segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ser Ilhéu

Podia ter vindo do Sudão, da Mauritânia, ou até da longínqua Birmânia, mas o que é certo, é que nasci no meio do Atlântico. Num punhado de terra rodeada por um imenso mar sem fim. O que à partida poderia ser por alguns considerado um azar do destino, é para mim motivo de orgulho e de honra. O sítio onde pertencemos, onde nos criamos, onde nos refugiamos sempre que algo se nos apoquenta, é o lugar de nascença. Deve ser das poucas coisas que não podemos escolher, que nos é imposto e que nos carimba como um selo de origem!

Nascer numa ilha é um símbolo de pertença muito grande, que se impregna de uma forma muito vincada e pessoal. As ilhas são locais de personalidades únicas, que ao se expressarem, canalizam muitas vezes para sentimentos e emoções fortes, arrebates de criação de um momento singular. Não diria que a nossa alma seja maior, mas tem maior cabimento, mais tolerância, maior capacidade de considerar e balizar, sem rede de contenção.

Ao mesmo tempo, o nosso campo tem mais amplitude de visão, tem um maior discernimento nas vidas de relação, com gestos e contra gestos de são convívio, com aqueles de que gostamos e consideramos. Há sempre uma surpresa, um encanto, um desencanto que surge e se transforma do nada, num todo de magia simplista como a vida deve ser. Como se de um fundo poço se tratasse. Onde nunca ninguém consegue ver a água, mas que se nele atirar um balde, puxa sempre um afecto ou uma essência verdadeira e cristalina como a própria água.

Ver o mar todos os dias e para onde quer que se olhe, sentir que sempre está em calma pois o horizonte é sempre sereno, e poder imaginar que para lá do além longe se pode mandar o pensamento, aprende-se. E aprende-se também com esta gente e com este povo que tão bastas vezes a vida lhe decepou. Sem heróis conhecidos de fama, desbravou a ilha e traçou-lhe trilhos insistentes naquela rocha dura, plantou e domou-lhe as encostas com os socalcos, fez-se ao mar para que este lhe desse sustento, e desafiou-o vezes sem conta, nem que fosse para lhe mostrar quem ali reina. O mar tem sempre esta força e este poderio imenso como ele próprio sabe, sabendo que o podemos cavalgar mas que nunca o domaremos. Ao mesmo tempo dá-nos esta calma e esta paz de saber que somos simplesmente assim. Tu estás aí e nós colocamo-nos no nosso lugar, humildemente te reconhecemos como supremo. Nas ilhas acorda-se de manhã com a visão omnipotente do mar, veículo da nossa possível fuga, mas ao mesmo tempo barreira plácida para a nossa evasão. É por isto que sabemos onde se colocam os nossos limites. Por um lado a plenitude da linha fina do horizonte, e por outro a esmagadora montanha que nos sombreia e nos reduz à nossa existência. Sabemos que estamos aqui provisoriamente.

Curiosamente, quanto mais dela nos afastamos, mais dela sentimos a falta. É um ioiô de pertença fugidia ao que nos foi impresso. Não é à toa que os emigrantes são os mais acérrimos defensores daquilo que são as suas raízes. As Associações e comunidades de emigrantes da ilha, são sempre dignas defensoras da espetada à madeirense, do milho frito, da batata-doce, da carne de vinha d´alhos, do quarto de pão com molho, das lapas grelhadas, do atum, do peixe-espada, do bolo do caco, do pudim de maracujá, do Boal, do Sercial, do Malvazia, do Verdelho, da festa de Nossa Srª do Monte, dos arraiais, do fogo de artifício....de tantas e tantas coisas que materialmente nos conferem uma identidade única, e que espiritualmente nos globalizam cá dentro.

É um fascínio de mentalidades esta ilha! Fora dela consigo ver uma identidade comum, um traço de pensamento que responde com uma pergunta em vez de uma resposta.
P:- “Túlio! Vais ir más êlê até ao cuáis?”
R:-“Uái! Pra que quéres sabêr isse...?”
E até os malucos da ilha são mais uniformes na sua linha de loucura. Será pela própria contenção do espaço, será pela contenção social mais apertada, ou será pela limitação geográfica que também impõe barreiras aos devaneios da loucura? Não faço ideia, mas muitas vezes até a própria insanidade se infiltra no seio da normalidade, fazendo uma paleta de diferentes personalidades que em outro contexto ficariam internadas no “Trapiche”.

Pode não haver muitas intimidades, mas quando um descobre um seu conterrâneo, logo se estabelece um canal de comunicação, uma linha de pensamento própria, uma cumplicidade inerente à vivência comum do ilhéu, que nos torna muito mais unidos sem necessidade de verbalizar. A poupança de palavras também é genuína, mas canaliza-se por vezes sob outras formas para o mesmo conteúdo. A forma de escrita como esta teoria do fole por exemplo...Aí o aforro dá asas à imaginação...

Viva a Madeira e suas gentes

terça-feira, 18 de maio de 2010

Nós

A vida até agora tem sido fácil e maneirinha, gerida pelos alternados intempestuosos ritmos dum percurso de saudável convívio, dos altos e baixos, muitos deles intensos, que acabam por moldar os nossos géneros.

Ainda ontem te vi e parece que não existias, que não eras nada nem ninguém, que o mundo te podia engolir, e que ali estava eu para te proteger e abraçar. Só nos olhávamos e nada dizíamos para nos entender, como se adivinhássemos para além da retina, como se ouvindo com os cinco sentidos fosse algo de sempre. O bater uníssono dos corações nos acalmava.

O tempo passa em câmara lenta, com uma cadência certa e sem volta a atrás, mas felizmente sem percalços, e com momentos irrepetíveis que se fixam indeléveis como palavras intemporais. Acompanho-te a par e passo para que não te atrases, e acertando-te muitas vezes esse mesmo passo quando ele se confunde..

O tempo pouco vai passando, e sorrio profundamente quando te miro entretido, quando me abraças, quando me falas e me pedes algo. Não consigo resistir e apetece-me proteger-te sempre, apetece-me dizer que ninguém te fará mal, que serás feliz se depender de mim.

Às vezes chego a casa tão cansado que não me apetece nem comer, mas assim que tu me abres o teu sorriso ao mesmo tempo que os braços para me abraçar, continuo a te acompanhar até que o sono nos vença.

Nem consigo imaginar que algo te possa acontecer, que sofras sozinho sem a minha ajuda, que te magoem e eu não esteja para te defender, ou pior ainda, que desapareças para sempre sem dizer adeus, ou que eu desapareça e tenhas de seguir rumo sozinho.

Neste pouco tempo que já é nosso e que ninguém nos tira, penso sempre no futuro e como será. Sempre de cores radiantes, de energia positiva, de bem estar e razão, de trabalho e sucesso, mas acima de tudo de paz plena e serenidade alcançada.

Com todas as incógnitas que ainda faltam preencher, com todos os desígnios por adivinhar, e independentemente das hiperbolizações que possamos sonhar por ti, o desejo é só um.

Que sejas mesmo Feliz a ser, e a fazer aquilo que mais gostas!

Um grande beijinho de Parabéns

Deste que te quer muito

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Porque ainda é Natal!

A festa começa no primeiro de Dezembro, quando as luzinhas dão cor e brilho à cidade, e o cheiro do Natal chega a todos os cantinhos do Funchal. Aqui, a fobia da época não se mede pelas montras vistosas, nem pela profusão de rechonchudos pais Natal, nem pelo número de gadgets inúteis postos à venda, nem sequer pela idiotice de ter um hipopótamo como figura Natalícia.

O sentido é o da verdadeira festa da família, dos amigos, do convívio, da partilha, da solidariedade, destes e daqueles muitas vezes olvidados, tudo em redor da celebração do nascimento do Menino Jesus. As missas do parto, que se iniciam nove dias antes do Natal, e que se celebram às seis da manhã, são a prova de que o religioso se mistura com o pagão. Ainda nos acordam temprano, os grupos de populares que munidos de instrumentos vários como o acordeão, a braguinha, a rabeca, a harmónica, o rajão, as castanholas, o reco-reco, as pinhas, a gaita, o brinquinho, nos brindam à saída da missa, celebrando o momento da Festa do Menino.

Os preparativos começam cedo, e recordo com alegria o dia em que subíamos a montanha para ir buscar o pinheiro de Natal! O Sr.Engenheiro do governo regional, disponibilizava sempre uns salvo-condutos para que, chegados ao posto de controlo florestal do Poiso, com um frio de rachar, o vigia se embrenhasse na floresta, vindo de lá com um frondoso abeto que recebia em casa os mais variados comentários: “É um bocado esgalhado!”; “Este ano saiu um pedacinho desconsolado!”;”Ah, este é muito maneirinho!”. O pote de mármore servia de recipiente, as rochas entalavam e fixavam o tronco na base impedindo-o de tombar, e sob o comando do meu Pai, púnhamos a gambiarra dispersa uniformemente, as bolas maiores na base e as mais pequenas no topo, enquanto a estrela coroava o nosso esforço no final, brilhando na pontinha daquela árvore, que parecia o maior pinheiro do mundo, e o nosso orgulho do Natal.


Mas este orgulho não destronava outro mais importante: a lapinha! A do meu avô ocupava uma parede inteira de uma das divisões da casa, mas a nossa era mais comedida. Passávamos horas a construir casinhas aproveitando o cartão duro das embalagens de medicamentos, a recolher o musgo do cemitério inglês, e a preparar a plantação do trigo nos pequenos cântaros para que as searas despontassem a embelezar o cenário. Neste teatro, a gambiarra branca foi destituída da sua função, a partir do momento em que quase me ia matando de electrocussão, deixando impressas umas marcas de queimadura nas mãos, que ainda hoje persistem.

A primeira coisa a definir era o local da gruta do Menino Jesus, e depois era só encaixar os Reis Magos, o Arcanjo, a aldeia, o rio de algodão, e todos os pastorinhos, casinhas, ovelhinhas e todas as “inhas” do cenário. A maioria das figuras já encarnava uma personagem conhecida e caricaturada em profundas gargalhadas: “Vamos pôr o Sr.João da barraca, aqui ao lado do bar!”; “Ó homem, põe o Padre Rafael ao pé da Igreja, e tira-o da tasca!”, entre outras que aqui não posso revelar...


O cheiro a bolos, margaridas, broas de mel, beijinhos, sonhos, e outras iguarias muito conventuais e pouco convencionais, era uma constante, e todos os dias alguém aparecia para uma visita de Natal, havendo logo lugar a jantar ou almoço. Muitos reconhecidos doentes vinham entregar uma prenda ao senhor doutor, e o peru por vezes era tão grande que tinha de ir a assar no forno da padaria, três números abaixo na mesma rua.

O movimento na cidade era ensurdecedor, e as gentes do campo aproximavam-se da cidade para as visitas de família, e para as compras de última hora. Dão-se muitas lembranças e poucas prendas, porque afinal o Natal é isso mesmo, lembrar-nos de todos sem excepção, não esquecendo nunca as tias, as primas, as madrinhas, e afins! Adorava aquele dia 24, quando a minha mãe enchia diferentes cestos de anonas, peras abacate, bananas, bolos de mel, doces, uma garrafa de uísque, junto com um que outro embrulho, e os homens da casa saíam para distribuir o Natal pela prima Guiomar, Madrinha Natália e Madrinha Henriqueta (que ainda hoje me lembro de ter uma barba rasteirinha..); as primas Lurdes e Cecília (que tinham um presépio com a figura de um Padre a apalpar uma mulher da vida..); e já no fim do recorrido, as eternas meninas do Quebra-Costas: a Igia e a Amélia, cuja cozinha parecia de brinquedo, e onde tudo era pequenino e mimoso. Em todos estes apeadeiros, acontecia sempre o ritual de visitar a lapinha erguida no mesmo local e com o mesmo arranjo, de comer aqueles doces caseiros divinais, de empanturrar-nos com o bolo-de-mel delicioso, e provar os diferentes licores de maracujá, cereja ou frutos secos, que nos iam empapando o sangue na mesma proporção que nos aqueciam os corações. Às minhas Tias da Ribeira Brava era reservado outro dia, com uma cesta reforçada, e quase sempre uns sapatos ou uma saia lhes calhava na rifa, sendo certo e sabido que chegar na hora da missa, era ter que esperar que esta acabasse, e que as bilhardices do adro se actualizassem.


O Natal era isto e muito mais. Um sem-fim de recordações, de vivências, de cores, de cheiros, de aromas, de experiências, de eternas e repetidas fotografias da vida. Lembro e relembro com alegria as tardes do circo, os carrinhos de choque do campo da barca, o algodão doce da feira, os presentes do consultório, as noites do mercado, a missa do galo ouvida sempre no adro, a excitação das entregas do pai Natal, as luzes grandes e coloridas nas árvores, o calhamaço do Diário de Notícias da Madeira no dia 25, as flores “manhãs de páscoa”, as bombas de estalo que eram a banda sonora da época: ratinhos, beijinhos, de garrafa, de barril..; e até os jogos do Marítimo que nessa altura pareciam diferentes, fazendo-se a festa quer houvesse vitória ou derrota.

Milhares de outras simples recordações estão armazenadas em mim, indo e vindo como flashes de uma época, que como outra não há!

É esta a magia do Natal madeirense, único e ímpar, global e acolhedor, mas sobretudo muito familiar, imutável nas suas tradições e festividades. Se me perguntarem o que peço para esta época, respondo-vos:
- Um Natal como o meu!


E porque ainda é Natal na Teoria do Fole: Boas Festas!

sábado, 7 de novembro de 2009

A Volta

A distância é muitas vezes dolorosa e sofredora. Quando nos afastamos e sentimos a falta, nada nos é indiferente. Mas neste caso a distância é apenas física e temporária, sabe-se que terá um principio, meio e já estamos no fim.

Neste longo período arrastado, houve bons e maus momentos convividos, bastas vezes em segredo e em ruidoso mutismo, que contido, ao mesmo tempo tinha de ser gerido em prol de um espírito de grupo, de exemplos dados, e de uma tolerância capaz de conter muitas vezes as tendências aos excesso e aos desabafos extremistas.

A disponibilidade total, a pressão diária de uma rotina de lugares, de pessoas, de situações vulgares e comuns, tornam-se num desgaste à nossa existência. É inimaginável durante cento e vinte dias, todos os dias da semana, vinte e quatro horas por dia, ter de aguentar um ritmo cadente de problemas, situações, relações e muitos arrelios simplórios de reles alminhas, com uma disponibilidade permanente.

A juntar a tudo isto, há as suadas comidas picantes da messe, as ameaças de rockets que nos empurram para os abrigos, as sirenes que nos fazem refugiar aos bunkers, os estropiados que nos chegam sem remédio, as crianças com os cognomes de “danos colaterais”, os atentados que muitas vezes explodem à nossa porta, o olhar vazio e em procura de respostas dos feridos em combate, as impossibilidades de tratamento e impotência médica, a asfixia do claustrofobismo do campo, a distância dos nossos e sua presença constante em nossas lembranças, os uniformes que nos padronizam os estereótipos desgastantes, as rajadas de metralhadora durante a noite que não sabemos de onde vêm e se em nós acabam, os múltiplos estrondos que nos aceleram o coração, a companhia permanente da pistola que nos relembra a nossa primitiva condição, as tempestades de areia que nos nublam a vista, as horas e os dias que se nos transformam em pesadelos de tempo, enfim...

Curiosamente, estes meses serviram de prova de resistência, de tolerância, de demonstração interior de capacidades superiores escondidas, de novas realidades cinematográficas, da valorização de pequenas gigantes coisas, da descoberta de novas competências e novas aptidões, do aperfeiçoamento dessa virtude que é a adaptação ao que não é por escolha nosso.

Qualquer experiência tem os seus pontos que nos fortalecem e nos engrandecem a alma, por muito negativa na sua essência que ela seja. Mesmo na guerra tiramos partido daquilo que é positivo: a camaradagem, a partilha do desconhecido, a nossa camaleónica versatilidade, a tentativa de adaptação saudável ao meio adverso, os mecanismos de compensação inventados, tudo serve para amenizar aquilo que nos está distante e fora de controlo. Ao mesmo tempo, as outras partes tambem crescem, tambem se adaptam à nossa ausência, tambem se independentizam como pessoas e ganham novos reforços positivos do seu “Eu”. Estes novelos físicos que se desenrolam pela distância, voltam-se a enredilhar num aperto mais forte pelo reencontro.

Mas sobretudo a experiência desse sentimento que é nossa pertença na palavra e universal na emoção, que é a saudade. Não se consegue transmitir a emoção de comer bacalhau neste fim de mundo, de sorver um belo copo de tinto, de degustar uma feijoada, uma francesinha, um até real bitoque no nosso aniversário, como se fosse a maior das iguarias gastronómicas. Receber os mimos da família, em géneros e pequenas lembranças que nos fazem voar e flutuar de alegria, os desenhos dos meninos, o vinho escolhido com os chouriços e paios, dão para fazer uma festa e chorar por mais!

Agora tudo isto chegou ao fim, o mau e o menos mau, indo dar lugar ao regresso a tudo aquilo que aos meus olhos é bom: voltar!
Até já.
Mas a teoria do fole continua!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

"O Camólas"

Assim que a noite caía apagando a luz do sol, Camólas descia as escadas de madeira antiga, e abria a pesada porta que dava para uma das ruas estreitas daquele bairro cheio de vida pelo dia. Nunca encontrava ninguém nas escadas, mas provavelmente porque todos desciam à mesma velocidade que ele, pelo que nunca apanhava os da frente, e os que lhe precediam também não lhe punham a vista encima.

A doença de pele não lhe permitia receber os raios de sol desde a infância, sob o perigo de o escaldar que nem um chouriço na brasa. Não conhecia o verdadeiro vermelho forte dos carros de bombeiros, o azul brilhante do Atlântico, o amarelo da Carris, o verde da figueira do quintal, nem tão pouco o cor-de-rosa das cuecas rendilhadas da Deolinda, que secavam desfraldadas ao vento, na corda da roupa do prédio em frente, como se fossem um discreto convite para a rambóia. Apenas conhecia estas cores todas desvirtuadas, mortiças e amareladas, pela luz incandescente dos quartos, ou pelos candeeiros de rua que criavam sombras e circunscreviam espaços de claridade.

A sua pele era branquinha como uma folha de papel, e vestia sempre uma gabardine comprida verde que lhe conferia um ar até algo sinistro. Em criança chamavam-lhe o “pacote gresso”, e apenas saia à rua nos eclipses solares ou nas férias de inverno na Islândia, onde o sol estava sempre em baixo.

Aquela noite era como outra noite qualquer, de um qualquer outro dia de todos os mesmos dias. Mas o calor que se fazia sentir era como se convidasse o povo a uma festa de rua, com sardinha assada e vinho a jorro. Por isso dispensou a gabardine, vestiu os calções curtos de padrão florido, que nunca também tinham visto a luz do dia, e enconjuntou-se com uma camisa de alças amarela que tinha pertencido ao famoso ilusionista “Bambolinetti”. Nunca antes tinha tido tantas partes do corpo assim expostas, mas o calor ainda assim era insuportável.

Quando abriu a tal pesada porta da rua, o ar quente sufocou-lhe os pulmões, e obrigou-o a respirar tão fundo de olhos fechados, e com um esgar facial, que um transeunte que passava gritou antecipando o gesto: “Se me espirras encima, levas na tromba!”.

Saiu saudando toda a gente com quem se cruzava: a Rosa da padaria, o Olavo picheleiro, o mecânico Adolfo, a Micas leiteira a até mesmo o mal-amado bófia Azevedo. Todos andavam na rua a aquela hora pois já tinham fechado os seus estabelecimentos. Só a Charlene – puta de profissão – especada a trabalhar naquele horário, na esquina da Rua Samora com a Travessa da Saudade, levou com a habitual palmada no traseiro: “Ó jóia anda cá ao ourives!”, recebendo o Camólas em troca, mimos de índole diversa e não elogiosa, que visavam a maioria das vezes (e ironicamente...) a sua mãe e restante família...

Costas com costas, à casa do padre Aureliano, estava a melhor boîte do bairro, que o Camólas assiduamente frequentava até a hora do fecho, coincidindo com o desabrochar dos primeiros raios de sol.
Nessa noite quente de verão, entrou como sempre pela porta dos clientes habituais, recebendo um cartão de consumo VIP. Significava que a botelha de uísque que tinha pago na semana anterior, ainda estava na mesma prateleira dos habitué, e que a Marlene do bar lhe tinha dado umas borlas...

Nessa noite acabou com a garrafa, o abafado da gorda solteira do 32 da sua rua, a ginjinha que bebeu de penálti após os brindes do aniversário do caniche da Celeste, e ainda dois cocktails inventados segundo a teoria do fole. À medida que o álcool lhe ia empapando as células do corpo, uma a uma, a sua cabeça rodava como o carrossel da feira do Campo da Barca, não conseguindo sequer quase abrir os olhos. Depois de dançar, dançar, e dançar, como se não houvesse noite seguinte, a sonolência e o torpor começaram a invadir-lhe os comandos cerebrais, pelo que foi “convidado” a sair do estabelecimento comercial. Em primeiro pelo seu estado de embriaguez, e em segundo porque eram 6h da manhã e já só restava o caniche da Celeste amarrado ao balcão.

Assim que saiu encostou-se à parede, deixou-se escorregar e sentou-se no passeio, deixando cair a cabeça entre as pernas. Esteve ali uma hora a destilar ao sabor daquele calor da noite que lhe abria ainda mais os poros, até que os primeiros raios de sol despontaram, e lhe tocaram na pele que nunca antes tinha visto raios gama...Sempre lhe tinham dito os doutores que se o sol lhe tocasse, morreria!

Mas não! Abriu os olhos devagarinho, pôs a mão na testa para os olhos lhe sombrear, e começou a inspeccionar os braços e as pernas nus de roupa. Nada acontecia, não tinha falta de ar, não tinha dores, nem convulsões, nem brotoeja, nem bolhas lhe nasciam na pele!!!!! Estes anos todos enganado, a viver na sombra, no escuro, na fuga do astro-rei que o poderia mitigar, e afinal tudo em vão!

Levantou-se de um ápice, fez o caminho inverso para casa, abriu a tal pesada porta de casa, subiu as escadas encontrando em sentido inverso e pela primeira vez os vizinhos que nunca via, pôs a chave no destrinco, e correu a escancarar os tapassóis da varanda. Foi buscar o melhor divã que tinha, tirou a camisa, e sentou-se confortavelmente reclinado, abraçando os primeiros raios manhã, com um ar de felicidade do tamanho do sol!
Camólas estava curado...!!!

domingo, 11 de outubro de 2009

As Palavras

Dizem que a matemática é o mais próximo que há de Deus, pois os números são artefactos engenhosos, criados pelo homem e para o homem, sem nunca existirem na natureza. Todas as fórmulas, se adicionam, subtraem e multiplicam em complexos arranjos que justificam a ordem das coisas. E tudo isto se torna mais fantástico e esotérico , quando nos apercebemos que os números não existem mesmo, são imaginários, são uma ilusão que nos tenta contingenciar pela ordem, o nosso mundo macro e microscópico.
Os números são omissos na existência da natureza criada por Deus, não são palpáveis. Nem o “3”, nem o “6”, nem sequer o “623”, o que existe sim, são três árvores, seis peixes, seiscentos e vinte e três pães, mas o número em si não cabe na Criação.
E se a matemática é assim, o que serão das palavras! As palavras que nos aproximam e que nos afastam das pessoas, que são tantas vezes causa de equívocos e zangas, mas também reconciliação, reconhecimento e afecto. Se todas têm um significado diferente, como poderemos baralhá-las para que se nos discorra o pensamento pela lógica dos sons e da sua articulação? Do centro da linguagem, numa qualquer área cinzenta, saem os comandos obedecidos pela emoção, que forçam a complexa musculatura a emitir aquilo que nos vai num sítio todavia mais misterioso: a Alma!

Uns falam e discorrem sem nunca nada dizer, outros usam as palavras para se ouvirem a si próprios, outros há que as poupam e logo as atiram de forma rude, emudecendo muitas vezes quem os ouve. Mas sobretudo não há que mal gastá-las com aqueles que não as merecem, ou que delas se apropriam e as usam como se de um eco se tratasse.
Cada uma representa um pensamento e uma ideia única, que não pode ser replicada nem abusada, sob o perigo de desvirtuarmos a fábrica de sonhos do seu autor: o pensamento. Sempre adorei ouvir, escutar, absorver todas as histórias e estórias que se contam nas reuniões familiares e de amigos. Parte da nossa sabedoria é feita de bocados dos outros...
Para falar não é preciso muito, mas para saber fazer-se entender, demonstrar aquilo que se pretende, exige um talento muitas vezes natural e intrínseco, sempre ao sabor dos ventos da gramática. Admiro imenso os artistas da escrita, porque colocam as palavras mudas num arranjo aparentemente irracional, ganhando a força certa com a cadência da leitura. A maneira como conseguem juntar as letras em palavras, e estas em frases, muitas vezes fazem-me ler a mesma frase duas e três vezes, amiúde na tentativa vã dela me apropriar, mas a maioria das vezes apenas pelo simplório prazer de me voltar a espantar com aquela conjugação! Quantas teorias do fole não se teriam espraiado pelas penas da escrita?
De qualquer das maneiras aprecio muito mais os quedos mudos espaços entre as palavras, ou aquelas palavras que se dizem em silêncio, em olhares, gestos simples ou sorrisos francos. O prazer do silêncio é muito maior do que qualquer retórica adjectiva, é inato e carece de explicação. É puro, simples e sereno.
Haverá algo melhor do que apreciar uma paisagem estonteante em silêncio, degustar um bom vinho no silêncio da noite, ou até mesmo sentar-se numa esplanada num dia de verão a ouvir o barulho da azáfama diária, em silêncio..?
Não devemos gastar as palavras com coisas inúteis, não as devemos cansar, não as devemos incomodar com esta mania de lhes delapidar o sentido quando as evocamos repetidamente e em vão. Um silêncio cúmplice ou um silêncio contemplativo, são um bem precioso que devemos saber apreciar e ao mesmo tempo saber partilhar.
Palavras para quê...?
Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer”
MST in “No teu deserto”

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O cangalheiro

Sempre que alguém se fina, lá vem aquela pergunta sacramental: “Então e agora Sr.Dr., o que é que eu tenho de fazer...?”. A resposta também é sempre a mesma: “Não se preocupe, que a agência funerária trata de tudo, agora só precisa ir descansar”. E realmente este é o único malabarismo a fazer, porque a logística é por vezes complexa e deve ser deixada nas mão de quem sabe. Para além disso, e infelizmente, aos próximos não lhes resta pinga de disposição para sequer pensar em como será a urna...

As funerárias são sempre agentes comerciais míticos e fazem parte do subconsciente de qualquer...mortal. Todos iremos lá ter cabimento! Dizem que quando se passa por um carro funerário, nos devemos agachar para que não nos tirem as medidas! E o melhor é mesmo não arriscar, pelo que recomendo que se encolham sempre que os ultrapassarem ou quando tiverem a má fortuna de se cruzarem com um.

As agências funerárias são um bem precioso à humanidade, porque tratam de uma questão de saúde pública, evitam o espalhanço de doenças, e principalmente ocupam-se de uma logística que muitas vezes é dolorosa aos elos próximos.

Geralmente este é um negócio de herança familiar, com todo um saber e conhecimento transmitidos por gerações, e muitas vezes proporcional aos originais nomes comerciais estampados em arco nas montras: “Agência Funerária Irmãos Cadência”; “Agência Funerária Cá Te Espero Pereira”; “Agência Funerária Caixão D´Oiro”, ou até a mais singela “Agência Funerária Levita”, e mesmo a espanhola “Agência Funerária En-Terra”. A maioria deste negócio concentra-se nas imediações dos hospitais, com pequenas lojas, montras pejadas de santos e santas milagreiras, reclames sóbrios, e frases apelativas do tipo: “Descontos ao par”; “Fazemos leasing e abatemos no IRS”; “Tudo incluído, excepto o finado”; e mesmo a vanguardista no conceito “A trabalhar a terra desde 1921...”.

Eu até acho que quem devia comandar os destinos deste país eram os cangalheiros. São um exemplo de organização, de respeito pelo próximo, de apresentação, educação e sobriedade, que tanto agradecemos naquelas circunstâncias. O cangalheiro é amigo, compincha e solícito. Ajuda o cliente a escolher a madeira exótica do caixão, dá a opção de caixão tuning, caixão barbie, caixão caneca, ou até mini-caixotinhos com divisórias e gavetinhas para a guarda dos seus pertences.

Podemos também afirmar, que a língua portuguesa não foi muito generosa na adequação da gramática e fonética aos cangalheiros. Todos sabemos que o calceteiro calceta, o advogado advoga, o condutor conduz, e o massagista massaja. Imaginando, por exemplo, uma reunião de indivíduos num curso de computador sobre a perspectiva do utilizador, onde todos se apresentam, confabulámos a resposta do cangalheiro: “Boa tarde, o meu nome é Alfredo, tenho 32 anos, venho de corroios, como chouriços, e Cangalho”. Para além disso, se lhe deixarmos cair a letra “n”, fica “cagalho”, o que pode parecer um fanhoso, a feiosamente insultar o próximo, no uso de um vernáculo não muito próprio!

Aqui há uns tempos, houve o décimo segundo Congresso Internacional de Cangalheiros, realizado na Finlândia, e onde se debateram assuntos tão importantes como a introdução de música nos féretros aquando dos cortejos (inspiração baiana?), ou a realização de missas gravadas em vários dialectos africanos. A teoria do fole foi o argumento decisivo para pôr fim a esta contenda, e o Japão foi o único país a aprovar a moção, pois já possuía a tecnologia desde há vários anos.
Foi também aprovada a moção de censura à Índia, que teima em embrulhar os finados num lençol e lançá-los aos rio Ganges, e um voto de louvor a Salvador da Baía, onde se festejam os quinados, com vestes brancas e muita alegria candongueira.
Os américas, conseguiram por sua vez, ganhar o prémio inovação, pelas futuristas alterações ao tradicional papel da pequena agência funerária de bairro. Introduziram os velórios por vídeo-conferência, os caterings pré e pós-evento, a manutenção eterna da página facebook, e ainda promoções ocasionais, como a oferta de funeral completo aos familiares directos, no caso de óbito nas primeiras 24h do acontecimento.
Todos estes pressupostos malucos, servem para exorcizar o fim e dar vivas aos princípios, relativizando aquilo que é vida, e aceitando a sua contingência final com a mesma alegria despreocupada e banal.
Só um médico podia falar com esta ligeireza séria...