domingo, 2 de novembro de 2014

A queda


A notícia era abertura dos telejornais do mundo inteiro. Ninguém sabia como podia aquilo ter acontecido, que estranhas forças poderiam estar por detrás de tão invulgar fenómeno. Neste caso poderíamos até chamar de falta de forças, uma vez que ele não se susteve lá em cima...

Foi tão abrupto como um raio, e quase tão chocante como uma cena de pânico.

Batiam as 12 horas e quinze minutos do dia 19 de Agosto de 2014, quando a vida decorria tão normal como poderia decorrer, naquele mundo igual a tantos outros.
O sol brilhava lá em cima tão intenso, que alguns até lhe rogavam pragas para que se apagasse...
E não é que às 12 horas e dezasseis minutos do dia 19 de Agosto de 2014, as forças deram acção aos pensamentos, e o sol....caiu?

Sim, caiu tão a pique como a pique brilhava no minuto anterior. Como se estivesse pendurado por um fio imaginário e alguém o tivesse cortado. Caiu em silêncio, sem estrondo, sem estoiro ou explosão hollywoodesca, desaparecendo na linha do horizonte e fechando o pano da sua actuação.

O sol tinha caído e mergulhado a terra na negritude total!

Toda a gente foi apanhada de surpresa: os carros chocaram uns com os outros baralhados, o rapaz que descia a escada a correr ficou sem luz e espatifou-se contra a parede dum meio-piso, e alguém não conseguiu ler a teoria do fole enquanto sentado na retrete se aliviava dos restos do dia anterior...

O pânico gerou-se de imediato nas populações, e todos acharam que vinha aí o fim do mundo! O apocalipse traria os quatro cavaleiros ceifando tudo e todos, as pragas desceriam à terra, os ventos soprariam rugindo, e o fogo brotaria da terra engolindo os homens. Mas nada disso aconteceu... Apenas a noite tinha caído para sempre no planisfério.

Os animais calaram-se num silêncio ruidoso e inquietante, mas rapidamente retomaram as suas rotinas de caça ao gato e ao rato, passado o susto inicial...

O dia transformado noite de forma tão pacífica, tinha gerado uma adaptação das luzes e iluminação àquele horário esquisito.

Todos, atónitos, saiam à rua olhando o céu tentando vislumbrar o outrora astro-rei. Mas nada...

Jornalistas, comentadores, astrólogos e até bispos, venderam a sua teoria em troca de uns segundos de fama num qualquer canal televisivo.

Cedo as tentativas de respostas se centraram na comunidade científica. Teorias de translação, da conjugação do ropirininau com o pátátús, de energias inversas, de sustentação do ozono, e até da atração-repulsa dos corpos celestes.

Com o sol caído para lá do horizonte, como fariam para o recuperar? Quando algo cai, alguém se agacha para o apanhar, mas neste caso a situação era bastante mais complexa, porque quem é que pega numa bola em brasa e a coloca outra vez no céu? Como iria a ciência resolver este imbróglio astronáutico?

Pôs-se em marcha a maior operação mundial de todos os tempos, e encontrar uma solução concertada para pôr o seu, no seu sítio. As agências espaciais trabalhavam noite após noite para que uma rápida solução fosse achada. Porque o mundo simplesmente não podia viver à luz permanente do halogénio!

As plantas ficavam raquíticas, os fungos floresciam, a visão ficava escurecida, os níveis de cortisol e melanina baralhavam-se, os painéis solares dormiam em permanência, o galo não cantava, e nem as sunset partys tinham a parte "pela noite dentro".

Enquanto isso, todos lançavam palpites de como repor a luz! Uns com ideias de focos gigantes de holofotes reguláveis, outros a imaginar o desvio de estrelas da galáxia mais próxima, e os russos a maquinarem a tentativa de intersecção de feixes nucleares que criassem um novo sol... Todas as ideias eram válidas, mas pouco exequíveis na prática...

Surpreendentemente, a resposta viria de um menino de 7 anos de idade!
Na sua simplicidade, apenas pensou em voz alta: se o sol caiu lá por trás e agora está lá em baixo, o que temos a fazer é descer a terra para um sítio mais abaixo do sol...

Solução brilhante, afirmaram os cientistas! Mas como iriam deslocar uma massa de triliões de peso, pelo espaço, para que esta adoptasse uma localização diferente daquela em estava desde a sua existência...? A terra não se mexe assim como assim...

Nesse entretanto, todas as cidades viam o seu funcionamento habitual afectado por este fenómeno quase paranormal. As rotinas eram controladas apenas pelos relógios, mas nunca batiam certo com a lógica do ciclo dia-noite, ao mesmo tempo que as reservas de energia se iam consumindo rapidamente, uma vez que tudo o que era luz artificial tinha de ser mantida acesa 24 sobre 24h. Para além disso, a serotonina e os ritmos circadianos alterados, faziam com que a irritabilidade das pessoas fosse em crescendo, notando-se já alguns distúrbios sociais e focos de tensão em bairros urbanos mais desfavorecidos onde a energia falhava amiúde.

Enquanto se remexiam soluções e mais soluções, já se tinham passado 42 dias do fatídico  apagão...

Curiosamente, a mesma criança que alvitrou a solução, também pensou na resposta: então e se saltássemos todos ao mesmo tempo e afundássemos a terra para um plano inferior?

Todos clamaram aleluias que a solução do problema estava à vista, que iriam resolver o assunto em menos de nada, mas ninguém se lembrou de como executar um plano deste tipo.

Como iriam pôr a saltar 7 mil milhões de almas ao mesmo tempo, de maneira a que a força fosse toda feita ao mesmo tempo, e o impacto fosse ao segundo? E a sincronização desta gente toda? Daríamos uma alerta mundial via rádio, tipo "3, 2, 1, agora?.", e o mundo todo dava um salto sincronizado? Corresponderia a uma força de 3,2 joules por pessoa o que com as agulhas bem afinadas daria um impacto total de 21 biliões de joules. Seria suficiente para deslocar a terra para baixo? Os cientistas quando se interrogaram sobre isto, baixaram os ombros e levaram as mãos à cabeça desanimados...

Mas houve um que se levantou de repente, de olhos muito esbugalhados e completamente despenteado como um porco-espinho.
Fitando o horizonte, sorriu misteriosamente e murmurou entre dentes: já sei!

Melhor que dispersar a ordem de saltar em uníssono, a força teria de ser aplicada num determinado ponto que servisse de fulcro, e para isso apenas necessitariam de meia dúzia de indivíduos com índice de massa corporal superior a 51. Isso, e um ponto algures na terra, resolviam a equação...

As notícias desdobraram-se e os noticiários faziam saber que o COSARPLATE (Comité de Salvação do Astro Rei e do Planeta Terra), procurava basicamente gordos e muuuito gordos para o salvamento da Terra. Ou do sol, conforme a perspectiva...

Os americanos foram os primeiros a responder com um eunuco de 32 anos e 522 quilos, os alemães ofereceram duas mamalhudas com 381 quilos, os albaneses lançaram um exemplar de porte baixo e redondo com 403 quilos, a polinésia francesa com um indivíduo quase aparentado de javali com 381 quilos, e os portugueses com o redondo do Carlinhos de Alfama, cujo fígado pesava uns impressionantes 183 quilos!

Foram apresentados nos noticiários como os peso-pesados da estratosfera, posando em tanga e exibindo todas as suas flácidas gorduras pendentes, com um orgulho descontraído.

Depois de muitos cálculos e equações rigorosas, decidiu-se que o epicentro que iria fazer estremecer a terra e abatê-la uns bons metros, estaria no terreno da Teresinha dos rissóis, em pleno centro de Massamá!

Ali se montou a maior tenda de telecomunicações do mundo, em que cientistas, investigadores, engenheiros e cartomantes beirãs, estudavam o ponto exacto em que o grupo dos gordos teria de saltar.
Para esse fim, construíram cinco torres em volta de um determinado ponto marcado com uma cruz amarela, em que os peso-pesados teriam de acertar.

O dia chegou em grande azáfama, com os presidentes das grandes potências mundiais a marcar presença no local, rodeados de um fortíssimo aparato de segurança. Havia quem não gostasse de chamar-lhe "o dia", uma vez que a terra estava imersa num escuro breu desde há quase 223 dias, mas para o caso pouco importa.

Os gordos estavam tão concentrados e focados na sua missão, que nem repararam que tinham rejeitado uns pratos de tripas com favas e uma francesinha de sobremesa. Começaram a subir as torres, ajudados por uma grua que lhes poupava o esforço dos pequenos músculos, tolhidos pela gordura que pendia flácida e luzidia de tudo quanto era recanto e prega do coirato humano. Ao chegarem lá cima, olharam concentrados para o X onde teriam de aterrar, sabendo que da precisão e pontaria dependiam milhões de almas fotosintéticas.

A contagem decrescente foi dada a nível mundial e todos a acompanhavam pela televisão, como se da extracção da lotaria do Natal fosse.

Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, e......atiraram-se no vazio em câmara lenta num movimento artístico que os fez cair todos no mesmo exacto segundo, enquanto a assistência sustinha a respiração de ansiedade...

Puuuuumba!!!! Um estrondo imenso abalou as estruturas mundiais, numa escala de richter enormíssima e de tal maneira, que a Terra foi mesmo impulsionada para baixo e o sol ganhou a sua posição lá no alto! Tal e qual como tinha previsto o rapaz!!!

Assim como desapareceu, assim recuperou o sol o seu lugar lá no cimo. Brilhava de novo tão intenso e quente como se dali nunca tivesse saído.

Foram sete dias de festejos e de folia, que devolveram a esta gente uma alegria e uma jovialidade nunca antes sentida na Terra...

Assim se fechava um período negro da história do planeta.

Assim os homens demonstraram que basta unir-se para que o sol brilhe para todos...

Assim nos unamos para que o bem comum aconteça...

Assim, seja...

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