quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Idas e Voltas


Chegam, partem, abraçam-se, choram, alguns felizes de contente, alguns tristes da separação, alguns alegres do reencontro, outros em trabalho. Assim são as vidas de aeroporto.


Na modernidade alguns chamam-lhes "hub", e são uma plataforma giratória de coisas tão diferentes como culturas, emoções, expectativas, doenças, mosquitos, e bagagens de ilusão. São também uma porta de entrada e saída de dois mundos que podem ser tão díspares quanto a distância impõe. Um dia na cidade, outro dia na aldeia recôndita. Um dia na neve, outro dia no fim do mundo. Um escape de uma muralha cercada, uma aterragem em pé firme. Uma desilusão de amor, uma nostalgia do que já foi.

É por isto que viver numa ilha rodeado pelo mar e muitos Adamastores em guarda, faz com que o desejado ensejo de se meter num qualquer avião, nos agarre para outras viagens.

Assim é desde criança.

Aquele pedaço de asfalto do aeroporto, muitas vezes transportou o meu imaginário verniano, embasbacado que ficava a olhar os aviões a levantar e a aterrar na pista de Santa Catarina.

Cedo se criava a rotina de ao domingo, acelerar nas poucas rectas da ilha paralelas à pista, ou de se ir ver levantar e aterrar os Boeings naquele minúsculo bocado de alcatrão que ainda ocupa o mar.

Enquanto os carros se acumulavam na berma da estrada de Santa Catarina a apreciar o movimento aeronáutico, grudados à rede de protecção, o melhor spot era sem dúvida o restaurante "A varanda", de onde para além da vista privilegiada, podíamos saborear uns ultra-mega-deliciosos pregos em bolo do caco com uma fresca brisa maracujá!

Na maioria das vezes, os pilotos experientes eram muito certeiros na pontaria de alinhar o avião, e fazê-lo aterrar como um brinquedo naquela pista que muito curta e estreita deveria parecer aos seus olhos.

Uma vez houve, em que essa perícia não foi suficiente para enganar a tragédia traçada...

Lembro-me bem de quando caiu o TAP 425 na pista. Numa das sucessivas tentativas de aterragem, com uma tripulação já exausta das horas de voo, a aeronave fez aquaplaning, saindo pela cabeceira da pista e despenhando-se no mar ceifando 125 almas. Nesse dia a Dona Isilda fazia anos, e a interrupção da emissão da RTP-Madeira a convocar todo o pessoal do hospital e apelar aos dadores de sangue, gelou aquela festa. Arrepiantes dezenas de sirenes e o repicar de todos os sinos das igrejas do Funchal, marcaram decididamente a minha memória. O inferno instalado em momentos angustiantes e dramáticos, pulsavam à medida que se iam sabendo dos amigos "que vinham no avião"... Tantos foram, que na ilha não havia caixões que acomodassem tamanha multidão, pelo que os féretros tiveram de vir da capital para fazer face a tanta escassez imprevista.

Depois disto tudo, o medo de viajar gerou-se, mas para vencer as amarras de uma ilha não há muitas alternativas..

Ainda que com estes desaires, andar de avião era um acontecimento nessa altura! Fazíamo-lo pelo menos uma vez por ano, nas férias grandes, quando embarcávamos rumo a Vigo. O Funchal-Porto encurtava-se em duas horas, e tínhamos impreterivelmente Tio Isauro e o primo Rui à nossa espera, para outro trilho clássico até Espanha.

A roupa desse dia era sempre a mais bem escolhida, e os ténis de estreia le coq sportif eram orgulhosamente exibidos, ainda imaculados da vitrina do expositor.

Lembro-me que tudo era moderno, que as hospedeiras eram todas bonitas, que aquela comida de bordo servida em caixinhas se comia com talheres de metal, e que aquele voo nos levaria de novo a um mundo recorrente e familiar. Até as idas ao toilette me proporcionavam o secreto prazer de roubar sabonetes e toalhetes perfumados da TAP!

Assim eram os meus aeroportos, os meus portos de ida e volta, de fuga e escape da rotina de um ilhéu..

Mais tarde, tornou-se uma necessidade. A entrada na faculdade e os estudos em Lisboa fizeram com que já fosse encarado como um qualquer vulgar meio de transporte.

Natal e Páscoa eram verdadeiramente santos, e mais uma que outra vez no ano, lá apanhávamos o voo TP qualquer coisa para matar saudades. Neste processo de regressos, havia sempre os reencontros das nossas raízes, do nosso mundo, do nosso conforto, que nos recebia sempre de braços abertos e sempre incondicional....O amor de casa tem este poder de ser incondicional e eterno, e é bom saber que existe assim.

Andar de avião transforma-se numa espécie de jaula de personagens de um qualquer teatro, que vão mudando de cenário conforme as agendas próprias. Como se a mudança física nos tirasse dum frasco e nos metesse noutro diferente. Hoje estou nesta vida, mas amanhã estou noutra. Amanhã não volto a estar aqui onde fui feliz. A felicidade espera-me lá..

Por isso o fascínio pelos aeroportos! Nesta fase em que as viagens são cada vez mais em busca de um paraíso anunciado que um éden por nos procurado, uma ida ao aeroporto é quase libertadora. O simples facto de levar alguém ao check-in, transporta-me de imediato a uma plêiade tão grande de mundos e submundos, que me refresco sabendo que não estamos sós neste planeta. O homem de negócios que lê a teoria do fole, o jovem surfista que vai à procura de ondas, a Madame que vai fazer compras a Paris, o árabe que vai passar o Ramadão à sua terra mãe, o japonês que colecciona fotografias que nunca as irá ver.

Ponho-me a pensar como será a vida de cada um deles, sonhando que posso ser um pouco de cada um, e um desejo secreto que levem os meus sonhos naquelas malas por esse mundo fora, anunciando que alguém está ali disposto a escutar e a partilhar o seu mundo com o deles.

Sentado nas partidas a observar a azáfama que se desenrola, é como assistir a um sem fim de mini-novelas mundiais. Pretos, brancos, amarelos e matrizes dispersas entre estes todos, passam à minha frente como uma passerelle do planeta. E eu invisível, criando histórias que se encaixem neste e naquele.

Nos aeroportos caímos na consciência real do ínfimo grão de areia que somos, que o mundo é próximo ao infinito, e o nosso ponto de partida pode ser sempre o ponto de chegada de alguém.

Para onde vai, de onde vem, que mundos se descobrem? Não interessa.

Arrisque, embarque, e desfrute da viagem que o levará a um qualquer mundo novo...




domingo, 7 de abril de 2013

O "Arranca-Sorrisos"


Pessoas assim ficam na memória e no coração. Por isso nunca serão nome de rua, nem de praça, nem sequer constarão nos livros. O coração apaga rápido aquilo que mais ama e só se imortaliza na lápide. Uma frase, um poema, um pensamento, um acto, resumem uma vida cheia de mudos sorrisos.

Era assim que o conheciam e era assim que se sabia a fazer o melhor.

Nascera naquela aldeia perdida em nenhures, rodeada de fronteiras naturais que isolam as pessoas e atrasam tudo o que se manda e tudo o que se recebe. Sem saber ler nem escrever, sabia mais que os outros que o sabiam, e por este dom era reconhecido, mesmo além daquelas linhas mudas.

Irradiava uma luz e alegria tão serenas, que naturalmente contagiava. Tinha sempre uma palavra, um apreço e um toque de alma aos outros, devolvido em francos e abertos sorrisos.
Por isto lhe chamavam o "Arranca-Sorrisos"!

Ninguém estava nunca triste, porque os sorrisos eram espontaneamente despoletados e contagiavam-se uns aos outros.
Uma flor oferecida a um coração partido, sacava um sorriso simples. Uma vénia com a cabeça até ao chão dava direito a um sorriso surpreso. E um nariz vermelho com cabeleira roxa, resultava em sorriso-gargalhada na certa.

Vivia assim o seu dia-a-dia pela aldeia, arrancando sorrisos aqui e acolá, tornando a aldeia na mais feliz do mundo.

Como se isto de felicidade fosse coisa eterna, porque ninguém é feliz sempre. Se a felicidade fosse residente, como lhe saberíamos dar valor?
O meu primo José contou-me uma vez, que já tinha sido feliz na França, onde conhecera uma corista de alto gabarito que lhe trouxe tanta felicidade quanto a conta bancária que a ladra lhe mangou. Por isso anda agora a pedir esmola pela aldeia, vendendo teorias do fole a quem compra, confortando-se com "Arranca-Sorrisos" aqui e acolá, quando ele aparece.

Uma vez houve, que até uma reportagem fizeram do "Arranca-Sorrisos"! Um homem alto, bem-parecido, chapéu sempre pronto a levantar-se num cumprimento, sorria ele próprio sempre.

-bom dia menina Teresa! Já vi que os seus olhos hoje reluzem como estrelas cintilantes!
E logo sacava o primeiro sorriso incontido da manhã.

-boa tarde Dona Júlia! Dizia, sacando uma rosa do casaco para a presentear e um rasgado sorriso acatar.

A sua jorna deixava um rasto brilhante de boa disposição e contentamento tal, que nunca se via ninguém ao fim do dia sem um sorriso nos lábios.

Num desses dias de sempre, e no acaso de virar uma qualquer esquina, encontrou uma menina que chorava desalmadamente - se é que as almas se conseguem alguma vez desalmar..- sendo que prontamente sacou de um peluche e o estendeu no seu colo fazendo uma careta alegre.

Mas para surpresa do "Arranca-Sorrisos", a menina continuou a chorar e nada a fazia parar. Assustado, correu e embateu num rapaz que suspirava e choramingava por uma bola de gelado que se tinha despenhado do seu cone em plena avenida central.
Ainda fez uma pirueta a ver se arrancava um sorriso, mas os olhos do rapaz fitavam a bola de baunilha que se esparramava lentamente.

Olhou mais à frente e reparou que um homem de gabardina escura, ar soturno e fácies cinzento, chorava em silêncio. Caminhava pesaroso, e ao mesmo tempo que se cruzava com outros transeuntes, fazia com que estes chorassem em bica deixando um rasto de tristeza e choro convulsivo.
Ali estava o trilho de infelicidade que tinha vindo da outra aldeia da província. Conheciam-no como o "Arranca-Choro", e não havia quem conseguisse estancar tamanha fatalidade.

Nunca tinha visto ninguém assim desde a última enchente de lágrimas que inundou o vale dos jasmins!
Aproximou-se lentamente para falar com essa estranha personagem, mas com o cuidado de nunca aos olhos lhe olhar. Se é que é possível falar com alguém sem aos olhos a olhar...

Enquanto deslizava pé ante pé, resvalou numa casca de banana, os pés ergueram-se mais que a cabeça, e catrapús de glúteos no chão. O cenário foi tão ridículo, que "Arranca-Choros" olhou e até um ligeiro esgar de sorriso esboçou, o que muito surpreendeu "Arranca-Sorrisos".

Levantou-se num ápice, e desta feita saltou de propósito para cima da casca de banana dando mais três voltaretas até se estatelar no chão.
"Arranca-Choros" desbloqueou um grande sorriso, e a sua mímica era de descontracção e relaxamento.

Percebendo o clique da sua antítese, começou a fazer tanta palhaçada, tanta palhaçada, que ao cabo de uns quinze minutos estavam os dois a rebolar de rir às gargalhadas.

Aquele coração de pedra tinha sido conquistado pela alegria dos sorrisos. Aquele sorumbático homem tinha ganho asas no deleite do riso!

Abraçaram-se os dois de uma maneia tão intensa, que "Arranca-choros" nunca mais chorou. Nunca mais soube o que é a infelicidade, nunca mais se amargurou, nunca mais viu a vida com um filtro de cinzento. Do mal tinha surgido o bem.

Desde esse então a aldeia passou a contar, não com um, mas sim com dois "Arranca-Sorrisos", que iluminavam as faces e os corações dos seus habitantes.

Nunca se soube se neste sítio correram lágrimas alimentando os rios, mas também nunca mais se ouviram choros, tristezas ou lamúrias.

Assim é o poder do Sorriso...

 

 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A fonte "Bruta Seca"

A água deixara de correr naquela fonte fazia muitos anos. Tantos quantos os que o pai da irmã da Anita estaria em parte incerta. Saiu para comprar cigarros e nunca mais ninguém o viu desde então. Por vezes, dá-se o acaso da notícia de algum viajante que diz tê-lo avistado por terras de Bouro, logo se lançando um boato de que Aníbal voltava rico e próspero, para assumir a vergonha da paternidade daquela filha que sabia não ter dele sangue.

Mas foi mesmo no pico do verão que tal façanha se deu. Primeiro uma humidadezinha que apenas empapava, depois um fiozinho tímido de água, para ao fim de três dias jorrar uma fonte tão pura e cristalina quanto se dizia a mulher de Aníbal. A fonte "Bruta Seca" como lhe chamavam, decidiu abrir de novo as goelas da terra, e lançar a água mais perfeita e milagrosa do mundo.

Logo o manco decidiu bebê-la e andou. A cega molhou a cara e começou a vislumbrar a sua na poça que restava. O maluco declamou Pessoa em verso e prosa, e até o leproso suas chagas curou com uns pingos que lá caíram. Só milagre não reconhecido foi o da mulher de Aníbal, que dizia ter emprenhado ao lavar-se entre partes, com a dita água da fonte.

A notícia espalhou-se como um caminho de peças de dominó, e toda a gente das aldeias vizinhas se encaminhava em romaria para ver tamanha obra de Deus. Ou da Terra..
Depressa longas filas de espera se formaram para encher bilhas, vasilhas e tudo o que pudesse arrecadar aquele líquido abençoado, para depois o usar, vender ou negociar em terras daquém e dalém.

A carrinha da câmara fartava-se de colher amostras para comprovar a sua salubridade, mas quem atestou a pureza do produto foram uns americanos que por lá apareceram. Vieram em três jipes de vidros fumados, saindo de dentro com uns fatos assépticos brancos e umas sofisticadas malas que abriam com um código cifrado. Os óculos escuros não permitiam vislumbrar para onde dirigiam o olhar, mas de porte altivo seguiam em frente sem respeitar filas.
-"Filhos da p*%#, dos gringos, acham quisto é deles!"

A água era mesmo boa e podia usar-se para qualquer princípio, meio e fim.
O caudal da fonte aumentava a cada jorna, servindo de rega e utilização comum para todos os habitantes em redor.
As peregrinações de gente que acorriam ao local para ver a primeira fonte santa do país, redundavam num negócio florescente de frasquinhos de amostras benzidas, de réplicas da fonte bruta seca, para além dos habituais relógios, esferográficas, lenços, guarda-chuvas, t-shirts, cachecóis, atoalhados, todos com a imagem do Papa a benzer a dita fonte.

Em poucos meses, uma tal dinâmica se gerou em volta da fonte, ao ponto de transformar uma aldeia que outrora albergava uma vintena de famílias remediadas, numa amplificação da sua existência para uma autêntica urbe com cerca de meio milhão de almas. A parafernália instalada, sugava e explorava todas as vertentes possíveis e imagináveis relacionadas com a água...

Assim, os prados verdejavam a cada gota, as colheitas eram às meias dúzias por ano, e até frutas tropicais cresciam naquele interior tipicamente beirão.
A vida corria com prosperidade, e no tempo em que as cegonhas vêm e vão, coisas muito estranhas começaram a acontecer...

Tudo o que lhe era relativo, redundava em abundância e progresso, mas quem começou a notar nos poderes absolutos foi a mulher de Aníbal...
Costumava ir de madrugada cedo, ainda a fonte parecia adormecida mas sempre a jorrar. Os animais aproveitavam a altura de calmaria humana para saciarem a sede, e a mulher de Aníbal pôde constatar o quão transtornados ficavam ao beberem da dita santa fonte.

Os cães passavam a miar, as vacas assobiavam como passarinhos, o porco da tia Matilde recitava de cor Pessoa, as rolas vendiam a teoria do fole, e até os mochos contavam anedotas às formigas. Estes efeitos duravam apenas alguns minutos, mas foram suficientes para que a mulher de Aníbal pensasse que a água também lhe estaria a afectar os joelhos artrósicos.

Correu assustada e começou a reparar na população local. Afinal não eram os seus olhos, mas o merceeiro tinha mesmo escamas, a Julieta pregava aos sinais de trânsito, o cedro da praça em vez de folhas dava plumas, o pároco fazia ballet no coreto, e até o jumento de Maria fazia bostas da altura de um adulto!
Ainda bem que naquele dia não tomara água...
De repente a aldeia tinha-se transformado numa fantasia, talvez saída de um mundo de Alice.

A insanidade continuou assim, dias a fio, com a aldeia num tropel incessante de loucuras e personagens transformadas, desde o alucinante ao burlesco.
Rádios e jornais de todo o mundo colocavam a agora macro-aldeia no centro do foco internacional, centenas de jornalistas acorriam para relatar o feito mais mirabolante ou a personagem mais bizarra em que se tinham transformado os habitantes locais.
Médicos, físicos, químicos, cientistas, agências de segurança! Todos instalaram laboratórios de pesquisa e intervenção, na tentativa de perceber o sucedido.

Andar nestas ruas era como passear numa qualquer cidade do cinema, com dragões, fantasmas ou cowboys à mistura.
Mas o ritmo dos acontecimentos sucedia-se como uma descida de montanha russa, e quando a aldeia já estava cercada pelos militares, com controlos de entradas e saídas rigoroso e totalitário, eis que algo de surpreendente de novo acontece...

O grande jorro de água encolhia e encolhia a olhos vistos. As pessoas inquietavam-se e aproveitavam cada gota expelida pela rocha dura, como se a última fosse. Mas o sinal estava dado, e irremediavelmente a fonte estava a mirrar. Em poucas horas transformou-se num fiozinho de água, reduzida apenas a uma porção do seu esplendor, ficou intermitente, e por fim quando já todos se acotovelavam para sugar o resto, uma humidadezinha foi o que sobrou durante duas luas.
Findos dois dias a fonte ficou tão seca como folha em outono frio!

Como num de repente, os aldeões e mulheres voltaram à normalidade, os bichos comportavam-se como tal, o circo mediático montado desapareceu, os noticiários já abriam com uma qualquer guerra de homens, e em poucos dias a rotina voltava ao meio rural.

Nunca ninguém explicaria o fenómeno da fonte "Bruta Seca", nem tão pouco os livros de escola se lembrariam sequer que aquela aldeia alguma vez tivesse existido...

Tudo parecia bem de novo, e até Aníbal regressou aos braços da mulher...

domingo, 23 de setembro de 2012

Campo da bola




Esperara muitos anos por aquela notícia, mas agora era tarde demais.

Quando era criança brincava muito na rua. Essa rua que agora tem carros mal estacionados, e onde os cocós dos donos salpicam os passeios já estreitos. Deviam fazê-los mais largos para que houvesse espaço para todos. Cocós e pessoas.

Também tinha pena de nunca ter tido um cão. Mas nunca o tendo, pelo menos o consolo de não ter de lhe apanhar os cocós...

Sempre que vinha da escola, saltava o muro curto do estádio do Atlético e marcava um golo atrás do outro, em fintas imaginárias e livres direitinhos ao ângulo.
As bandeiras, os cachecóis e os apitos, rejubilavam com mais uma fantasia de grandeza que o transformava numa estrela do nada e do ninguém.

Cresceu com a mágoa de nunca ter visto o seu campo da bola com relva. Assim como quem morre com a mágoa de nunca puder ter visto as suas próprias costas.
Tanta gente que morre com mágoa e magoada..

Até ele, ali estendido na cama à espera que o chamem pela última vez.
-Não te zangues que não estou a fazer ronha! A preguiça entranhou-se em mim e agora tenho de esperar pela notícia!

Quando uma vez o Benfica veio jogar, até a erva daninha deixaram crescer no meio campo. Mas foi sol de pouca dura, porque assim que as águias abalaram, deixando a maior enchente da história do Atlético e a maior derrota desde a sua fundação com nove golos do pantera negra, a terra continuou a bater tanto no meio campo, que mirrou a pouca erva ruim que pincelava de verde o chute inicial.

-Estas dores matam-me de dores!
E eu prá aqui virado, porque o lençol se enrodilhou e não me deixa virar para oeste, que é onde se põe o sol. Que ironia! Agora que me vão apagar a luz de vez, estou virado a nascente.!
-Até me dói de rir!
-Também posso virar a cabeça para Sul que dizem é mais quentinho?

-Espera! Tás com pressa homem?
-Mas afinal quem sofre mais? Tu da pressa da espera ou eu com dores?
-Não percebes que estou esperando só por isto?

Uma vez veio um engenheiro da capital, ver o que se podia fazer. Tinha de ser muita maquinaria pesada, que os tapetes de relva fofa aos quadrados custavam uma fortuna, e o presidente da câmara não queria gastar o orçamento do anexo da sua casa para ajudar o clube da aldeia.

Tratou-se então de arranjar o tractor do Chinguilha para levantar terra, assentar com o rolo compressor, e finalmente lançar as sementes da relva que iria germinar nos buraquinhos milimétricos ponteados pelo ancinho.

Mas o Chinguilha ficou de boca à banda e o corpo deixou de lhe obedecer de repente!Primeiro uma perna bamba, o braço, a boca de lado, sem falar, mas quando espumou e começou a revirar os olhos já estava arrumado. Disseram que lhe deu uma trombose, ou um avc no entender dos entendidos, pelo que como ninguém sabia mexer no tractor, a sementeira foi-se...

-Ai!!! Porra pra isto mais a teoria do fole! Outra puta doutra guinada!!!"
-Raios partam esta doença que nos rói os ossos e come a carne por dentro!
-Quando chegar aí acima, vou-te perguntar se fizeste o mesmo ao camarada Juca da sapataria!

Tenho mais de mil artigos e recortes do atlético desde que sou vivo e agora quase morto. Pra que é que será que guardamos tanta trapalhada inútil? Temos medo que se nos borre da memória quando envelhecermos e não soubermos nomear um qualquer presidente? Sim, porque nomear presidentes é uma prova de lucidez para além do patriotismo. Lembrar-se de ninguém que nada fez...

Como os recortes! Não falam, não reclamam. Cristalizam os golos e resultados para todo o sempre. Será que alguém vai aproveitar aquilo para o museu?

-Caramba! Tardavam em chegar com notícias. Daquelas que eu esperava ouvir!
Uma cama de hospital não tem bonitos adereços onde um se possa entreter..

Uma vez foram à aldeia do meu pai e levaram também umas notícias. Daquelas que ninguém quer ouvir. Os telegramas do ministério da guerra vinham buscar os moços e o seu sangue.
Nos ouvidos das mulheres ficavam a retumbar aqueles momentos imensos, que duravam a distância do calor de uma terra que diziam ser em África.

Não sei se estão a chegar mas já me sinto cansado nesta enfermaria que tresanda a éter. Os olhos que pesam toneladas e um respirar ao acaso, como se me lembrasse vagamente de inspirar fundo de quando em quando.

Ao esforço do ar a entrar, inversa a facilidade em sair, e a expectativa da audiência em ver se havia outra golfada de oxigénio miraculosa por parte do moribundo paliativo.

-Parece que é desta!
Mas se ainda penso, não foi, não é...?
Mas um pensar já vazio, cansado de sofrer, um corpo definhando e um revirar de olhos quase como o Chinguilha. Não aguenta mais. Coitadinho..

A porta abriu-se lentamente num prenúncio.

Arnaldo ofegante e a chorar de alegria, anunciou que o campo de relva do Atlético tinha finalmente sido inaugurado e benzido!

O silêncio abateu-se no quarto e os rostos transfiguraram-se..
A enfermeira abanou pesadamente com a cabeça.
Fechou-lhe os olhos.
Plácida e serenamente cobriu-o com um lençol.

Podia ter frio na sua última viagem.

Adeus dores...

domingo, 9 de setembro de 2012

O Fiel


 
Acordava cedo porque assim o dia rendia mais e melhor. Mal saltava da cama, fazia a sua higiene habitual, tomava o pequeno almoço já servido, e saía de casa pela porta dos fundos para que ninguém o apanhasse.
Era vê-lo a caminhar pelo passeio com o seu porte altivo e confiante, como se o dono do bairro fosse.

Ziguezagueava pelos transeuntes como uma criança, e todos refilavam com ele quando por vezes lhe apetecia fazer uma linha recta. Salvador ignorava tudo e todos, serpentando apenas pelo prazer das curvas e contracurvas, como se um labirinto imaginário percorresse.

Por todas as casas ajardinadas que contornava, os cães ladravam-lhe com ar feroz e violento.
Ao aproximar-se da mansão da sua Aninhas, passou por um portão entreaberto de onde saiu um quatro patas enorme, pronto a abocanhar-lhe o rabo. Só teve tempo de correr os 100 metros em estilo olímpico para não servir de almoço naquele dia...

Ficou a arfar mas valeu a pena, porque despistou o doberman e o dono que o seguia.

Cansado, reparou que estava à porta da lanchonete da Rosalina. Entrou, e dirigiu-se ao balcão para pedir um pouco de água fresca, mas depressa veio o empregado com ar enfurecido gritando "fora daqui já!", pelo que rapidamente deu à sola.
De facto já tinha ouvido em casa que na lanchonete da Rosalina já não se fiava...

Seguiu o seu rumo em direcção ao jardim municipal, passando pela florista, pelo relojoeiro, e pelo veterinário que simpáticamente lhe acenou como se já o conhecesse.

Nestas deambulações, pensava ao acaso como seria a vida se ele próprio fosse um gato? Saltaria de muro em muro à procura de gata, comeria latinhas gourmet, lamber-se-ia todo-que nojo!-, eriçar-se-ia todo ao ouvir Tony Carreira, e se calhar falaria francês ou tocaria piano. Que vida mais burguesa e inútil!

Perdido em delírios divagatórios, encontrou por acaso Walter, um seu velho amigo da altura em que moravam no mesmo hotel. Seguiram rumo juntos, discutindo o caso tão badalado do momento, em que duas gaivotas embateram no cockpit do concorde. Que animais tão estúpidos, pensaram..

Enquanto se enredavam nos meandros de conversa, cruzaram-se com um bando de emigrantes afegãos, de porte altivo, magros e esguios, com a sua cabeleira farta, mas  estes nem lhes dirigiram palavra. 
-Pfu! Exclamaram. Nem sequer têm onde cair mortos, mas com aquele narizes afilados também não chegam longe!

Despediu-se de Walter, que ia comer um sorvete com uma amiga comum, e perdeu-se nos seus pensamentos loucos percorrendo a  avenida frondosa e em flor.

Nunca pensou em dissertar sobre futilidades, ou só sequer sobre devaneios alheios, como acontece com a teoria do fole, mas o que é certo é que o requinte de pensamento construtivo e delirante de Salvador estava ao rubro.

Achava-se um homem forte e bonito, louro, de olhos claros, que fazia tanto sucesso com as mulheres como um iPad no meio de japoneses. Imaginava-se em banhos de imersão com champanhe eslavo, e um quarteto de violinos tocando o hino da sua terra. Estes sonhos, compulsivamente fizeram com que se decidisse a submeter a uma plástica e retirar aquele ar boçal que possuía. Entrou na clinica de reconstrução decidido a alterar a sua verdadeira condição, mas assim que abriu a porta, foi literalmente enxotado à vassourada pela própria empregada da limpeza.
Acaso não estaria decente? Ou será que era tão feio, tão feio, que até assustou a rapariga?
Hum...se calhar a própria da empregada negra era racista...

Não faz mal! Decidira tirar o resto do dia para se cuidar e cruzou a estrada entrando no   SPA da Lolita.
Aqui sim, foi muito bem recebido! Era só abraços e mais abraços, até que o levaram para uma sala zen e o puseram na banheira de hidro-massagens a relaxar um pouco. Seguiu-se um bom duche e uma massagem com sabonete de lavanda, esfregando-o uma tailandesa de braços robustos, que findou a sessão com um corte de cabelo moderno e arrojado.
Ah! Assim sim, a vida vale a pena!
Despediu-se dos restantes clientes e da própria Lolita, que lhe abriu a porta, e acenando rematou num sorriso aberto:
-não se preocupe, que depois ponho na conta do costume!

O dia tinha sido longo, e Salvador dava graças aos deuses pelas benesses que detinha.

Virou a esquina e entrou na rua de sua casa.
Entrou pela mesma porta dos fundos daquela manhã, e foi-se deitar de rabo a abanar aos pés do seu dono suspirando:
-que bom é ser cão....!