! Apesar desta arrumação por etiquetas, nem assim podemos dizer que todas as profissões estão associadas ao trabalho...

Por estranho que pareça, o antagónico de trabalho dizem ser o ócio. E certo é que os ociosos dizem ter o trabalho mais intenso do mundo, isto porque lhes custa muito para usufruir dessa mesma ociosidade. Ou então trabalharam tanto que já não precisam auferir mais, para se deixarem sentados à sombra daquilo que fizeram, produziram ou conquistaram.

Trabalhar também se trata de uma aprendizagem. Faz parte de um processo que passa por ir aperfeiçoando as técnicas e o modus operandi, tentando ser o mais eficiente possível. No fundo não apenas tentar ser eficaz, mas tentar cada vez com menos recursos atingir objectivos mais rápidos e precisos. Claro que neste envolvimento, também cometemos erros, desvios e más interpretações, mas isso faz parte da aprendizagem por tentativa-erro, e permite-nos melhorar a abordagem do trabalho seguinte. Uma obra, uma relação, uma operação, um objectivo, dependem sempre da forma como nele investimos, e como nos empenhamos.

Trabalho implica empenho, dedicação, capacidade de análise, projecção, desenvoltura, num todo o género de aptidões adquiridas e melhoradas, que nos fazem crescer e ter sucesso. Não é o sucesso de aquisição ou conquista, mas sim a simples essência de nos podermos deleitar com o resultado do nosso próprio trabalho. Produzir é dar um bem ao mundo.

Nada se adquire sem trabalho ou dedicação ao trabalho. Nada cai do céu, nada se concretiza sem  essa atitude pró-activa. Não basta ser bom nem acreditar na sorte ou fortuna, para alcançar o que quer que seja. É preciso trabalho e mais trabalho, para conseguir o que os ingleses gostam de chamar de achievement...

Não nos cingindo apenas ao factor laboral, destaco o trabalho como instrumento de perseguição daquilo que nós traçamos como objectivo. Desde o trabalho em construir uma relação, o trabalho em cuidar de alguém, o trabalho de regular os nossos, a nossa própria profissão, a nossa escola, tudo deve implicar esforço e dedicação estruturada.

Nesta esfera que nos rodeia, e em que interagimos com tudo e com todos, fica a sensação de que por vezes deveríamos passar mais tempo a construir coisas. E digo coisas, exactamente com esse sentido literal da palavra "o que existe ou pode existir". Ou seja, prevê e incluí algo que podemos vir a ser responsáveis por criar.

No fundo, tudo dá trabalho. Pensar, ler, escrever, relacionar-se, manter as relações, criar um filho, acordar de manhã, estabelecer ligações, fazer e desfazer novelos. Para alguns há situações que implicam maior ou menor esforço, mas todas têm um ingrediente secreto, que se transforma na chave do sucesso: o trabalho.

Nada acontece por acaso, e se por um outro acaso maior, queremos ou desejamos algo ou alguém como nada na vida, temos mais é que arregaçar as mangas e lutarmos, moldarmos,  empenharmo-nos, no fundo trabalharmos...

E com isto tudo se mantêm e evoluem estruturas, ligações, objectivos.
Por isso...mãos à obra!

 


quarta-feira, 28 de maio de 2014

2999


Através do vidro conseguia abraçar com a vista, aquela imensa cidade que se estendia como um tapete de luzes cintilantes. Enquanto tomava o seu almoço em forma de comprimido amarelo, não conseguia distinguir os humanos dos andróides que circulavam na monovia intergaláctica.

Desde o ano 2231, que a empresa "Humanóides - Inc" tinha melhorado o seu andróide humano XP30. Hoje em dia, passados cem anos, é impossível distinguir um destes de qualquer ser humano. Eram todos construídos com peças de carbono, ligadas com rudimentares articulações de parafusos e porcas, funcionando a partir duma central electrónica localizada ao tronco, que por sua vez comandava todo o processo físico e intelectual. Análogos de tecido humano davam a consistência a estes robôs, e era possível ver andróides gordos, feios, bonitos, magricelas, vesgos, mancos e tóninhas.

Uma empresa estatal controlava os milhões de andróides da galáxia Zurca, e estabelecia quem levava com o sinal de nascença.

A única maneira de distinguir os humanos, era porque estes não tinham o interruptor no topo da nuca como os andróides, e porque os humanos vomitavam, o que a tecnologia ainda não permitia a estes genéricos de pessoas.

O vómito sempre foi uma característica nojenta e degradante da condição humana. Aquele barulho gutural que parece arrancar as vísceras por dentro é inimitável...

Nesta sociedade, as famílias modernas eram sempre constituídas por um misto de humanos e andróides. O pai andróide, a mãe humana os filhos humanos. O pai andróide, a mãe andróide, os filhos humanos. O pai humano, a mãe andróide, os filhos andróides. E por aí fora. A tecnologia ainda não tinha sido desenvolvida para que as mães andróides dessem à luz, mas em compensação, os pirilaus andróides podiam relacionar-se não só com congéneres autómatos, mas também com a carne propriamente dita.

A mistura era grande, todos tinham papéis iguais, todos tinham os mesmos direitos e deveres, e até a legislação foi mudada de modo a regular as possíveis discrepâncias.

Era neste mundo do futuro, inimaginável desde o tempo de Jesus Cristo, que homens e criações do arco-da-velha, conviviam com alma e empenho…

Mas como em todos os mundos pintados de cor-de-rosa, havia sempre alguns nichos de excluídos e marginalizados. Neste caso, tratava-se da tribo minoritária chamada Ilítris. Eram descendentes do primeiro rei zarolho, de um pequeno país situado naquela que denominavam antigamente de península ibérica. Uma península próspera e recheada de gente bem-disposta, que foi acometida por uma doença vulgar e comum naquelas paragens, a que se pensa terem chamado de "Dívida soberana", doença essa não completamente caracterizada por falta de registos, devastados aquando do piquenique de uma empresa de nome "Continentus".

Os Ilítrianos eram normalmente postos de parte nas questões geopolíticas e estratégicas do espaço sideral, porque tinham uma baixa cota de andróides nas funções de jardinagem, sendo relegados para importância de segunda, por não cumprirem as directivas ecológicas e ambientais que obrigam ao rácio de um jardineiro para 53 repolhos e dois gengibres.

Várias vezes a Humanóides-Inc, na pessoa do seu presidente, Ralitus Tiluana, tentara fornecer remessas de andróides a estas paragens tão longínquas de tudo. Mas sempre lhe boicotavam a acção, utilizando simples artimanhas de guerrilha, uma vez que os robôs não estavam preparados para ordens tão sui generis como: "agora tocas com o teu cotovelo esquerdo na tua nádega direita", ou "penteia-te, andróide careca!" ou o fulminante "desliga-te na nuca!". Esta última ordem gerava um tal conflito emocional no andróide, que este entrava em curto-circuito, revirava os olhos e libertava fumo azul pelas orelhas, desintegrando-se em várias peças não reutilizáveis.

Tiluana porém, não desistia facilmente do desafio de conquista e implementação da sua estratégia imperialista de povoar os confins e sem-fins da galáxia. Usou das mais variadas artes para introduzir os andróides na península ibérica: levados por cegonhas, oferecidos em cabazes de fruta, vendidos em fascículos, escondidos nos púcaros das caldas, e até no fundo dos cartuchos da castanha assada. Nenhuma destas brilhantes ideias foi capaz de vingar.

Como última tentativa e golpada de génio, lembrou-se de organizar um chá dançante onde os andróides teriam a oportunidade de mostrar os seus mais variados dotes humanos: a confraternizar, a seduzir, a socializar, a dançar, a contar anedotas, a cantar, entre outras coisas esquisitas como estas habilidades da alma.

Da mesma janela que contemplava a cidade, e com um sorriso maquiavélico, imaginava-se a conquistar o último reduto humano como um triunfador que joga a sua última batalha da guerra final!

O seu receio era apenas um: que os humanos desatassem a gritar ao ouvido dos humanóides a temível ordem "Desliga-te na nuca", pois ele sabia que isso destruiria a sua legião de soldados invasores. Por isso de imediato ordenou que todos os humanóides implicados nesta missão colocassem tampões nos ouvidos, não podendo receber ordens autofágicas.

A sétima feira do último dia do quarto minguante, foi a data escolhida para o mega evento que iria promover o encontro entre humanóides e humanos, sob a escusa guarda-chuva de "I Encontro Universal dos Teseus Ameliados". Ninguém desconfiava de um argumento tão forte, pelo simples facto de ser um argumento inexistente e banal.

O marketing de promoção do evento estava tão determinado, que distribuiu panfletos desde a galáxia vizinha até ao monte do Ti João, passando pela serra dos Machundungos como quem vai para a antiga vila de Quarteira. Os anúncios sucediam-se na rádio, televisão, nas ondas zit, e até nos implantes cocleares, pelo que o sucesso estava quase garantido. De sorriso malvado pintado nos lábios, Tiluana esfregava as mãos de satisfação....

Naquele dia, humanos e humanóides faziam fila para entrar no mega-pavilhão, sendo que a comitiva do humano governador ibérico - Ramiro Ramirez, o descendente de Afonso Henriques - já se encontrava no seu interior.

O baile foi inaugurado pelos anfitriões, ao som de uma mega banda electrónica com músicos oriundos dos planetas mais exóticos e epifânicos, que interpretavam as belas sinfonias da teoria do fole.

A pista dançante movia-se ao som dos graves mais baixos, aerossóis de baunilha eram pulverizados para o ar, líquidos fumegantes passavam em bandejas para refresco dos mais sequiosos, e pequenas bolas de berlim rolavam no sistema suspenso para alimentar as bocas de açúcar. O clima era de euforia, e todos suavam, humanos e humanóides...

A humanidade estava prestes a perder o seu último reduto, incólume das investidas colonizadoras desde os primórdios da miscelânea com os robôt-pessoa. Os humanos da península ibérica, o último bastião da genética pura, parecia que ia cair na armadilha fatal da Humanóides-Inc.

Parecia, mas apenas parecia. Isto porque Ramiro tinha também preparado um contra-golpe de mestre. Acompanhava a ofensiva, com formigas radiotransmissoras, que enviavam reports actualizados de todas as movimentações e ordens de Tiluana.

Eram cinco prá meia-noite e os humanos disfarçadamente se afastavam dos seus genéricos de pessoas, a música insistia numa batida mais lenta e hipnotizadora, com rezas budistas milenares a enebriarem o subconsciente.

Doze badaladas soaram de um cuco gigante, instalado na parede junto à entrada.

Nesse preciso momento, numa acção concertada ao milésimo de segundo, todas as rádios do universo, todas as televisões do universo, todos os implantes de cabelo do universo e todos os megafones e afins do universo, deram a temível ordem de voz em uníssono, em três tons dissonantes:

"Desliguem-se na nuca!"
"Desliguem-se na nuca!"
"Desliguem-se na nuca!"

Os andróides do universo pararam de repente, puxaram a mão atrás e puseram-se em off, caindo-lhes os braços ao longo do corpo e curvando o tronco para a frente sem cair., como se a bateria acabasse. Um monte de peças e parafusos, alguns a deitar fumaça pelo pescoço, um exército de clones parados, espalhados pelas quatro partidas da galáxia!

Os momentos seguintes foram de silêncio, os humanos olharam uns pró outros e reconheceram-se olhos nos olhos, pele na pele, respiração com coração, e gritaram em júbilo:

"Livres da tirania tecnológica, para todo o sempre!"

A humanidade tinha vencido a sua própria invenção....

Fim!

PS: quando conhecerem alguém, confiram-lhe a nuca, sff…

sábado, 10 de maio de 2014

O Positivismo natural


Certa vez numa aula de filosofia, a professora perguntou se alguém queria expor alguma coisa que tivesse aprendido nesse fim de semana. Por acanhamento ou por preguiça ninguém levantou o braço, com excepção do João. Era um dos cools da turma e estava sempre a contar anedotas, pelo que ninguém estranhou o salto para o meio da arena, embora tivessem ficado intrigados com esta súbita vontade em participar da aula.

-A setôra conhece a perspectiva filosófica do positivismo natural?
A professora, jovem, de formas opulentas e pele alva, corou até as orelhas flamejantes, só pelo pensamento imediato de desconhecimento daquilo que João lhe falava.
-Hãm...não...não conheço muito a fundo, balbuciou com voz trémula perante uma assistência de sorriso trocista.

O João sorriu, inspirou devagar profundamente, fechou os olhos como se abrisse um livro mentalmente, e na meia hora seguinte, falou, falou, falou e expôs uma corrente filosófica assente no amor, na compaixão, na procura da felicidade presente, no altruísmo, na humildade, na bondade, na construção, na serenidade, na contemplação, na alegria de ser, verbalizando um pouco como afinal vivia ele próprio, num discurso verdadeiramente eloquente e apaixonado.

Nunca mais me esqueci daquele momento mágico, em que alguém inventou um desígnio que pode ser seguido por tantos outros. Até a professora se sentou, embevecida, a beber de tamanha inspiração inventada.

Garanto que não procurei no google a palavra Positivismo natural, mas creio que pode ser uma corrente possível de ser replicada infinitas vezes. Vivemos demasiado afogados em trabalhos caseiros, que perdemos tempo naquilo que é essencial: a nossa vida e a vida daqueles a quem queremos bem, porque se o outro está bem hoje, amanhã serei eu que estará. O centralismo egoísta de querer ganhar e vencer tudo, não se coaduna sempre com disponibilidade para os nossos. O positivista não escolhe nem determina estes caminhos, mas simplesmente toma outros rumos mais arejados e cheios de boas ondas.

Podendo parecer como tal, o positivismo não quer dizer necessariamente apenas a antítese do negativismo, o reverso da medalha, ou uma hipérbole do que poderia ser apenas normal. Trata-se de uma forma de estar, em que tudo aquilo que acontece e se nos depara, é transformado em algo que pode ser aproveitado, contornado com energia se for lamacento, ou eternizado se for  normativo e prazenteiro.

Temos certo que pessoas com determinados handicaps, têm por inerência menos oportunidades, mais limitações, e por isso entram facilmente no negativo. Mas algumas avessam aquilo que pode parecer um entrave, para renovarem a energia e redobrarem o empenho naquilo que tocam. Passam a ser positivistas, porque adquirem ganhos que lhes potenciam a força necessária para se reempenharem noutros projectos e incursões.

É desta maneira que o positivismo se destaca mais nas situações de desgraça ou tragédia. Porque é aí que ele muitas das vezes tem de actuar. Perante uma destas situações, em que a zona de conforto se destrói e é invadida por um tsunami devastador, o positivista reage com uma reorganização posicional e de abordagem emocional, que naturalmente o reordena para um patamar diferente de bem-estar e alegria. A perda, a ruína e o impedimento, são três flagrantes exemplos daquilo que falo como tsunami. Pode-se concluir que nem tudo o que é desgraça leva um choque à frente...
 
E no meio desta amálgama de seres que somos, como adivinhar o perfil do positivista?

Os sinais exteriores e exteriorizados, são uma boa montra desta corrente.

O sorriso pode ser interpretado como um bom sinal exterior de positivismo, mas podemos ser enganados, porque nem sempre um sorriso esconde a atitude proativa. É uma evidência de boa vontade relativa a, mas não é suficiente. E muitas vezes pode ser enganador...

O falar muito, o gesticular muito, dar muitas gargalhadas e ser muito prestável, também pode encapotar um falso positivista e esconder um doido desvairado, tendo em conta que o extremo do positivismo também pode cair no patológico. A mania é o auge do positivismo, da insanidade e da loucura, que nos pode levar a voar entre prédios com uma qualquer capa de super-homem, ou a ambicionar conquistar o mundo com um exército de boa vontade.

O positivismo também se pode relacionar com o nível cultural e social onde estamos inseridos. Tenho por certo que níveis mais elaborados na hierarquia social, possuem mais armas, elementos físicos e conforto, que lhes permitam eventualmente pensar em ser activos no sentido positivo. No entanto, também é difícil definir um padrão de atitudes com as mesmas premissas, porque as relações humanas são no fundo o factor determinante na construção das nossas acções positivas e proactivas. E essas são demasiado complexas para estarem vinculadas a algo material.

Também é difícil catalogar os positivistas e agrupá-los em sectores. Os que nascem assim, e para quem a vida é simplesmente simples de viver: sabemos da D.Teresa da padaria, da Josefa da peixaria, do Sr.António da venda, que sempre parecem contentes com tudo, e para quem não existem problemas mas apenas soluções. Nestes, a genética tem um imprinting natural, que lhes confere esta aura de desconexão com os imbróglios.

Existem os positivistas racionais, para quem as atitudes tomadas e dirigidas são em prol duma acção regeneradora, os positivistas altruístas que magnanimamente distribuem efeitos concretos na sociedade onde se inserem, e os positivistas zen, que até com uma folha de alface rejubilam e analisam a criação do mundo.

Mas no supremo auge desta corrente estão sem sombra de dúvida as crianças. São o cúmulo do positivismo e deve ser seguido o seu exemplo de actuação. A ingenuidade, o despretensiosismo, o horizonte sem fim, são os limites de regulação daqueles que nos fazem sorrir com tanta alegria. Eu quase que arriscaria a dizer que a dada altura, o grau de positivismo é inversamente proporcional ao decorrer da idade física!

No fundo, as questões intrínsecas ao positivismo podem estar relacionadas com algumas variáveis fixas do ambiente, da família, do trabalho, da idade, da genética,  do empenho, do tipo de  abordagem, do número de teorias do fole que se leu, da cor da camisola da selecção, ou até do pormenor do chapéu escolhido para esse dia. Mas mesmo tendo em conta todas estas peças do quadro, nunca podemos esquecer que o fundamental da corrente positivista está em cada um de nós, na nossa capacidade de impulsionar e de alcançar algo tão simples como a felicidade e a paz.

O positivista não tem o melhor de tudo, apenas faz de tudo o melhor!

Nós é que complicamos...

Obrigado pela lição na escola e um abraço João!



quinta-feira, 27 de março de 2014

Crise...



Tenho pena que se vão embora, tenho pena que não estejam mais aqui, tenho pena de não partilhar mais momentos juntos, mas sinto felicidade em saber que vão para um mundo melhor, para uma vida com futuro.


Dos muito amigos e conhecidos que tenho, posso afirmar que cerca de metade já deixou o rectângulo. Todos com formações profissionais sólidas, em áreas diversas e muito diferentes entre si, mas todos com a mala cheia de ambição, de energia de encontrar, de vontade de fazer mais e melhor, por si e pelas suas famílias. E isso orgulha. Orgulha porque vão marcar a diferença, porque vão fazer aquilo que gostam, porque vão ser felizes. E ser feliz é muito importante. Se eles são felizes lá fora, então eu também sou feliz cá dentro.

Não sei nomear responsáveis, mas arrisco que somos todos nós.

Que país será este, que cria os seus e depois não os incentiva a ficar? Percebo questões financeiras em fechar apoios, em fechar torneiras, em parar queimas desnecessárias, mas essa é uma visão que não pode ser aplicada indiscriminadamente.

Podemos poupar na educação, na saúde, na justiça, na defesa, no desporto, pois são áreas de gestão enormes, que sempre terão as suas estruturas bem vincadas e efectivas. Com menor ou maior produtividade, sempre estarão lá a desempenhar o seu papel, a sua função de base e à espera de dias melhores. Nem sequer me atrevo a pô-las em causa, pois estas são áreas pilares de qualquer sociedade, e a sua preservação é fundamental para termos cidadãos fortes e sólidos. A sua restruturação e actualização é sim uma verdade fundamental e inquestionável, mas daria tema para outra teoria do fole...

O desinvestimento global é que faz a emigração, a falta de tacto político é que faz a emigração. A visão estratégica de curto alcance é que faz a emigração. Porque uma vez fora, os nossos já não voltam.

Fala-se na descoberta de uma diáspora portuguesa de novos contornos lusos. Já não são só os antigos clusters de emigração, onde se aglomeram os restaurantes portugueses, onde os portugueses fazem a apanha do morango, onde se constituem em ranchos folclóricos, onde celebram os rituais profundos das suas aldeias, onde o fado se canta no verdadeiro género de saudade, mas são agora espaços comuns e globais, em que os portugueses transportam a sua portugalidade.

As empresas, instituições e as marcas que se replicam nos quatro cantos do mundo, têm agora um toque importante de lusofonia, porque estamos lá, nas mais diversas áreas que alimentam o engenho produtivo e laboral a todos os níveis de trabalho.

Já somos qualificados o suficiente, para vingarmos na esfera do trabalho exigente e competitivo. Aprendemos e apreendemos aqui, para executar lá fora. Muito sacrifício e mérito do próprio, mas também de toda a comunidade que adubou e regou estas sementes de saber.

Coloca-se também outra questão que hipoteca as gerações seguintes: quem irá formar com qualidade os novos formandos? Quem não conseguiu emigrar porque se calhar tinha menos skills e empreendedorismo? Teremos uma geração seguinte de nível médio e talvez até medíocre nalgumas áreas? Acho que já sentimos isso..

E se falo assim nos pilares de um país, outras áreas há em que os cortes são dramáticos, e em que a subtileza do seu desaparecimento faz desvanecer a verdadeira essência de um povo: a sua alma!

As artes, as letras e a ciência, são três elementos diferenciadores de uma sociedade, porque revelam a sua criatividade e força produtiva. Não vivemos de música, de bailado, de livros, ou de equações de química aplicada, mas estas transformam um país fraco num país rico de nobreza. A sua fragilidade faz de um país, um pobre país e não um país pobre.

É certo que também aqui tem de haver reestruturação, mas reestruturar não significa dizimar nem aniquilar algo que dignifica um povo. Garrotar os apoios, minguando em áreas que de facto não sobrevivem sem eles, é aniquilá-los. Precisamos de livros? Precisamos de orquestras? Precisamos de bailados? Precisamos de ciência? Quando tudo isto se pode comprar e trazer para cá com muito menos custos? Podemos, sim senhor, e esperamos fazê-lo sempre que a qualidade o justifique. Mas assim nunca aprenderíamos a ser livres e criativos. Nunca aprenderíamos a crescer dentro da árvore da beleza, nunca aprenderíamos nem o processo criativo, nem o processo construtivo, nem o processo interpretativo, nem nenhum processo que envolva a participação e utilização de todas as armas que as tais ciências básicas nos proporcionaram.

A revolução deu-nos a liberdade de poder fazer estas escolhas e apostas na cultura e na ciência, os ponteiros decisivos na construção de um país verdadeiramente pensador, inteligente, sonhador e gerador de ideias. Não me interessa se têm um público restrito, ou minoritário, ou se os estudos científicos são menos conclusivos, ou se a criação não é entendida. O que interessa é que é este tipo de pensamento tem de ser incutido, de ser mostrado como funciona, como se constrói e como se educa o apreciar arte e ciência.

Estamos a dar lugar ao facilitismo do pimba, ao proliferar das revistas do coração, a criar vedetas e não artistas, a certificar pelo automático a ciência de um jornal diário, como se de uma verdade absoluta se tratasse. É muito mais fácil e óbvio, mas castrador de qualquer forma de incentivo ao raciocínio, ao pensamento, e ao que é simplesmente belo.

Se deixamos que a mediocridade fácil impere e ocupe espaço, sem sequer dar alternativas que muitas vezes até podem não ser de excelência, mas que se baseiam na criatividade, na inovação e num trabalho coerente e basal, não estaremos a progredir no sentido da diferença, do culto do pensamento na ciência e nas artes.

Apesar das tormentas, aqueles que ficamos continuamos a lutar na senda daquilo que achamos que é um caminho a percorrer nesta crise histórica. Porque bem ou menos bem, vamos conseguindo cumprir objectivos e alcançar etapas de percursos traçados, servindo também de exemplo vivo de que o sucesso não se esgota em nenhuma circunstância. Mesmo sabendo de antemão, que a geração vindoura terá os seus alicerces e o seu crescimento, amputados de uma integração plena e estruturada neste Portugal que lhes serve agora de berço.

A continuação na defesa desta alma e essência lusófona, são primordiais na continuidade duma identidade própria, única, e reconhecível universalmente.

Uma nação sem alma, dilui e esvai-se na paleta uniforme deste mundo global.

Façamos nós a mudança, e preservemos o que é nosso!