sábado, 4 de agosto de 2012

Fado



Não sei se alguém sabe onde, e quando nasceu o fado, mas todos são unânimes em afirmar que ele é a voz do povo. 
Porque dele nasceu, mas sobretudo porque é ele que o canta, e é ele que o faz perdurar nos nossos imaginários perfeitos de recordações.

O povo português tem uma profundidade que o fado espelha bem: a melancolia, a saudade, a jovialidade, o atrevimento, a sofreguidão do sentimento na voz do fadista.
Ainda bem que o mundo reconheceu um património que é nosso, mas que de tão humano que é, passa a ser da própria humanidade que o acarinha.

Os patrimónios imateriais são designados, porque protegem e muitas vezes blindam as ameaças ao próprio produto original. Para além de serem uma forma de divulgação e promoção daquilo que pode ser difundido como género de qualidade e peculiaridade.
Mas o problema é que os nichos de cultura própria, são muitas vezes rodeados e contaminados de uma cultura global e globalizada, que se muitas vezes imprime valor acrescentado, na maioria das situações acarreta uma padronização aculturada daquilo que é corrente e banal. Alguém conhece o vinho do Porto, made in Califórnia?

Será que o fado vai aguentar esta investida universal? Será que se vai sentir ameaçado pela invasão de género depois deste reconhecimento mundial? 

Nos últimos anos têm sido várias as experiências e cruzamentos musicais com outras sonoridades, e de uma forma natural com o flamenco e o tango, géneros também viscerais e profundos. E profundos no sentido de que envolvem não apenas a música, mas sim uma filosofia de vida que lhes serviu de base de sustentação. 

O fado vive-se, respira-se, sente-se e canta-se porque os cantadores e ouvintes têm todas estas premissas nas suas veias. É por esta razão que ainda não se sente ameaçado, porque nunca será pertença de ninguém.

Pode haver fado experimental, fado com orquestra, fado com ritmos latinos, fado com ópera, fado com pop e rock, mas será sempre um fado com sabor a...vestindo-lhe apenas uma jaqueta, como quem se adorna para uma festa de estilo diferente.
O fado só se perderá, se um dia se perder a essência do viver português ou se a nossa vivência se adulterar no conteúdo. Se os macdonalds substituírem as tasquinhas, se as guitarras portuguesas forem electrificadas, se alfama morrer para um condomínio hermético, ou se o petisquinho for comido pelo barbecue.

No outro dia passando pelas ruas estreitas da mouraria, dei com uma gaiata a ouvir Amália no seu cante mais profundo e tocante. Chorava sentida, como uma criança não sabe sentir o chorar da curta vida, porque a mágoa ainda não lhe ensinou.
-porque choras menina?
-porque esta guitarra que toca era do meu avô, porque a minha mãe ouve esta música todos os domingos, porque a canto no restaurante do meu tio, porque as letras são lindas, porque este é o fado da minha vida!

Esta menina é a fachada do que nós somos: construtivamente elaborados na simplicidade!

Façamos um hino ao fado, aos seus compositores, aos seus músicos, aos seus intérpretes, aos seus criadores, porque todos o merecem.
Se ele foi escolhido para património mundial, é porque estes fundamentos assim o justificam e devemos para além de rejubilar com isso, reforçar a sua identidade e replicar o seu âmago, pois assim estaremos a preservar a alma e força como povo.

E para que finalmente a teoria do fole contribua para tal desígnio, aqui fica o mote:
"Que Viva o Fado!"
"Que não troquem nunca as vogais ao Fado!"

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Mundo Paralelo


As rotinas que detinham cumpriam-nas com rigor e pontualidade. Saíam os dois para o trabalho à mesma hora, encontravam-se para almoçar de marmita sempre no mesmo sítio, e voltavam os dois para casa no 37 que acabava a noite a resfolegar do esforço, na última paragem da Musgueira norte. Nunca tinham ido jantar fora, o cinema era para eles teatro barato, e as únicas loucuras que se permitiam era passear nas barquinhas do lago da cidade, ou ir ao circo no Natal.
 
Num destes episódios repetidos da vida, e no trajecto tortuoso para casa, calcorreando avenidas largas que alternam com becos de estreita manobra, chegaram ao cruzamento da avenida Pôncio de Loyola com a Mestra Lufanica.
 
No preciso bico da esquina, encontrava-se um duende dos países baixos da Lapónia, que comia uma arrufada de gengibre. Este era um sinal que ambos tinham de parar, e declamar a bem sucedida teoria do fole!
 
Assim o fizeram, e prontamente se dispunham a continuar quando da voz do anão verde saiu um fininho mas decidido:"Alto!"
 
Abrandaram em passo lento, estacando a um palmo da criatura verde e verrugosa.
 
Ele tinha decidido que Alfredo teria de fazer o percurso da rua do Turragulho até a Praça de Paquita Sonajera, para assim chegar a casa.
 
Toda a gente sabia a fama daquele percurso, e Alfredo teria de abandonar a cara-metade para seguir rumo, na esperança de chegar são e salvo.
 
Nestas alturas, havia sempre cabines públicas dispersas pela cidade, apetrechadas dos necessários fatos e restante indumentária para esta aventura.
Vestiu os ténis supersónicos, as cuecas de lã caprina, e o fato-macaco cosido com retalhos de panos de cozinha. Deste inglesíssimo outfit, fazia também parte uma saia de tule cor de rosinha, e um taco fofo de basebol.
 
Beijou a testa da dita - e apenas isso da cuja - desatando a correr pela avenida que desembocava na Gran Vía, fugindo dos quadrados rosa da calçada, que salpicavam o chão como se ali tivessem aterrado de emergência.
Cruzou-se com vários missionários que corriam à mesma velocidade, e lhe gritavam conselhos como: "roda a mangueira para oeste"; "arrefinfa-lhe uma marretada ao anão da dízima"; "grita: culélé! bulúlu! muluku! no jardim".
Com estas dicas talvez se safasse...

A Gran Vía estreitava-se ao longo do percurso, teimosamente avessa ao nome que detinha, acabando numa rotunda calcetada, onde o leite derramado pelo leitoduto amaciava a entrada dos corredores. Parou e avaliou a situação, reparando que a mangueira do leitoduto estava apontada para nascente. Rapidamente saltou a dominá-la como quem faz uma cernelha, virando-a para oeste e alagando as entradas dos afluentes viários da rotunda Maior. Esta manobra permitiu que os leiteiros se deslocassem, deixando caminho livre para Alfredo. Toca a correr!

A saída que pretendia, dava para um jardim colorido de massas fettuccine e farfalle. Embrenhou-se naquele bosque como um desvairado, abanando as suas folhas e frutos que caíam no chão, prontos a serem colhidos para uma tomatada de pasta al dente. O barulho fazia com que os passarinhos de pés de ornitorrinco e corpo de minhoca, acordassem do seu letargo, gritando coisas como:"bilele"; "ramimi"; "gudúra", que Alfredo sabia serem o sinal de alerta para os faisões assassinos da cantina italiana.

Não podia deixar que estes estúpidos pássaros arruinassem a sua performance, de maneira que começou também ele a gritar: culélé! bulúlu! muluku!, na expectativa de baralhar os faisões e acordar as mulas do reino da candonga. Estes seres tinham a forma de um saca-rolhas, deslocando-se em parafuso e tocando um sininho à medida que progrediam.

Reagiam sobretudo aos culélés, saltando das suas tocas e engolindo as aves raras barulhentas e incomodativas, ao mesmo tempo que soltavam uma nuvem azul perfumada que se erguia nos céus como uma baforada de Chanel nº5,7.
A última linha do jardim era cercada por plantas carnívoras que trituravam tudo, excepto restos de Lili Caneças. Alfredo aproveitou o embalo da corrida e deu um mortal à frente, sentindo os clacks-clacks dos dentes carnívoros a quererem mordiscar-lhe o traseiro, por uma questão de milímetros.

Aterrou de rabo numa fina faixa de areia que o amparou de partir umas costelas, mas que lhe ofereceu uma grande dor de cú. Assim caiu, assim ficou a olhar! A única saída daquele deserto era um tapete rolante gigantesco que acelerava em movimento contrário sempre que se tentava avançar. Assim que Alfredo corria para cima da rolanda, esta acelerava em movimento inverso, cuspindo-o de volta à areia fofa! Como sair dali?!
Sentia-se encurralado porque para trás impossível cair nas garras das plantas carnívoras, para os lados era só deserto, e para a frente que era o caminho, tinha um tapete rolante enorme que não parava e rodava para trás!

Justamente ao lado da entrada do tapete, estava um anão que tocava sem parar um realejo estridente. Aproximou-se devagar e perguntou:
-que fazeis aqui anão?
-ora! Sou o anão da dízima e tendes que a dar!-disse sem parar de dar à manivela
O rápido pensamento de Alfredo fê-lo agarrar no taco de basebol, e cá vai malho na calva do anão da dízima! Foi tão forte e certeiro que o enterrou direitinho até ao pescoço, parando o manípulo da caixinha estridente e com isso retirando a energia ao tapete castrador. Tinha conseguido pará-lo sem saber como!
 
Correu os últimos cem metros como obikwelu em tartan, cruzando a meta de braços no ar num êxtase de chariots of fire.
Caiu directamente num poço, escorregando em velocidade estonteante por um sistema de tubos torneados, que o cuspiram às cambalhotas na sua rua.
Sacudiu o pó que se acumulara pelos caminhos, e olhou à volta...
Os lampiões estavam acesos, ninguém passeava no crepúsculo, e as luzes nas janelas adivinhavam o conforto das famílias nos seus ninhos.

Subiu os degraus de sua casa, abriu a porta e abraçou-a.

Nesse dia tinha superado a prova rainha do mundo paralelo!

Parabéns!

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Destino


Já passava da meia-noite, e naquela estrada ampla só se viam as luzes que pontilhavam a negra paisagem, entrecortada pelos faróis de outros viajantes que vinham do meu próprio destino. O caminho já era longo, e a previsão de chegada também estava longe.

Nestas alturas aproveito para pôr os telefonemas em dia fazendo a viagem em companhia, ou então opto pelo aleatório do moderno iPod, que descarrega as músicas com a imparcialidade fria das máquinas.

Optei pelo cantante, que tão depressa emitia a alegria dos acordes, como a melancolia das baladas que nos fazem sorrir e fixar o traço contínuo do asfalto.

Pequenas luzes intermitentes brilham lá no alto.

Para onde irão aqueles aviões? De onde vêm? Quem levarão lá dentro?

Consigo imaginar o emigrante que vai tentar a sua sorte, a sobrinha que passa férias com a tia do Brasil, o chinês que negoceia fogo-de-artifício, a modelo contratada para uma festa nas arábias, o padre que vai em missão para um qualquer lugar remoto, a madame que compra tudo em Paris, ou até o sobrinho-neto que vai ao funeral da tia-avó.

Quantos milhares de vidas se cruzam e entrecruzam, por encruzilhadas paralelas, e muitas vezes fotocópias umas das outras? Neste preciso segundo que escrevo esta frase e que vocês a lêem, alguém torce um pé, alguém come um bolo, alguém rebola na relva, alguém disserta na teoria do fole, alguém finge que nada acontece no outro lado do mundo.

Afinal não estamos sós!

Por isso é tão difícil inovar. Porque alguém já pensou nisto antes, ou melhor, está a pensar neste momento!

Somos tantos a pensar que até me espanta como há pessoas que conseguem inovar sem renovar, romper com o pensamento circular e fechado, permitindo-se ver mais além. São com certeza elementos com uma visão não redutora ao nível da terra. Imaginar-se ave e elevar o ponto de visão da terra para o céu como se a sobrevoássemos, é um exercício que todos podemos e devemos fazer. Temos mais amplitude, maior visão global e uma maior previsão dos movimentos.

É como ver um jogo de futebol da linha lateral ou vê-lo do terceiro anel. No primeiro somos próximos, mas redutores e com pouca abrangência. Nos segundos, temos uma noção exacta e um filme corrido daquilo que discorre na fita da vida.

Este é por isso um grande exercício a praticar em todos os momentos. Não focalizamos o problema ou obstáculo, mas vemos para lá da cerca e distribuímos a perspectiva, podendo até nos comparar a outros na mesma situação, e que se situem nas nossas antípodas geográficas.

Passei agora a portagem, e o revisor trouxe-me de volta aos meus pensamentos mecanizados.

Parar, ticket, pagar, receber cartão de volta, prendê-lo entre dentes, meter primeira, acelerar e entrar de novo na via do pensamento distractivo.

Este caminho asfaltado tem uma meta e um alcance definido, mas o nosso próprio caminho tem tantas vicissitudes e interlúdios que dependem bastas vezes de pequenos pormenores. Se eu me atrasar três segundos posso não apanhar o comboio daquela paixão, mas posso no mesmo timing embarcar num amor infeliz. O empenho e a vontade têm marcante preponderância no nosso rumo, mas o acaso das coisas troca as linhas tal como nos caminhos-de-ferro as mudanças de agulhas definem os apeadeiros e as estações de chegada.

No outro dia vinha a atravessar a rua e parei a olhar para trás, porque senti que alguém me chamava em surdina. Nessa fracção de tempo retomei a marcha e não fui apanhado por um Toyota, porque aquela voz me segurou um milésimo de segundo. Sorte? Adivinhança? Premonição? Ou apenas Destino?

Quem sabe...?

Entrei na recta final da minha viagem programada! Esta discorreu sem percalços e sem contratempos de percurso, graças também aos acasos dos outros caminhos que não se impuseram ao meu.
Estacionei, puxei o travão de mão, desliguei o motor e fiquei uns segundos recostado, a imaginar de como seria a vida em amarelo!

Chego à conclusão que ela é maravilhosa, às cores e ao vivo...








quinta-feira, 17 de maio de 2012

Ops!



A azáfama da urgência era caótica desde que tinham fechado as extensões de saúde dos arredores, e todos os dias toneladas de doentes eram despejados à pazada na porta daquela que se dizia a maior, e melhor urgência do país.

Uma pequena entrada dava acesso a um serviço cheio de remendos e acrescentos, com planta de construção datada dos anos cinquenta, e claramente fora de toda a racionalidade de eficácia e eficiência da era moderna.

Médicos, enfermeiros e auxiliares eram sempre poucos, as horas de espera ao atendimento revelavam as dificuldades, e serviam de prova de resistência aos doentes que menos se queixavam na hora da inscrição.

Se na primeira linha de abordagem, as tosses e febrículas se misturavam com as dores vagas e os entorses; no internamento, as tromboses, os enfartes e as hemorragias, eram vigiados e tratados com maior afinco e vigilância.

Às cinco da tarde, dava entrada uma senhora trazida pelos bombeiros da Musgueira, aparentando uns sessenta e poucos anos de idade sofridos, já muito difíceis de adivinhar na cor negra de pele e nos sulcos profundos das rugas da face. A sua atitude era calma, o seu discurso era imperceptível e ficava fixamente a olhar para nós respondendo guturejos cantados.

Foi inscrita com os documentos que aportava, e depois de muita auscultação e palpação, a D. Adelaide passou a ser conhecida pela maca doze, que aguardava o raio X à cabeça.

Parecia responder ao nome, mas logo vinha um chorrilho de palavras esgrouviadas que até nos pareciam insultar, não fosse a entoação suave e atitude serena.

De uma das portas semicerrada, ouvimos o auxiliar de acção médica aos gritos do fundo do corredor:

-"Ó Juvenal! Traz daí a velha da maca 12 prà TAC!"

E assim foi a Dona Adelaide, que mirrava na cama de vergonha cada vez que lhe perguntavam o que quer que fosse.

O exame não deu nada e por isso decidiram interná-la para observação e vigilância, com o pomposo rótulo de acidente vascular cerebral isquémico. Ficou num corredor, a seguir à maca 11 com o carimbo de hemorragia digestiva, e depois da maca 15 com a senha de enfarte do miocárdio. Todos pareciam comunicar menos a D.Adelaide, que diziam ter afasia e lhe custava a entender-se e explicar-se como deve de ser.

Aquelas noites eram frias, e no corredor sentia-se a brisa que entrava cada vez que as portas automáticas se abriam para engolir mais uma série de candidatos a doente, triados de pulseiras verde, amarela ou laranja, conforme a seriedade da enfermidade. Com o sono entrecortado, lá descansaram todos um bocadinho, que o cansaço aperta naquelas horas, estejamos mais ou menos doentes.

No turno da manhã, grandes jarros de metal amolgados pelo uso do combate diário, distribuíam o leite em canecas de loiça barata e tosca, enquanto as carcaças com manteiga eram repartidas pelos estropiados auto-suficientes, segundo as regras de higiene da teoria do fole.

Os serviços seguiam-se uns aos outros por turnos de oito horas cada um, e tanto os médicos como os enfermeiros registavam nas suas avaliações e observações consecutivas da D.Adelaide, coisas como: "doente sem défices motores", "afasia de compreensão e expressão", "duvidoso desvio da comissura labial", desconhecendo o povo que tínhamos uma "comissura" no corpo e ainda para mais na boca!

No dia seguinte entrei ao serviço, e depois de dar uma volta aos doentes debrucei-me sobre qual seria o destino a dar à D.Adelaide. Uma senhora daquela idade, apesar de se mexer sem problemas, iria ter com certeza muitos handicaps a ultrapassar nas suas actividades de vida diária. Temos de convocar a família! Pensei eu.

Como fazia o turno da tarde que coincidia com o horário das visitas, assim que vi alguém ao pé da maca 12, lancei a mira e fui. Era uma jovem de raça negra, alta e esguia,  com traços finos e delicados, extremamente bem vestida, que facilmente passava por princesa de uma qualquer tribo africana.

Com muito meu espanto, as duas pareciam falar animadamente, embora não me conseguisse aperceber do que é que falavam, porque a confusão das visitas era tal, que não permitia ouvir com clareza a aquela distância. Curioso como pelo menos gesticulavam em consonância, parecendo até que estavam em amena cavaqueira...

- Boa tarde!

- Boa tarde, Senhor doutor! Disse, rasgando um sorriso nuns dentes perfeitamente alinhados como albas teclas de um piano sedutor!

- A senhora é familiar da D.Adelaide?-Gaguejei, perante o impacto!

- Temo dizer-lhe que a sua avó não consegue falar nem entender o que diz porque teve uma trombose no cérebro! Mas neste momento está estável...

- Como diz doutor!!?- disse levantando o tom de voz e desvanecendo aqueles marfins alinhados.

- Pois...mas pelo menos anda sozinha e faz a higiene por si própria.. Retorqui, tentando fazer reaparecer aquele sorriso de novela.

- Sabe que por vezes estas coisas...

- Mas que disparate vem a ser este doutor? A minha avó é cabo-verdiana e chegou a Lisboa há uma semana! Ela Só fala e Só percebe crioulo....!!!!!!! E fala e entende tudo como antes....

Nesse momento percebi que a nossa medicina tinha sido fintada pelo dialecto africano .....

PS: história real de uma qualquer urgência real deste real país.



sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Tique-Tique


Eram três da tarde de um dia solarengo e ameno, naquela cidade que vivia dos arrufos das nortadas que a fustigavam o ano inteiro.

O posto de correios tinha acabado de abrir, e a nova remessa da teoria do fole vinha agora em fascículos, pronta a ser distribuída pela rede de entrega juntamente com as pensões de reforma e as multas de excesso de velocidade.

Alcinda trabalhava naquele posto de correios já fazia mais de 40 anos. Na altura iniciou-se como telegrafista, encriptando e enviando milhares de mensagens morse por esse mundo fora. Viu os selos darem lugar à trabalheira das encomendas postais, a venda automática de estampilhas foi uma novidade, o serviço de entregas urgentes um avanço da sociedade moderna, mas nem a vanguardista internet conseguiu destronar o carinho das pessoas pelos "Correios". Talvez porque as verdadeiras cartas de amor só se escrevam em papel...

Preparava-se para atender uma cliente, quando entrou no posto o Zeca da latoaria. Vinha com o seu filho que se encontrava emigrado nas Américas, e que lhe tinha vindo fazer uma visita.

-Olá Alcinda! Ainda não mudaste as cuecas amarelas desde ontem, hãm?!

-Oh! Que disparate Zeca! Enquanto corava da cor do cavalinho dos correios.

-Olha, apresento-te o meu rebento mais velho!

Evanildo Johnson (em homenagem ao seu champô preferido), era um rapaz para os seus 28 anos, bem-parecido e educado, que prontamente lhe estendeu a mão e se curvou numa pequena vénia em sinal de deferência e respeito.

Estiveram um bocado a conversar os três em temas amenos e fúteis, quando de repente Evanildo estica e encolhe os braços numa dança qualquer, tão esquisita quanto inesperada, continuando a conversação como se nada tivesse acontecido. E este até nem foi o gesto mais inusitado. Sim, porque Evanildo de cada vez que acabava uma frase tinha como tique, dar-se uma sonora palmada na nádega esquerda ao mesmo tempo que arrufava um som rouco do nariz, como um leitão em proximidade da Bairrada.

Mas como Zeca nem pestanejou, Alcinda também não deu parte fraca, e continuou disfarçadamente o entabulamento da conversa rematando com um simples mas eficaz: "Bom, vou trabalhar mais um bocadinho senão as cartas não abalam!".

Lá se despediram com um beijo de cada lado e mais uma auto-pancadinha de nádega de Evanildo, saindo este com o pai enquanto vociferava inapropriadamente, aos risos, do vernáculo mais potente que Alcinda já tinha escutado e que teria feito com certeza até empalidecer a batina do Sr.Prior.

Ficou-se um tempo a pensar, que personagem mais estranha este luso-americano. Os gauleses acham que os romanos são doídos, mas este América não se fica atrás!

Já era hora de fechar o estabelecimento, e apressou-se a virar o cartaz de "fechado", para que mais ninguém lhe acenasse a querer enviar nem que fosse uma mula embrulhada em tafetá de oiro e popelina de seda via postal.

Saiu a matutar naquele bizarro encontro! Um rapaz tão bem posto e parecido, de discurso tão interessante, mas que depois estragava tudo com trejeitos, impulsos e calão repentino, era cousa ou do demo ou de muito circuito cruzado...o que vale é que hoje já ninguém é queimado na fogueira, senão este era logo atirado...Também havia a hipótese de muita droga naquelas veias, mas o jovem não tinha nada aspecto de snifador de linhas...

Ao virar da esquina, qual a sua surpresa ao ver Evanildo ajudando um invisual a atravessar a rua, num comportamento e atitude cívica exemplares! Passos curtos e respeitosos, tendo sempre em atenção as pedras da calçada, guiando o ceguinho em segurança até a outra margem. Mal se despediu, deu meia volta e contorceu-se todo num espasmo só, abrindo muito a boca para rosnar numa gargalha única, três impropérios de rajada para a parede. Impropérios esses, que aludiam de forma jocosa a apêndices anatómicos diversos, que excluíam obviamente o nariz e as orelhas. E o espantoso é que no segundo imediatamente seguinte, Evanildo transfigurava-se e cedia passagem de uma forma elegante e cavalheiresca a uma donzela que se lhe cruzava nesse instante. Que raio...!

Decidiu então segui-lo pelas ruas e ruelas da cidade, pensando que mistério entronava este personagem das Américas!

Evanildo passeava em ritmo ligeiro, ora socando o ar no melhor estilo boxeur, ora gesticulando sozinho em fracções de segundos mirabolantes! Perseguiu-o durante três quartos de hora em reviravoltas de percurso erráticas, tentando adivinhar onde iriam parar aqueles rasgos de aparente insanidade.

Nisto, quando vagueavam os dois a meia distância pela avenida, uma ambulância fez uma travagem repentina, guinchando os pneus e largando uma nuvem de fumo de borracha que empestou o ar. Dela saíram dois enfermeiros corpulentos, de barba russa e bata branca imaculada. Lançaram-se a Evanildo como se não houvesse amanhã (neste caso sábado...), imobilizaram-no, meteram-lhe um colete-de-forças, e enquanto o pobre desgraçado esperneava e gritava "Aqui del rey, Aqui del rey!" meteram-no na ambulância e chiaram novamente os pneus com a mesma fumarada de antes, desaparecendo no asfalto que estava livre e desimpedido.

Alcinda ainda conseguiu ver as letras pequeninas na ambulância: "Hospital Psiquiátrico de Lorvão"...

Desde então, nunca mais viu Evanildo...

Síndrome de Gilles de La Tourette: “é uma patologia rara de origem neurológica que se manifesta por tiques motores incontroláveis e inadequados ou vocalizações repetidas e fora do contexto. Os tiques podem ser palavrões ditos repetidamente em voz alta fora do contexto, movimentos bruscos e estranhos, caretas, movimentos espásmicos, fazer sons de animais, entre outros gestos.”


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"A Voz"


A contracção do diafragma dizem que é o mais importante! Cria uma pressão negativa dentro da caixa, enchem-se os alvéolos de ar puro, para passivamente e com nova ajuda do diafragma ser o mesmo ar de moléculas a sair, trespassando as cordas vocais compelido em agudos e graves, para por fim escapulir pelas coanas e soar!

Muitas formas há de expressar a voz e isso fica bem claro no nosso idioma: falar, palrar, vociferar, gritar, cantar, guturejar, e até praguejar...ficando impressas pelo povo como ele muito bem o sabe: “voz de cana rachada”; “voz de bagaço”; “vozinha aflautada”; “voz de trovão”; “vozinha de anjo”, entre outras... Mas todas utilizam o mesmo mecanismo fisiológico, sendo claro distinguir o falar do cantar. Se há vozes perfeitas para a locução, devem-se na maioria dos casos ao timbre, à forma de articular as palavras, à dicção, à ênfase impressa que confere o balanço à frase.

As locuções podem ser graves, abafadas, transmitindo solenidade, rigor e respeito. Podem ser num ritmo pausado e calmo, dando a sensação de discurso congregador e irrepreensivelmente estudado. E até podem ser mecanizadas e secas, como se calhar se pretende para preencher um lugar em informação de rádio ou televisão. Mas as minhas preferidas eram as de Alice Cruz, antiga voz off da RTP, cujas peças transmitiam sempre uma tonalidade modal e constante que não interferia com os conteúdos visuais dos programas, mas ao mesmo tempo com pequenas harmoniosas inflexões de voz que destacavam os clímaxes específicos do galope do documentário. Inigualável!

Insuperável era também Ana Zanatti. Sou sempre invadido por uma serena calma quando os silêncios são ocupados por esta senhora. Todo e qualquer relato me parece um flutuar de sons impecavelmente melodiosos que me transporta visualmente para os locais e acção relatados.

E impossível seria aqui não recordar as vozes memoráveis de Raul Durão, Luís Pereira de Sousa, Carlos Cruz, entre outros. São vozes que estão no nosso imaginário, e que assim que as ouvimos as reconhecemos pelas suas características únicas e sonoramente familiares.

Mas os mistérios da voz são imensos, com vozes tecnicamente perfeitas, palatos altos, diafragmas treinados, rinofarínges límpidas e ressonantes, e há até quem puxe pela rouquidão para marcar a sua linha. Estas características são todas exploradas nas suas mais variadas vertentes, no expoente máximo do usofruto e utilização da voz, que é o canto.

Isto porque no canto, a exploração e variação de géneros e estilos, mais para além das influências de outros factores externos, como a imagem, a postura, os arranjos musicais, e até o efeito psicológico do exemplo de figura mediática, faz com que individualmente tenhamos vozes interpretativas muitíssimo diferentes umas das outras.

Uma coisa é certa e comum. Para que os cantores tenham sucesso e consigam atingir os seus ouvintes e seguidores, não basta possuir uma voz divinal ou cantar tonalmente sem desafinações. Têm de saber canalizar a emoção da música pela voz, e de a interpretarem, dando-lhe um corpo e uma consistência que prenda o nosso ouvido.

Um exemplo disso é esta interpretação de Jennifer Holliday, no musical americano Dreamgirls: http://www.youtube.com/watch?v=kC_u_q-iND0&feature=related  (do minuto 3:28s até 8:02s). Esta performance é para mim o exemplo máximo daquilo que deve ser uma materialização de um trecho. Força alternando com subtileza, interpretação, entrega à música, e sobretudo uma emoção transmitida por doses perfeitas, com arranques que se vão libertando ora devagar ora com ímpetos de arrebato inigualáveis. Ímpar!

Poderia citar inúmeros exemplos de vozes marcantes, mas pego nos exemplos de Amália Rodrigues e Bjork. Não têm nada em comum, mas possuem um elo que as une e lhes confere um lugar no meu top. Sem serem possuidoras de uma voz perfeita, ambas riem, choram, vivem, dançam e exprimem-se no canto com um sentimento de tal modo intenso, que quando cantam tudo o que dizem se agiganta de forma imensurável, tocando-nos profundo na essência. Mesmo quem não percebe a letra fica enganchado naqueles sons e naquela presença.

O mesmo se passa com aquele apelidado de “The voice”. Independentemente da época e dos seus meandros artísticos, nomeadamente a suposta ligação à máfia italiana, esta foi sem dúvida a mais particular voz masculina até hoje. Sinatra, é ainda hoje uma referência como cantor e intérprete, porque o seu registo vocal é inimitável e singular. Tantos outros haveria para escolher com projectos na mesma linha (Harry Connick Junior; Michael Bublé; Robbie Williams), que seria preciso aplicar uma teoria do fole para descrevermos todos os novos talentos musicais...

Mas como gostos não se discutem, mas sim partilham-se, aqui fica esta voz em jeito de surdina...

Abraços afinados   

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ser Ilhéu

Podia ter vindo do Sudão, da Mauritânia, ou até da longínqua Birmânia, mas o que é certo, é que nasci no meio do Atlântico. Num punhado de terra rodeada por um imenso mar sem fim. O que à partida poderia ser por alguns considerado um azar do destino, é para mim motivo de orgulho e de honra. O sítio onde pertencemos, onde nos criamos, onde nos refugiamos sempre que algo se nos apoquenta, é o lugar de nascença. Deve ser das poucas coisas que não podemos escolher, que nos é imposto e que nos carimba como um selo de origem!

Nascer numa ilha é um símbolo de pertença muito grande, que se impregna de uma forma muito vincada e pessoal. As ilhas são locais de personalidades únicas, que ao se expressarem, canalizam muitas vezes para sentimentos e emoções fortes, arrebates de criação de um momento singular. Não diria que a nossa alma seja maior, mas tem maior cabimento, mais tolerância, maior capacidade de considerar e balizar, sem rede de contenção.

Ao mesmo tempo, o nosso campo tem mais amplitude de visão, tem um maior discernimento nas vidas de relação, com gestos e contra gestos de são convívio, com aqueles de que gostamos e consideramos. Há sempre uma surpresa, um encanto, um desencanto que surge e se transforma do nada, num todo de magia simplista como a vida deve ser. Como se de um fundo poço se tratasse. Onde nunca ninguém consegue ver a água, mas que se nele atirar um balde, puxa sempre um afecto ou uma essência verdadeira e cristalina como a própria água.

Ver o mar todos os dias e para onde quer que se olhe, sentir que sempre está em calma pois o horizonte é sempre sereno, e poder imaginar que para lá do além longe se pode mandar o pensamento, aprende-se. E aprende-se também com esta gente e com este povo que tão bastas vezes a vida lhe decepou. Sem heróis conhecidos de fama, desbravou a ilha e traçou-lhe trilhos insistentes naquela rocha dura, plantou e domou-lhe as encostas com os socalcos, fez-se ao mar para que este lhe desse sustento, e desafiou-o vezes sem conta, nem que fosse para lhe mostrar quem ali reina. O mar tem sempre esta força e este poderio imenso como ele próprio sabe, sabendo que o podemos cavalgar mas que nunca o domaremos. Ao mesmo tempo dá-nos esta calma e esta paz de saber que somos simplesmente assim. Tu estás aí e nós colocamo-nos no nosso lugar, humildemente te reconhecemos como supremo. Nas ilhas acorda-se de manhã com a visão omnipotente do mar, veículo da nossa possível fuga, mas ao mesmo tempo barreira plácida para a nossa evasão. É por isto que sabemos onde se colocam os nossos limites. Por um lado a plenitude da linha fina do horizonte, e por outro a esmagadora montanha que nos sombreia e nos reduz à nossa existência. Sabemos que estamos aqui provisoriamente.

Curiosamente, quanto mais dela nos afastamos, mais dela sentimos a falta. É um ioiô de pertença fugidia ao que nos foi impresso. Não é à toa que os emigrantes são os mais acérrimos defensores daquilo que são as suas raízes. As Associações e comunidades de emigrantes da ilha, são sempre dignas defensoras da espetada à madeirense, do milho frito, da batata-doce, da carne de vinha d´alhos, do quarto de pão com molho, das lapas grelhadas, do atum, do peixe-espada, do bolo do caco, do pudim de maracujá, do Boal, do Sercial, do Malvazia, do Verdelho, da festa de Nossa Srª do Monte, dos arraiais, do fogo de artifício....de tantas e tantas coisas que materialmente nos conferem uma identidade única, e que espiritualmente nos globalizam cá dentro.

É um fascínio de mentalidades esta ilha! Fora dela consigo ver uma identidade comum, um traço de pensamento que responde com uma pergunta em vez de uma resposta.
P:- “Túlio! Vais ir más êlê até ao cuáis?”
R:-“Uái! Pra que quéres sabêr isse...?”
E até os malucos da ilha são mais uniformes na sua linha de loucura. Será pela própria contenção do espaço, será pela contenção social mais apertada, ou será pela limitação geográfica que também impõe barreiras aos devaneios da loucura? Não faço ideia, mas muitas vezes até a própria insanidade se infiltra no seio da normalidade, fazendo uma paleta de diferentes personalidades que em outro contexto ficariam internadas no “Trapiche”.

Pode não haver muitas intimidades, mas quando um descobre um seu conterrâneo, logo se estabelece um canal de comunicação, uma linha de pensamento própria, uma cumplicidade inerente à vivência comum do ilhéu, que nos torna muito mais unidos sem necessidade de verbalizar. A poupança de palavras também é genuína, mas canaliza-se por vezes sob outras formas para o mesmo conteúdo. A forma de escrita como esta teoria do fole por exemplo...Aí o aforro dá asas à imaginação...

Viva a Madeira e suas gentes