quinta-feira, 24 de julho de 2014
Honest-age
Para além do trabalho, a honestidade é outra das virtudes essenciais ao sucesso. Mais uma vez, independentemente das características ou atributos de alguém, este é um bem intrínseco pelo qual devemos lutar para que se interiorize e mantenha nas nossas vidas, transformando-se quase numa bandeira ou num desígnio de luta.
Não sei se a podemos definir como uma qualidade, uma característica, uma aptidão, um mecanismo ou conceito de viver, mas é de certeza um valor nuclear que permite à espécie humana distinguir-se das restantes. Devemos ser honestos connosco, com os outros e entre nós.
A honestidade para com terceiros, coloca-nos num patamar de confiança que permite ao outro saber que o nosso alicerce é aquele. Seja da forma que ele se comportar, sabe que a nossa honestidade é o reflexo da transparência e sinceridade. Por isso a honestidade é tão importante. Porque engloba uma série de outros pressupostos e valores de carácter concreto, tais como a sinceridade, a confiança, a justiça, a franqueza, a coerência, a responsabilidade, a correcta postura filosófica de uma forma de vida.
O simples facto de os outros saberem com aquilo que contam por parte do honesto, poderá parecer uma fraqueza. Fraqueza no sentido de que poderão explorar essa honestidade, e daí tirar vantagem numa qualquer situação. Nada mais errado! Aqui a honestidade poderá ser percepcionada como tal, mas transforma-se numa arma muito poderosa pelo simples facto de ser na sua essência, genuína e imutável. A constância e solidez da honestidade, é como um desfile militar: simples, ordenado, transparente, e sabendo que para lá é o caminho.
Por exemplo, com estas atitudes sabemos que um vendedor da teoria do fole que vende um produto maluco, fornece a confiança suficiente para que os outros saibam que vão adquirir a maluquice naquela dose que estão à espera. Da mesma maneira o merceeiro honesto vende a fruta fresca, o padeiro honesto vende carcaças do dia, e o aluno honesto pode virar-se para o professor e retorquir: "não percebi"...
A honestidade pode ser inata, mas tem também uma componente dinâmica e de treino regular, quase como uma religião. O honesto praticante, algumas vezes tem de frontalmente assumir a sua honestidade perante as situações com que se depara. Se eu encontrar um envelope com dinheiro na rua, terei de frenar o ímpeto de ficar com ele, se receber um segredo de alguém terei de saber guardá-lo, se prometi jogar à bola ao fim da tarde terei de cumprir a minha promessa. Por isso é um exercício diário, umas inconsciente e outras conscientemente, de uma postura de vida recta e com rumo certo.
Mas nem sempre conseguimos isso. Só os santos são cem por cento honestos, e ainda assim veja-se Judas...
Mesmo com o conceito enraizado, não quer dizer que por vezes não fujamos dessa linha de orientação e conduta. O que também não significa que sejamos desonestos. Ter falhas de honestidade não se transforma no fim do mundo, mas não se pode é ser recorrentemente desonesto e viver nessa lógica permanente, como vivem algumas pessoas. Todos tivemos os nossos momentos de desonestidade, mas o importante é que a nossa vida se paute pelo trilho da integridade e reflexão desses momentos de lapsos de atitude. Só assim poderemos aceitar que este é um processo em contínua evolução e consolidação.
Por curioso que pareça, a honestidade também existe nos maus ambientes e nas disputas regulares. Tomemos a referência da guerra, em que alguns pressupostos "honestos" são honestamente cumpridos. Num campo de batalha respeitam-se geralmente as bandeiras brancas, as equipas de saúde, os cessar-fogos, os controlos de pilhagens, certo? É de comum senso que os prisioneiros de guerra sejam tratados com dignidade e respeito, com cumprimento honesto das regras entre vencedores e vencidos. Que contra-senso, a existência de actos de honestidade nestes cenários de Dante, verdade...?
Na lógica inversa e seguindo o reflexo do espelho, podemos ver aqueles que apregoam honestidade através de alguns actos honestos e colaborantes. Solícitos, prestáveis e sedutores, muitos são, na sua essência diária desonestos, apesar de darem uma imagem contrária. Nunca cair nesta malha ao primeiro engodo, embora admita que pode ser difícil. É aquilo a que o pensamento popular identificou já há muito: o chamado lobo vestido com pele de cordeiro...
A honestidade nem sempre é o caminho mais fácil de escolher. Pela simples razão que implica muitas vezes a nossa preterição e abnegação, de algo que à partida poderá ter algum valor. Porque por vezes ser honesto, é abdicar de algo que até poderia ser bom para alguém ou para o próprio, mas o conceito de honestidade tem outro implícito, que é a coerência. Coerência nas escolhas e atitudes que reflectem a nossa honestidade. Apenas como exemplo, designo a coerência em abdicar de um determinado prazer ou luxo, porque os nossos princípios nos afastam do desperdício.
Sempre houve e sempre haverá desonestidade neste mundo, mas temo que a honestidade de hoje não seja a mesma de ontem. A de ontem, fazia-se cumprir por pressupostos e regras comummente aceites como imutáveis, como um código de honra que nunca pode ser desrespeitado. Selar contratos com simples apertos de mão, é de um simbolismo tão grande e tão eloquente, que chegamos a ter consideração pelos mafiosos....
Como se pode ver, uma palavra que engloba tantos pergaminhos e tantos submundos escondidos, confere uma força e um carácter enormes a quem a usa e abusa, a quem a pratica e a quem a cumpre com rigor, daí colhendo os seus frutos e vivendo na plenitude da paz.
Acima de tudo, significa um grande legado transmissor que é o da responsabilidade. Responsabilidade no contágio destes conceitos, de forma a que se espalhem e se tornem universais, de forma a que criem um núcleo social de referência, de forma a que se tornem estruturais e virais. Sobretudo para aqueles que nós próprios criamos de perto.
É este valor seguro que vejo e revejo nos meus pais, e é este valor seguro que quero demonstrar e passar aos meus filhos.
Nos actos e nas omissões.
domingo, 6 de julho de 2014
O trabalho sem C
O trabalho
sempre foi uma pedra de dois gumes: ora dá saúde, ora causa doença!
Dá saúde
porque activa a mente e o corpo, sendo estas as duas partes mais importantes do
eu e do nós como pessoas. Activa a circulação, estimula-nos o cérebro,
ocupa-nos a mente, coloca-nos desafios muitas vezes mais complexos que um cubo
de rubik. Parar é de facto morrer, e ninguém quer antecipar a sua morte
cessando o que quer que seja. Mas tudo isto também é verdade se o trabalho que
estivermos a fazer for minimamente aprazível, interessante, e dentro dos nossos
horizontes de ideal de vida.
Caso
contrário, teremos um trabalho que não nos trará saúde, mas sim doença. Porque
irá gerar stress, ansiedade,
insatisfação, descontentamento e como diria alguém famoso: inconseguimento,
podendo nestes casos concluir que o trabalho não faz bem a ninguém...
Mas também há
os trabalhos que de facto causam doença, directamente relacionada com a sua
actividade: os mineiros com a maldita bronquite crónica, os aviadores com os
tímpanos lixados, os atletas com artroses de velhinhos, os djs com ouvidos
moucos, os salva-vidas com melanomas, não esquecendo os cervejeiros com
cirrose, e os leitores da teoria do fole com surtos psicóticos. Aqui temos uma
acção comprovada da relação causa-efeito de que tanto se fala na moda da
ciência..
Sem dúvida,
considero o trabalho uma das virtudes mais importantes para se alcançar o
sucesso. Podemos ser muito espertos, muito sabedores, muito criativos, muito
talentosos, mas sem o hábito enraizado de trabalhar nunca seremos ninguém, nem
nunca alcançaremos algo que nos dignifique como prova superada por nós mesmos.
Podemos ter e
gostar dos momentos de preguiça e lazer, mas o dia-a-dia daquilo pelo que nos
esforçamos por ser, fazer, e ter, é o componente mais importante para
atingirmos aquilo a que nos propomos. É por esta razão que os preguiçosos ou
aqueles que se penduram no trabalho e dependência dos outros, nunca têm
plenitude nem chamam obviamente oportunidades para si.
Curiosamente,
na época moderna e na abordagem empresarial do trabalho, os tempos de lazer e
de descanso são cada vez mais incentivados e aplicados, promovendo-se uma
lógica de quase diversão no trabalho. As
grandes multinacionais têm ginásios, clubes de actividades, espaços de lazer e
convívio, para que o trabalho que os seus funcionários executam, seja estimulado
pela via do prazer e do bem-estar.
Historicamente,
a maioria dos trabalhos eram de força, de labuta, de esforço físico intenso. O
clássico sangue, suor e lágrimas. Isto porque se tornava penoso o esforço
aplicado na lavoura, na construção, nas limpezas, essas sim objecto de trabalho
e dedicação física intensa. Daí a simbologia que melhor representa o trabalho
ser a foice e o martelo. Longe de analogias partidárias, faz sentido que sejam
estes os instrumentos ilustrativos daquilo que primeiramente conseguimos pelo
trabalho base: a lavoura e a construção.
Os trabalhos
foram evoluindo de tal maneira, ao ponto de quase todos serem considerados de
profissões, catalogando-se as diferentes actividades conforme os diferentes
desempenhos específicos: médicos, cantoneiros, juízes, padeiros, pintores,
professores e até imaginem-se: políticos! Apesar desta arrumação por etiquetas,
nem assim podemos dizer que todas as profissões estão associadas ao trabalho...
Por estranho
que pareça, o antagónico de trabalho dizem ser o ócio. E certo é que os ociosos
dizem ter o trabalho mais intenso do mundo, isto porque lhes custa muito para
usufruir dessa mesma ociosidade. Ou então trabalharam tanto que já não precisam
auferir mais, para se deixarem sentados à sombra daquilo que fizeram,
produziram ou conquistaram.
Trabalhar
também se trata de uma aprendizagem. Faz parte de um processo que passa por ir
aperfeiçoando as técnicas e o modus operandi, tentando ser o mais eficiente
possível. No fundo não apenas tentar ser eficaz, mas tentar cada vez com menos
recursos atingir objectivos mais rápidos e precisos. Claro que neste
envolvimento, também cometemos erros, desvios e más interpretações, mas isso
faz parte da aprendizagem por tentativa-erro, e permite-nos melhorar a
abordagem do trabalho seguinte. Uma obra, uma relação, uma operação, um
objectivo, dependem sempre da forma como nele investimos, e como nos
empenhamos.
Trabalho
implica empenho, dedicação, capacidade de análise, projecção, desenvoltura, num
todo o género de aptidões adquiridas e melhoradas, que nos fazem crescer e ter
sucesso. Não é o sucesso de aquisição ou conquista, mas sim a simples essência
de nos podermos deleitar com o resultado do nosso próprio trabalho. Produzir é
dar um bem ao mundo.
Nada se
adquire sem trabalho ou dedicação ao trabalho. Nada cai do céu, nada se
concretiza sem essa atitude pró-activa.
Não basta ser bom nem acreditar na sorte ou fortuna, para alcançar o que quer
que seja. É preciso trabalho e mais trabalho, para conseguir o que os ingleses
gostam de chamar de achievement...
Não nos
cingindo apenas ao factor laboral, destaco o trabalho como instrumento de
perseguição daquilo que nós traçamos como objectivo. Desde o trabalho em
construir uma relação, o trabalho em cuidar de alguém, o trabalho de regular os
nossos, a nossa própria profissão, a nossa escola, tudo deve implicar esforço e
dedicação estruturada.
Nesta esfera
que nos rodeia, e em que interagimos com tudo e com todos, fica a sensação de
que por vezes deveríamos passar mais tempo a construir coisas. E digo coisas,
exactamente com esse sentido literal da palavra "o que existe ou pode
existir". Ou seja, prevê e incluí algo que podemos vir a ser
responsáveis por criar.
No fundo, tudo
dá trabalho. Pensar, ler, escrever, relacionar-se, manter as relações, criar um
filho, acordar de manhã, estabelecer ligações, fazer e desfazer novelos. Para
alguns há situações que implicam maior ou menor esforço, mas todas têm um
ingrediente secreto, que se transforma na chave do sucesso: o trabalho.
Nada acontece
por acaso, e se por um outro acaso maior, queremos ou desejamos algo ou alguém
como nada na vida, temos mais é que arregaçar as mangas e lutarmos,
moldarmos, empenharmo-nos, no fundo
trabalharmos...
E com isto
tudo se mantêm e evoluem estruturas, ligações, objectivos.
Por isso...mãos à obra!
quarta-feira, 28 de maio de 2014
2999
Através do vidro conseguia abraçar com a vista, aquela imensa cidade que se estendia como um tapete de luzes cintilantes. Enquanto tomava o seu almoço em forma de comprimido amarelo, não conseguia distinguir os humanos dos andróides que circulavam na monovia intergaláctica.
Desde o ano 2231, que a empresa "Humanóides - Inc" tinha melhorado o seu andróide humano XP30. Hoje em dia, passados cem anos, é impossível distinguir um destes de qualquer ser humano. Eram todos construídos com peças de carbono, ligadas com rudimentares articulações de parafusos e porcas, funcionando a partir duma central electrónica localizada ao tronco, que por sua vez comandava todo o processo físico e intelectual. Análogos de tecido humano davam a consistência a estes robôs, e era possível ver andróides gordos, feios, bonitos, magricelas, vesgos, mancos e tóninhas.
Uma empresa estatal controlava os milhões de andróides da galáxia Zurca, e estabelecia quem levava com o sinal de nascença.
A única maneira de distinguir os humanos, era porque estes não tinham o interruptor no topo da nuca como os andróides, e porque os humanos vomitavam, o que a tecnologia ainda não permitia a estes genéricos de pessoas.
O vómito sempre foi uma característica nojenta e degradante da condição humana. Aquele barulho gutural que parece arrancar as vísceras por dentro é inimitável...
Nesta sociedade, as famílias modernas eram sempre constituídas por um misto de humanos e andróides. O pai andróide, a mãe humana os filhos humanos. O pai andróide, a mãe andróide, os filhos humanos. O pai humano, a mãe andróide, os filhos andróides. E por aí fora. A tecnologia ainda não tinha sido desenvolvida para que as mães andróides dessem à luz, mas em compensação, os pirilaus andróides podiam relacionar-se não só com congéneres autómatos, mas também com a carne propriamente dita.
A mistura era grande, todos tinham papéis iguais, todos tinham os mesmos direitos e deveres, e até a legislação foi mudada de modo a regular as possíveis discrepâncias.
Era neste mundo do futuro, inimaginável desde o tempo de Jesus Cristo, que homens e criações do arco-da-velha, conviviam com alma e empenho…
Mas como em todos os mundos pintados de cor-de-rosa, havia sempre alguns nichos de excluídos e marginalizados. Neste caso, tratava-se da tribo minoritária chamada Ilítris. Eram descendentes do primeiro rei zarolho, de um pequeno país situado naquela que denominavam antigamente de península ibérica. Uma península próspera e recheada de gente bem-disposta, que foi acometida por uma doença vulgar e comum naquelas paragens, a que se pensa terem chamado de "Dívida soberana", doença essa não completamente caracterizada por falta de registos, devastados aquando do piquenique de uma empresa de nome "Continentus".
Os Ilítrianos eram normalmente postos de parte nas questões geopolíticas e estratégicas do espaço sideral, porque tinham uma baixa cota de andróides nas funções de jardinagem, sendo relegados para importância de segunda, por não cumprirem as directivas ecológicas e ambientais que obrigam ao rácio de um jardineiro para 53 repolhos e dois gengibres.
Várias vezes a Humanóides-Inc, na pessoa do seu presidente, Ralitus Tiluana, tentara fornecer remessas de andróides a estas paragens tão longínquas de tudo. Mas sempre lhe boicotavam a acção, utilizando simples artimanhas de guerrilha, uma vez que os robôs não estavam preparados para ordens tão sui generis como: "agora tocas com o teu cotovelo esquerdo na tua nádega direita", ou "penteia-te, andróide careca!" ou o fulminante "desliga-te na nuca!". Esta última ordem gerava um tal conflito emocional no andróide, que este entrava em curto-circuito, revirava os olhos e libertava fumo azul pelas orelhas, desintegrando-se em várias peças não reutilizáveis.
Tiluana porém, não desistia facilmente do desafio de conquista e implementação da sua estratégia imperialista de povoar os confins e sem-fins da galáxia. Usou das mais variadas artes para introduzir os andróides na península ibérica: levados por cegonhas, oferecidos em cabazes de fruta, vendidos em fascículos, escondidos nos púcaros das caldas, e até no fundo dos cartuchos da castanha assada. Nenhuma destas brilhantes ideias foi capaz de vingar.
Como última tentativa e golpada de génio, lembrou-se de organizar um chá dançante onde os andróides teriam a oportunidade de mostrar os seus mais variados dotes humanos: a confraternizar, a seduzir, a socializar, a dançar, a contar anedotas, a cantar, entre outras coisas esquisitas como estas habilidades da alma.
Da mesma janela que contemplava a cidade, e com um sorriso maquiavélico, imaginava-se a conquistar o último reduto humano como um triunfador que joga a sua última batalha da guerra final!
O seu receio era apenas um: que os humanos desatassem a gritar ao ouvido dos humanóides a temível ordem "Desliga-te na nuca", pois ele sabia que isso destruiria a sua legião de soldados invasores. Por isso de imediato ordenou que todos os humanóides implicados nesta missão colocassem tampões nos ouvidos, não podendo receber ordens autofágicas.
A sétima feira do último dia do quarto minguante, foi a data escolhida para o mega evento que iria promover o encontro entre humanóides e humanos, sob a escusa guarda-chuva de "I Encontro Universal dos Teseus Ameliados". Ninguém desconfiava de um argumento tão forte, pelo simples facto de ser um argumento inexistente e banal.
O marketing de promoção do evento estava tão determinado, que distribuiu panfletos desde a galáxia vizinha até ao monte do Ti João, passando pela serra dos Machundungos como quem vai para a antiga vila de Quarteira. Os anúncios sucediam-se na rádio, televisão, nas ondas zit, e até nos implantes cocleares, pelo que o sucesso estava quase garantido. De sorriso malvado pintado nos lábios, Tiluana esfregava as mãos de satisfação....
Naquele dia, humanos e humanóides faziam fila para entrar no mega-pavilhão, sendo que a comitiva do humano governador ibérico - Ramiro Ramirez, o descendente de Afonso Henriques - já se encontrava no seu interior.
O baile foi inaugurado pelos anfitriões, ao som de uma mega banda electrónica com músicos oriundos dos planetas mais exóticos e epifânicos, que interpretavam as belas sinfonias da teoria do fole.
A pista dançante movia-se ao som dos graves mais baixos, aerossóis de baunilha eram pulverizados para o ar, líquidos fumegantes passavam em bandejas para refresco dos mais sequiosos, e pequenas bolas de berlim rolavam no sistema suspenso para alimentar as bocas de açúcar. O clima era de euforia, e todos suavam, humanos e humanóides...
A humanidade estava prestes a perder o seu último reduto, incólume das investidas colonizadoras desde os primórdios da miscelânea com os robôt-pessoa. Os humanos da península ibérica, o último bastião da genética pura, parecia que ia cair na armadilha fatal da Humanóides-Inc.
Parecia, mas apenas parecia. Isto porque Ramiro tinha também preparado um contra-golpe de mestre. Acompanhava a ofensiva, com formigas radiotransmissoras, que enviavam reports actualizados de todas as movimentações e ordens de Tiluana.
Eram cinco prá meia-noite e os humanos disfarçadamente se afastavam dos seus genéricos de pessoas, a música insistia numa batida mais lenta e hipnotizadora, com rezas budistas milenares a enebriarem o subconsciente.
Doze badaladas soaram de um cuco gigante, instalado na parede junto à entrada.
Nesse preciso momento, numa acção concertada ao milésimo de segundo, todas as rádios do universo, todas as televisões do universo, todos os implantes de cabelo do universo e todos os megafones e afins do universo, deram a temível ordem de voz em uníssono, em três tons dissonantes:
"Desliguem-se na nuca!"
"Desliguem-se na nuca!"
"Desliguem-se na nuca!"
Os andróides do universo pararam de repente, puxaram a mão atrás e puseram-se em off, caindo-lhes os braços ao longo do corpo e curvando o tronco para a frente sem cair., como se a bateria acabasse. Um monte de peças e parafusos, alguns a deitar fumaça pelo pescoço, um exército de clones parados, espalhados pelas quatro partidas da galáxia!
Os momentos seguintes foram de silêncio, os humanos olharam uns pró outros e reconheceram-se olhos nos olhos, pele na pele, respiração com coração, e gritaram em júbilo:
"Livres da tirania tecnológica, para todo o sempre!"
A humanidade tinha vencido a sua própria invenção....
Fim!
PS: quando conhecerem alguém, confiram-lhe a nuca, sff…
sábado, 10 de maio de 2014
O Positivismo natural
Certa vez numa aula de filosofia, a professora perguntou se alguém queria expor alguma coisa que tivesse aprendido nesse fim de semana. Por acanhamento ou por preguiça ninguém levantou o braço, com excepção do João. Era um dos cools da turma e estava sempre a contar anedotas, pelo que ninguém estranhou o salto para o meio da arena, embora tivessem ficado intrigados com esta súbita vontade em participar da aula.
-A setôra
conhece a perspectiva filosófica do positivismo natural?
A professora,
jovem, de formas opulentas e pele alva, corou até as orelhas flamejantes, só
pelo pensamento imediato de desconhecimento daquilo que João lhe falava.-Hãm...não...não conheço muito a fundo, balbuciou com voz trémula perante uma assistência de sorriso trocista.
O João sorriu, inspirou devagar profundamente, fechou os olhos como se abrisse um
livro mentalmente, e na meia hora seguinte, falou, falou, falou e expôs
uma corrente filosófica assente no amor, na compaixão,
na procura da felicidade presente, no altruísmo, na humildade, na bondade, na
construção, na serenidade, na contemplação, na
alegria de ser, verbalizando um pouco como afinal vivia ele próprio,
num discurso verdadeiramente eloquente e apaixonado.
Nunca
mais me esqueci daquele momento mágico, em que alguém
inventou um desígnio que pode ser seguido por tantos
outros. Até a professora se sentou, embevecida, a beber de tamanha
inspiração inventada.
Garanto
que não procurei no google a palavra Positivismo natural,
mas creio que pode ser uma corrente possível de ser replicada infinitas vezes.
Vivemos demasiado afogados em trabalhos caseiros, que perdemos tempo naquilo
que é essencial: a nossa vida e a vida daqueles a quem queremos
bem, porque se o outro está bem hoje, amanhã
serei eu que estará. O centralismo egoísta
de querer ganhar e vencer tudo, não se coaduna sempre com
disponibilidade para os nossos. O positivista não escolhe nem determina estes
caminhos, mas simplesmente toma outros rumos mais arejados e cheios de boas
ondas.
Podendo
parecer como tal, o positivismo não quer dizer necessariamente apenas a
antítese do negativismo, o reverso da medalha, ou uma hipérbole
do que poderia ser apenas normal. Trata-se de uma forma de estar, em que tudo
aquilo que acontece e se nos depara, é transformado em algo que pode ser
aproveitado, contornado com energia se for lamacento, ou eternizado se for normativo e prazenteiro.
Temos
certo que pessoas com determinados handicaps, têm por
inerência menos oportunidades, mais limitações, e
por isso entram facilmente no negativo. Mas algumas avessam aquilo que pode
parecer um entrave, para renovarem a energia e redobrarem o empenho naquilo que
tocam. Passam a ser positivistas, porque adquirem ganhos que lhes potenciam a
força necessária para se reempenharem noutros
projectos e incursões.
É
desta maneira que o positivismo se destaca mais nas situações
de desgraça ou tragédia. Porque é aí
que ele muitas das vezes tem de actuar. Perante uma destas situações,
em que a zona de conforto se destrói e é invadida por um tsunami devastador, o
positivista reage com uma reorganização posicional e de abordagem
emocional, que naturalmente o reordena para um patamar diferente de bem-estar e
alegria. A perda, a ruína e o impedimento, são
três flagrantes exemplos daquilo que falo como tsunami. Pode-se
concluir que nem tudo o que é desgraça leva um choque à
frente...
E no meio desta amálgama de seres que somos, como adivinhar o perfil do positivista?
Os
sinais exteriores e exteriorizados, são uma boa montra desta corrente.
O
sorriso pode ser interpretado como um bom sinal exterior de positivismo, mas
podemos ser enganados, porque nem sempre um sorriso esconde a atitude proativa.
É uma evidência de boa vontade relativa a, mas não
é suficiente. E muitas vezes pode ser enganador...
O falar
muito, o gesticular muito, dar muitas gargalhadas e ser muito prestável,
também pode encapotar um falso positivista e esconder um doido
desvairado, tendo em conta que o extremo do positivismo também
pode cair no patológico. A mania é o
auge do positivismo, da insanidade e da loucura, que nos pode levar a voar
entre prédios com uma qualquer capa de super-homem, ou a ambicionar
conquistar o mundo com um exército de boa vontade.
O
positivismo também se pode relacionar com o nível
cultural e social onde estamos inseridos. Tenho por certo que níveis
mais elaborados na hierarquia social, possuem mais armas, elementos físicos
e conforto, que lhes permitam eventualmente pensar em ser activos no sentido
positivo. No entanto, também é difícil definir um padrão
de atitudes com as mesmas premissas, porque as relações
humanas são no fundo o factor determinante na construção
das nossas acções positivas e proactivas. E essas são
demasiado complexas para estarem vinculadas a algo material.
Também
é difícil catalogar os positivistas e agrupá-los
em sectores. Os que nascem assim, e para quem a vida é
simplesmente simples de viver: sabemos da D.Teresa da padaria, da Josefa da
peixaria, do Sr.António da venda, que sempre parecem
contentes com tudo, e para quem não existem problemas mas apenas soluções.
Nestes, a genética tem um imprinting natural,
que lhes confere esta aura de desconexão com os imbróglios.
Existem
os positivistas racionais, para quem as atitudes tomadas e dirigidas são
em prol duma acção regeneradora, os positivistas altruístas
que magnanimamente distribuem efeitos concretos na sociedade onde se inserem, e
os positivistas zen, que até com uma folha de alface rejubilam e
analisam a criação do mundo.
Mas no
supremo auge desta corrente estão sem sombra de dúvida
as crianças. São o cúmulo do positivismo e deve ser seguido
o seu exemplo de actuação. A ingenuidade, o
despretensiosismo, o horizonte sem fim, são os limites de regulação
daqueles que nos fazem sorrir com tanta alegria. Eu quase que arriscaria a
dizer que a dada altura, o grau de positivismo é inversamente proporcional ao decorrer
da idade física!
No
fundo, as questões intrínsecas ao positivismo podem estar
relacionadas com algumas variáveis fixas do ambiente, da família,
do trabalho, da idade, da genética,
do empenho, do tipo de abordagem,
do número de teorias do fole que se leu, da cor da camisola da
selecção, ou até do pormenor do chapéu
escolhido para esse dia. Mas mesmo tendo em conta todas estas peças
do quadro, nunca podemos esquecer que o fundamental da corrente positivista está
em cada um de nós, na nossa capacidade de impulsionar
e de alcançar algo tão simples como a felicidade e a paz.
O
positivista não tem o melhor de tudo, apenas faz de
tudo o melhor!
Nós
é que complicamos...
Obrigado
pela lição na escola e um abraço João!
quinta-feira, 27 de março de 2014
Crise...
Tenho pena que se vão embora, tenho pena que não estejam mais aqui, tenho pena de não partilhar mais momentos juntos, mas sinto felicidade em saber que vão para um mundo melhor, para uma vida com futuro.
Dos muito amigos e conhecidos que tenho, posso afirmar que cerca de metade já deixou o rectângulo. Todos com formações profissionais sólidas, em áreas diversas e muito diferentes entre si, mas todos com a mala cheia de ambição, de energia de encontrar, de vontade de fazer mais e melhor, por si e pelas suas famílias. E isso orgulha. Orgulha porque vão marcar a diferença, porque vão fazer aquilo que gostam, porque vão ser felizes. E ser feliz é muito importante. Se eles são felizes lá fora, então eu também sou feliz cá dentro.
Não sei nomear responsáveis, mas arrisco que somos todos nós.
Que país será este, que cria os seus e depois não os incentiva a ficar? Percebo questões financeiras em fechar apoios, em fechar torneiras, em parar queimas desnecessárias, mas essa é uma visão que não pode ser aplicada indiscriminadamente.
Podemos poupar na educação, na saúde, na justiça, na defesa, no desporto, pois são áreas de gestão enormes, que sempre terão as suas estruturas bem vincadas e efectivas. Com menor ou maior produtividade, sempre estarão lá a desempenhar o seu papel, a sua função de base e à espera de dias melhores. Nem sequer me atrevo a pô-las em causa, pois estas são áreas pilares de qualquer sociedade, e a sua preservação é fundamental para termos cidadãos fortes e sólidos. A sua restruturação e actualização é sim uma verdade fundamental e inquestionável, mas daria tema para outra teoria do fole...
O desinvestimento global é que faz a emigração, a falta de tacto político é que faz a emigração. A visão estratégica de curto alcance é que faz a emigração. Porque uma vez fora, os nossos já não voltam.
Fala-se na descoberta de uma diáspora portuguesa de novos contornos lusos. Já não são só os antigos clusters de emigração, onde se aglomeram os restaurantes portugueses, onde os portugueses fazem a apanha do morango, onde se constituem em ranchos folclóricos, onde celebram os rituais profundos das suas aldeias, onde o fado se canta no verdadeiro género de saudade, mas são agora espaços comuns e globais, em que os portugueses transportam a sua portugalidade.
As empresas, instituições e as marcas que se replicam nos quatro cantos do mundo, têm agora um toque importante de lusofonia, porque estamos lá, nas mais diversas áreas que alimentam o engenho produtivo e laboral a todos os níveis de trabalho.
Já somos qualificados o suficiente, para vingarmos na esfera do trabalho exigente e competitivo. Aprendemos e apreendemos aqui, para executar lá fora. Muito sacrifício e mérito do próprio, mas também de toda a comunidade que adubou e regou estas sementes de saber.
Coloca-se também outra questão que hipoteca as gerações seguintes: quem irá formar com qualidade os novos formandos? Quem não conseguiu emigrar porque se calhar tinha menos skills e empreendedorismo? Teremos uma geração seguinte de nível médio e talvez até medíocre nalgumas áreas? Acho que já sentimos isso..
E se falo assim nos pilares de um país, outras áreas há em que os cortes são dramáticos, e em que a subtileza do seu desaparecimento faz desvanecer a verdadeira essência de um povo: a sua alma!
As artes, as letras e a ciência, são três elementos diferenciadores de uma sociedade, porque revelam a sua criatividade e força produtiva. Não vivemos de música, de bailado, de livros, ou de equações de química aplicada, mas estas transformam um país fraco num país rico de nobreza. A sua fragilidade faz de um país, um pobre país e não um país pobre.
É certo que também aqui tem de haver reestruturação, mas reestruturar não significa dizimar nem aniquilar algo que dignifica um povo. Garrotar os apoios, minguando em áreas que de facto não sobrevivem sem eles, é aniquilá-los. Precisamos de livros? Precisamos de orquestras? Precisamos de bailados? Precisamos de ciência? Quando tudo isto se pode comprar e trazer para cá com muito menos custos? Podemos, sim senhor, e esperamos fazê-lo sempre que a qualidade o justifique. Mas assim nunca aprenderíamos a ser livres e criativos. Nunca aprenderíamos a crescer dentro da árvore da beleza, nunca aprenderíamos nem o processo criativo, nem o processo construtivo, nem o processo interpretativo, nem nenhum processo que envolva a participação e utilização de todas as armas que as tais ciências básicas nos proporcionaram.
A revolução deu-nos a liberdade de poder fazer estas escolhas e apostas na cultura e na ciência, os ponteiros decisivos na construção de um país verdadeiramente pensador, inteligente, sonhador e gerador de ideias. Não me interessa se têm um público restrito, ou minoritário, ou se os estudos científicos são menos conclusivos, ou se a criação não é entendida. O que interessa é que é este tipo de pensamento tem de ser incutido, de ser mostrado como funciona, como se constrói e como se educa o apreciar arte e ciência.
Estamos a dar lugar ao facilitismo do pimba, ao proliferar das revistas do coração, a criar vedetas e não artistas, a certificar pelo automático a ciência de um jornal diário, como se de uma verdade absoluta se tratasse. É muito mais fácil e óbvio, mas castrador de qualquer forma de incentivo ao raciocínio, ao pensamento, e ao que é simplesmente belo.
Se deixamos que a mediocridade fácil impere e ocupe espaço, sem sequer dar alternativas que muitas vezes até podem não ser de excelência, mas que se baseiam na criatividade, na inovação e num trabalho coerente e basal, não estaremos a progredir no sentido da diferença, do culto do pensamento na ciência e nas artes.
Apesar das tormentas, aqueles que ficamos continuamos a lutar na senda daquilo que achamos que é um caminho a percorrer nesta crise histórica. Porque bem ou menos bem, vamos conseguindo cumprir objectivos e alcançar etapas de percursos traçados, servindo também de exemplo vivo de que o sucesso não se esgota em nenhuma circunstância. Mesmo sabendo de antemão, que a geração vindoura terá os seus alicerces e o seu crescimento, amputados de uma integração plena e estruturada neste Portugal que lhes serve agora de berço.
A continuação na defesa desta alma e essência lusófona, são primordiais na continuidade duma identidade própria, única, e reconhecível universalmente.
Uma nação sem alma, dilui e esvai-se na paleta uniforme deste mundo global.
Façamos nós a mudança, e preservemos o que é nosso!
segunda-feira, 20 de janeiro de 2014
O homem invisível
Dêmos graças a Deus por aquilo que temos! Pode ser o meu Deus, o teu Deus, ou até o Deus do agnóstico. Mas vivamos agradecidos a cada dia que passa, por tudo aquilo de bom que acontece nas nossas vidas. É, e precisa ser obrigatório ter este pensamento minuto trás minuto!
Naquele dia, acordei como o tempo que diziam estar carregado. Carregado de sonhos desfeitos, de vontades por alcançar, de tantos sucessos em carteira para equilibrar os pratos da balança. Leio sempre o jornal da manhã e a teoria do fole, para entreter os entretantos da fatia que crepita na torradeira. Diáriamente lanço um pão na fogueira da inquisição, mas ele não se importa, porque a seguir sabe que vai ser barrado pela manteiga fofa e deliciosa das ilhas. Faço o café que borbulha de contente quando ferve, e aqueço o leite que se juntará ao fundo da caneca amarela.
Afinal já começo a contrariar o tempo que apregoavam.
Afinal já começo a contrariar o tempo que apregoavam.
Por isso tomo um duche, não sem antes dobrar vincando 3 vezes a roupa que vou vestir, e de escovar os dentes de cima pelo menos sete vezes para cada lado. Manias, o que é que querem!?
Fiquei sem emprego de há uma semana para cá, e desde então parece que o tempo sobra não sei para quê.
-Lamento muito mas vamos ter que dispensar a sua colaboração, porque a empresa vai fechar a sua secção.
Que lata! Eu que vesti a camisola daquele serviço durante cinco anos! O que é certo é que ele continua a andar de Mercedes e eu quase sem dinheiro prá gasolina!
-Lamento muito mas vamos ter que dispensar a sua colaboração, porque a empresa vai fechar a sua secção.
Que lata! Eu que vesti a camisola daquele serviço durante cinco anos! O que é certo é que ele continua a andar de Mercedes e eu quase sem dinheiro prá gasolina!
Saí de casa e descia para a garagem, quando um qualquer vizinho marreta me fechou a porta na cara como se eu não existisse. Ser desempregado não é ser invisível!
O carro demora a aquecer, mas depois disso até que desliza bem. Aquele caminho conhecia-o bem, como se fizesse parte da minha rede de tubos de auto-transporte, mas hoje o trânsito estava caótico.
Uma passadeira obrigou-me a parar bruscamente para não atropelar um senhor que a atravessou lentamente a olhar para mim. Estacionei imediatamente a seguir, e contrariando a lentidão com que o vi a atravessar, aproximou-se da minha janela batendo levemente no vidro.
-Pronto! Lá vou ter de ouvir mais um sermão de alguém que acha que é porta-voz da humanidade e da cidadania. Que não devo andar tão depressa. Que devo respeitar os sinais de trânsito. Que devo abrandar para os peões, etc, etc, etc.!
-Pronto! Lá vou ter de ouvir mais um sermão de alguém que acha que é porta-voz da humanidade e da cidadania. Que não devo andar tão depressa. Que devo respeitar os sinais de trânsito. Que devo abrandar para os peões, etc, etc, etc.!
O homem deveria ter os seus 80 anos, bem vestido com um fato e gravata sóbrios, perfume equilibrado e jornal gratuito na mão. Tinha ar de quem tinha trabalhado uma vida inteira, de quem se tinha dedicado a fundo a um trabalho como eu gostaria de ter tido na minha empresa. As suas rugas denunciavam momentos de agruras e alguma tristeza, mas ao mesmo tempo uma serenidade e paz de espírito naquela provável vivência da reforma.
Baixei o vidro automático e ensaiei a minha melhor expressão de empatia.
-Bom dia menina. Queria-lhe só agradecer a gentileza em ter parado na passadeira. Não é algo vulgar nos tempos que correm...
Esbocei apenas um sorriso de agradecimento e fiquei desarmada neste meu mau pensamento.
-Bom dia menina. Queria-lhe só agradecer a gentileza em ter parado na passadeira. Não é algo vulgar nos tempos que correm...
Esbocei apenas um sorriso de agradecimento e fiquei desarmada neste meu mau pensamento.
Não podemos julgar ninguém nem nenhuma atitude, sem que ela aconteça. Estaremos logo a ripostar na defesa de um ataque inexistente. Eu ali, com idade para ser sua neta e ele a dar-me uma lição de humildade e reforço de acções positivas...
Nisto começou a tremer e a não fixar-me o olhar, enquanto suas mãos suavam e se agarravam uma à outra nervosamente.
-Queria...queria pedir-lhe um favor muito grande menina....
Fixei um dos botões do casaco de fazenda, de corte impecável, evitando cruzar o olhar.
-Sim...sim, diga se faz favor..
-Eu...eu....
As palavras embrulharam-se numa bola descomunal na garganta, e de boca aberta parecia que iria gritar, mas fechou-a cansado num sussurro quase imperceptível:
-Podia-me dar uma esmola....?, disse quase em surdina.
-Queria...queria pedir-lhe um favor muito grande menina....
Fixei um dos botões do casaco de fazenda, de corte impecável, evitando cruzar o olhar.
-Sim...sim, diga se faz favor..
-Eu...eu....
As palavras embrulharam-se numa bola descomunal na garganta, e de boca aberta parecia que iria gritar, mas fechou-a cansado num sussurro quase imperceptível:
-Podia-me dar uma esmola....?, disse quase em surdina.
Senti uma tontura enorme que quase me fazia cair, um aperto tão sufocante que até me fez doer a alma com a pressão das toneladas de quilos daquelas palavras.
Aquele homem que imaginava eu tivesse passado a sua vida em festas glamourosas, altivamente respeitado, talvez até um diplomata ou militar de carreira, carregava um peso nos ombros que lhe tolhia a voz num bafo fraco.
Virei-me de soslaio, mas desviou o olhar trémulo para o chão.
-Desculpe...não percebi...-insisti eu.
Voltou a inspirar como que a ganhar fôlego para enfrentar um pelotão de fuzilamento, e repetiu aquilo em que eu não queria acreditar:
-Podia-me dar uma esmola por favor...?
Os seus olhos brilharam de lágrimas que não transbordaram, contraiu os maxilares com tensão, e como um desabafo rouco, profundo e visceral, disse com raiva contida entre-dentes:
-Tenho fome...
-Desculpe...não percebi...-insisti eu.
Voltou a inspirar como que a ganhar fôlego para enfrentar um pelotão de fuzilamento, e repetiu aquilo em que eu não queria acreditar:
-Podia-me dar uma esmola por favor...?
Os seus olhos brilharam de lágrimas que não transbordaram, contraiu os maxilares com tensão, e como um desabafo rouco, profundo e visceral, disse com raiva contida entre-dentes:
-Tenho fome...
Naquele momento senti impotência, revolta, injustiça, repugna pelos líderes que governam o meu país e não o país das pessoas. O país das pessoas que trabalharam, que lutaram, que construíram uma vida de retalhos, agora reduzida a farrapos e sem dignidade na memória dos outros. Somos nós que fechamos os olhos a estes dramas individuais, esta decadência humana, só porque já não produz, porque já só tem custos, porque já só apenas é um número a caminhar para o zero.
Lavada em lágrimas apetecia-me abraçar aquele homem e dizer-lhe que não estava só no mundo, que as dificuldades da vida superam-se, que teria uma família, que o passado brilhante tem um futuro, e que eu iria lutar por pessoas como ele.
Peguei na carteira desorientada e dei-lhe tudo o que tinha.
Agarrou-me nas mãos e soluçou, evitando-me:
-Obrigado menina, muito obrigado, que Deus a abençoe...
Virou-se, e foi.
Agarrou-me nas mãos e soluçou, evitando-me:
-Obrigado menina, muito obrigado, que Deus a abençoe...
Virou-se, e foi.
Tinha envelhecido mais vinte anos, e fugia curvado da vergonha como se a própria sombra o fosse caçar. Vi como no seu rosto corriam lágrimas de humilhação e frustração, assentes numa dignidade tão quebrada como as suas costas.
Para onde iria? Qual seria o seu refúgio? Como se vivem estes dramas escondidos do mundo?
Os transeuntes passavam indiferentes a toda está miséria, a este insucesso da nossa sociedade. Ninguém reparou que um senhor chorava. Ninguém perguntou ao senhor porque chorava. Ninguém ajudou o senhor que chorava, porque nem sequer o viam.
Ninguém o via, porque todos estavam ocupados a verem-se a si mesmos, a não perder tempo com algo que as pudesse atrasar a elas próprias. Como se tivessem de chegar a algum sítio imaginário, não importando se algo ou alguém ficasse abandonado. Sabendo que esse alguém poderiam ser eles próprios no futuro, e que deixando-os para trás também estariam a deixar um bocado de si. Um bocado daquela dignidade e compaixão que distingue os homens das lesmas.
Atrás de mim, um qualquer palerma esbracejava e apitava para que seguisse em frente...
Aqueles minutos tinham posto o meu contador da vida a zeros. Sou uma pessoa diferente agora. Não sei se melhor, se pior, se reactiva, mas seguramente atenta e sensível ao mundo que muitas vezes nos é invisível...
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
O meu banco de rua
Sentei-me ali como me sentava desde que me lembro. Naquela rua, o banco estava no passeio e virado para o passeio. Os transeuntes cruzavam-se como formigas atarefadas que se desviam umas das outras, ziguezagueando pela calçada rumo ao virar da esquina, onde quem sabe eram devorados por algum extraterrestre verde.
Consigo ouvi-los a mastigar e a rirem-se baixinho.
Consigo ouvi-los a mastigar e a rirem-se baixinho.
Em criança sentava-me com o meu avô, a comer gelados e a desfrutar da brisa fresca da primavera. Os meus pés ficavam dependurados a balancear no ar e divertia-me a ouvir os seus ossos a ranger como dobradiças de castelo.
Contava-me histórias da sua infância, das suas brincadeiras na avenida do mar, das primeiras fotografias que tirou ao pôr-do-sol, da fome que passou na guerra, e até de algum ou outro namoro que lhe tinha levado um troço de coração.
Todas as tardes no mesmo banco de rua.
Todas as tardes no mesmo banco de rua.
Dos bancos de rua vêem-se vidas ambulantes, ombros carregados, peitos altivos, rostos decididos e mesmo meliantes descontraídos sem arrelias.
Quando cheguei com os pés ao chão, já era eu que levava o meu avô a comer o gelado. O banco de rua era o mesmo, e estava tão gasto como as pedras da calçada. Das três lojas que víamos em frente, apenas uma tinha mudado de ramo. Uma mercearia, uma loja de licores e um talho que entretanto virou pastelaria.
As lojas não haviam nunca de fechar. Altera-nos o sentido de orientação. Imaginem as coordenadas de sempre "na rua do restaurante caravela", ou "viras ali na esquina do picheleiro e do lado direito está a farmácia Honorato". As coisas têm de estar onde sempre estiveram, para que não nos percamos. Já chegam as lojas de chineses para que se nos desorientem os pontos cardeais.
Nessa altura já o meu avô não rangia, e pensava eu que lhe tinham metido óleo nas juntas. Convenci-me dos extraterrestres...
Contava-lhe histórias das minhas brincadeiras de jovem adulto, da guerra que estava pra vir e pra onde eu iria, dos muitos amores que me roubavam os mesmos troços de coração iguais aos dele.
Dizia-me que daquele banco de rua se via o mundo, e que se abrisse bem os olhos poderia ser o que quisesse.
Engraçado que toda a gente me ensinou antes a fechar os olhos e a imaginar que poderia ser o quisesse...
Engraçado que toda a gente me ensinou antes a fechar os olhos e a imaginar que poderia ser o quisesse...
Dali via a vida do pobre, do rico, do orgulhoso, do capaz, do honesto, do cumpridor, do bom pai de família, do avarento, do violento, do adepto do nada e do tudo.
Se olhares para o chão, sabes que 50 homens construíram aquele passeio, se sentires a madeira sabes que marceneiros fizeram o banco, se olhares para a frente podes rever-te nas montras das lojas, se olhares para cima vês que a natureza te protege.
Enquanto esvoaça em remoinho um panfleto da teoria do fole, aprecio o passeio de bicicleta da mãe e do filho, o vagar do reformado que passeia, a pressa do senhor dos correios, a leveza da jovem que facilmente me levaria um troço de coração.
Sabíamos que os bancos de rua são diferentes dos bancos de jardim. Os de jardim são melancólicos, vazios, tristes e sozinhos. Os de rua são vividos, fortes, com muitos segredos guardados de horas e horas de diferentes traseiros neles sentados. Rabos gordos, magros, malfeitos revezavam-se com outros delicados, redondos, sensuais. Se nos pusermos no lugar do banco, talvez imaginemos o que muitas vezes sofre e o que muitas vezes se deleita com estes afagos nadegueiros..quem sabe até não ganhem vida...afinal de contas não sabemos se o marceneiro se chamaria Gepeto...
Houve alturas em que não frequentava o banco de rua. Já era adulto e fazia coisas de adulto, pelo que não tinha tempo nem vagar de me sentar no banco.
Curioso que os adultos não têm estatuto próprio, têm só personalidade. Cada um é como é, e desenvolve o seu perfil de conhecido. As crianças e os velhos por seu turno, têm um carisma globalizado. Direitos adquiridos, princípios universais e regentes. Ninguém os chama pelo nome, todos os tratam por igual.
Uma senhora sentou-se a meu lado, com o seu cãozinho de colo. Naquele instante não era de colo mas sim de rua, e tinha acabado de fazer um cocó mesmo aos meus pés. Fingi que não tinha dado por nada, mas olhava em frente pelo canto do olho, como quem vigia um animal selvagem a ver se este não se atira a mim. A senhora desculpou-se e tirou de um saco plástico que albergou o dejecto. Levantou-se e transformou o cão novamente de colo, enquanto na outra mão segurava com dois dedos o excremento envolto no seu saco mortuário. Até os cocós morrem com mais dignidade que as pessoas...
Fiquei a vê-los afastar, e consegui vislumbrar o ar de gozo do cãozito a olhar pra mim, com a pose altiva de quem tem posse do seu dono.
No segundo seguinte, sentou-se um homem na mesma ponta do banco de rua, e começou a falar, a falar, a falar, numa verborreia tão grande, que nem percebi com quem gesticulava. Não havia ninguém à nossa volta a escutar, mas consegui visualizar o seu amigo imaginário em frente deste homem, divertindo-me a conjecturar se seria um barão decadente ou um fantasma de Minotauro. Levantei-me antes que me desse uma cornada!
Volta e meia tenho flashes de memória. Lembranças de momentos.
Certa vez sentei-me no banco de rua, à noite. Voltava de uma festa de aniversário, e aquele banco foi providencial, na medida em que amparou as minhas pernas já um pouco cambaleantes. Tinha razão um amigo meu: "O vinho fo@&-me todo!"
Desta vez fui eu que falei com ele. Desabafei, chorei, ri, contei-lhe as amarguras da guerra que vivi, confessei-lhe que sou feliz. Abracei-o.
Ouviu em silêncio e nada disse. Foi neste momento que o polícia interrompeu a nossa relação e perguntou se precisava de alguma coisa. Levantei-me o menos oscilante possível, agradeci a ajuda e despedi-me do meu banco confidente, seguindo o instinto até casa, que nem pombo-correio no regresso.
Desta vez fui eu que falei com ele. Desabafei, chorei, ri, contei-lhe as amarguras da guerra que vivi, confessei-lhe que sou feliz. Abracei-o.
Ouviu em silêncio e nada disse. Foi neste momento que o polícia interrompeu a nossa relação e perguntou se precisava de alguma coisa. Levantei-me o menos oscilante possível, agradeci a ajuda e despedi-me do meu banco confidente, seguindo o instinto até casa, que nem pombo-correio no regresso.
As folhas caíram e voltaram a nascer setenta vezes, a calçada foi mudada três vezes, o tapete de asfalto foi trocado seis vezes, as lâmpadas de rua foram enroscadas e desenroscadas centenas de vezes, e milhares de vezes choveu na rua do banco de rua. Só uma vez tinha sido pintado, e só uma vez lhe tinham trocado a pata.
Aguenta-te!
Aguenta-te!
Naquele dia estávamos os dois sentados no banco de rua. Eu já de bengala e tu sem chegares ainda com os pés ao chão, balanceavas as pernas enquanto comias o gelado.
Contavas-me as tuas brincadeiras na escola, os trabalhos de casa que fazias, o que irias ser quando fosses grande, os troços de coração que ganhavas às namoradas.
Daquele banco de rua podíamos ver tudo, alcançar tudo, conseguir aquilo que quiséssemos, quer de olhos fechados ou abertos!
Aquele banco de rua seria para sempre o nosso mundo. Um mundo feliz!
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