domingo, 9 de setembro de 2012

O Fiel


 
Acordava cedo porque assim o dia rendia mais e melhor. Mal saltava da cama, fazia a sua higiene habitual, tomava o pequeno almoço já servido, e saía de casa pela porta dos fundos para que ninguém o apanhasse.
Era vê-lo a caminhar pelo passeio com o seu porte altivo e confiante, como se o dono do bairro fosse.

Ziguezagueava pelos transeuntes como uma criança, e todos refilavam com ele quando por vezes lhe apetecia fazer uma linha recta. Salvador ignorava tudo e todos, serpentando apenas pelo prazer das curvas e contracurvas, como se um labirinto imaginário percorresse.

Por todas as casas ajardinadas que contornava, os cães ladravam-lhe com ar feroz e violento.
Ao aproximar-se da mansão da sua Aninhas, passou por um portão entreaberto de onde saiu um quatro patas enorme, pronto a abocanhar-lhe o rabo. Só teve tempo de correr os 100 metros em estilo olímpico para não servir de almoço naquele dia...

Ficou a arfar mas valeu a pena, porque despistou o doberman e o dono que o seguia.

Cansado, reparou que estava à porta da lanchonete da Rosalina. Entrou, e dirigiu-se ao balcão para pedir um pouco de água fresca, mas depressa veio o empregado com ar enfurecido gritando "fora daqui já!", pelo que rapidamente deu à sola.
De facto já tinha ouvido em casa que na lanchonete da Rosalina já não se fiava...

Seguiu o seu rumo em direcção ao jardim municipal, passando pela florista, pelo relojoeiro, e pelo veterinário que simpáticamente lhe acenou como se já o conhecesse.

Nestas deambulações, pensava ao acaso como seria a vida se ele próprio fosse um gato? Saltaria de muro em muro à procura de gata, comeria latinhas gourmet, lamber-se-ia todo-que nojo!-, eriçar-se-ia todo ao ouvir Tony Carreira, e se calhar falaria francês ou tocaria piano. Que vida mais burguesa e inútil!

Perdido em delírios divagatórios, encontrou por acaso Walter, um seu velho amigo da altura em que moravam no mesmo hotel. Seguiram rumo juntos, discutindo o caso tão badalado do momento, em que duas gaivotas embateram no cockpit do concorde. Que animais tão estúpidos, pensaram..

Enquanto se enredavam nos meandros de conversa, cruzaram-se com um bando de emigrantes afegãos, de porte altivo, magros e esguios, com a sua cabeleira farta, mas  estes nem lhes dirigiram palavra. 
-Pfu! Exclamaram. Nem sequer têm onde cair mortos, mas com aquele narizes afilados também não chegam longe!

Despediu-se de Walter, que ia comer um sorvete com uma amiga comum, e perdeu-se nos seus pensamentos loucos percorrendo a  avenida frondosa e em flor.

Nunca pensou em dissertar sobre futilidades, ou só sequer sobre devaneios alheios, como acontece com a teoria do fole, mas o que é certo é que o requinte de pensamento construtivo e delirante de Salvador estava ao rubro.

Achava-se um homem forte e bonito, louro, de olhos claros, que fazia tanto sucesso com as mulheres como um iPad no meio de japoneses. Imaginava-se em banhos de imersão com champanhe eslavo, e um quarteto de violinos tocando o hino da sua terra. Estes sonhos, compulsivamente fizeram com que se decidisse a submeter a uma plástica e retirar aquele ar boçal que possuía. Entrou na clinica de reconstrução decidido a alterar a sua verdadeira condição, mas assim que abriu a porta, foi literalmente enxotado à vassourada pela própria empregada da limpeza.
Acaso não estaria decente? Ou será que era tão feio, tão feio, que até assustou a rapariga?
Hum...se calhar a própria da empregada negra era racista...

Não faz mal! Decidira tirar o resto do dia para se cuidar e cruzou a estrada entrando no   SPA da Lolita.
Aqui sim, foi muito bem recebido! Era só abraços e mais abraços, até que o levaram para uma sala zen e o puseram na banheira de hidro-massagens a relaxar um pouco. Seguiu-se um bom duche e uma massagem com sabonete de lavanda, esfregando-o uma tailandesa de braços robustos, que findou a sessão com um corte de cabelo moderno e arrojado.
Ah! Assim sim, a vida vale a pena!
Despediu-se dos restantes clientes e da própria Lolita, que lhe abriu a porta, e acenando rematou num sorriso aberto:
-não se preocupe, que depois ponho na conta do costume!

O dia tinha sido longo, e Salvador dava graças aos deuses pelas benesses que detinha.

Virou a esquina e entrou na rua de sua casa.
Entrou pela mesma porta dos fundos daquela manhã, e foi-se deitar de rabo a abanar aos pés do seu dono suspirando:
-que bom é ser cão....!

Sem comentários:

Enviar um comentário