sábado, 5 de dezembro de 2020

The violent road

 


A nossa equipa tinha chegado há três dias e mal tínhamos tido tempo de desfazer as malas, os chouriços e os vinhos que aconchegariam os nossos apetites. Uma viagem esquisita, um país estranho, uma incerteza de como seria a guerra. Fomos acolhidos pelo Comandante Machado, um homem alto, bem constituído, completamente careca e com uma voz grave e calma, que geria toda a nossa logística e articulação com o hospital francês onde iríamos integrar as diversas equipas e áreas de intervenção.

Naquela tarde, abordou-me no corredor num tom circunspecto e disse calmamente:

-Doc, amanhã temos de ir a Camp Warehouse receber o Ministro da Defesa Português que está de visita aos contingentes nacionais destacados no Afeganistão. O briefingpré-deslocamento será dentro de uma hora.

O modo grave e pausado da voz, inculcava uma tónica dramática na afirmação, isto porque dois dias antes, tinha havido um ataque suicida a um convoy francês naquela mesma estrada, tendo atingido o médico e enfermeiro que ingloriamente morreram. Como quase tudo na guerra, onde muita coisa morre, e se não morre, renasce e transforma-se.

Uma hora em ponto depois, estávamos os dois com o pelotão de Comandos que iria fazer a deslocação. Todos em meio círculo, de frente para um quadro, onde o Tenente Coronel Batuta explicava as posições de cada um:

-Pereira vais no veículo 3, posição 2. Carvalho vais no veículo 3, posição 4. Doc vais no veículo 4, posição 4.

Discretamente debrucei-me sobre o Major e perguntei-lhe:

-Onde é que eu vou afinal senhor Major?

-Vai no 4º veículo da coluna, e sentado atrás do lugar do morto!

-Ah, bom! Senti um arrepio na espinha, mas mantive-me firme!

No dia seguinte, chegámos ao ponto de encontro com o contingente do Exército, já com o colete anti-bala e capacete colocados, e eu acompanhado duma velhinha pistola Walterda segunda guerra mundial que me tinham entregue à chegada a Cabul. Fiquei logo de sobreaviso, porque todos os militares que nos acompanhavam levavam um arsenal de munições enroladas no tronco, pistolas modernas em coldres sofisticados, armas pesadas com mira telescópica e o diabo a quatro. Só em filmes do Rambo!

Os Hummers militares são de uma pesada robustez e literalmente à prova de bala, levando cada um cinco elementos: o condutor e o pendura, dois atrás, e um quinto numa plataforma no meio, de pé, com o tronco e cabeça de fora da abertura no tejadilho do veículo, manobrando a metralhadora para o que desse e viesse. À sua frente tinha um ferro na vertical de um metro e meio, para o proteger dos cabos de aço que muitas vezes os insurgentes colocavam àquela altura, com o objectivo de os degolar em andamento

A partida estava para as 8h15, e rapidamente nos organizamos pelos veículos num nervoso miudinho que me acelerou a vontade de esvaziar a bexiga. Paciência, não havia tempo para isso. 

A coluna arrancou devagar até ao Main Gate, onde vários militares nos saudaram levantando as cancelas e retirando os dispositivos de segurançà nossa passagem. Percebi-os com um ar preocupado e inquieto. Seria misperception

Mal atravessámos as barreiras, os veículos aceleraram como doidos pelas ruas empoeiradas, e um novo mundo se revelou. O caos urbanístico de periferia de cidade de terceiro mundo, casas inacabadas em tijolo, esgotos que corriam ao ar livre, cavalos que puxavam carroças, talhos com carne pendurada onde o manto de moscas escondia os vestígios comestíveis. Era um mergulho na idade média! Os miúdos brincavam nas bermas como se nada fosse, mas à nossa passagem paravam faiscando ódio. Arrepiou-me um, que tenho a certeza me olhou nos olhos enquanto fazia um sinal de degolar com o polegar. Não teria mais de dez anos… Como poderíamos construir outra imagem nestas infâncias, sendo nós os intrusos?

As burkas azuis circulavam em passo rápido, sempre aos pares ou acompanhadas de um elemento masculino que presumo fosse o marido. Não se atreviam a olhar para nós pela janela de rede (deliberadamente de reduzidas dimensões) dos seus mantos, caso contrário todos saberiam para onde estavam a olhar e podiam ser fortemente censuradas. Censura validada publicamente, e que podia incluir vários tipos de abordagem muito agressiva.

A estrada em que seguíamos -Violent Road- tinha esta alcunha porque fazia parte do trajecto inicial de uma estrada que liga Cabul a Jalalabad e detinha na altura o maior número de ataques suicidas do Afeganistão. Naquele troço que percorríamos, tinha sido construído um separador central em cimento, de maneira a impedir que os veículos suicidas no sentido contrário colidissem de frente com a coluna militar. Eu estava sempre atento aos carros e motas, e confesso que quando passávamos  por um automóvel estacionado na berma, instintivamente fechava os olhos e pensava: ”É desta que rebentamos..!!

A nossa coluna avançava célere e sempre com prioridade. Nas rotundas, o primeiro veículo fechava a primeira entrada da direita enquanto os restantes a atravessavam a alta velocidade, adornavam na curva e seguiam em frente, juntando-se o veículo que fez a cobertura, em último. Os homens iam atentos a tudo e davam ordens aos veículos e pessoas que se afastassem. Nesta azáfama e bulício da cidade, muitos eram os peões e carroças que se atravessavam no meio da estrada. O soldado Fonseca, nascido em Paranhos, manobrava a peça de artilharia que sobressaía do tejadilho, gritando aos transeuntes no seu árabe mais universal e genuíno: Sai-me da frente caral@:#%!! A primeira ordem sabia eu era de alerta, a segunda um tiro de aviso, e a terceira um tiro a matar. De vez em quando ele olhava todo contente para baixo e dizia-me tranquilizador: Doc, tá tudo sob controlo! 

Numa alteração ao briefing da véspera, iríamos fazer uma paragem pelo caminho, na base militar Camp Phoenix, para fazer umas comprinhas”… A coluna abrandava porque estávamos próximo, e havia uma série de barreiras que assinalavam a segurança. Parámos, saindo dos veículos para os procedimentos de desarme e o descarregar das munições. Mete em segurança, tira carregador, vê se tem munição, aponta a um canudo saliente do chãotrac trac trac...Optei por fingir que fazia o mesmo com a minha Walter, pois não queria correr o risco de dar um tiro a ninguém sem querer, muito menos a mim próprio, o que seria um pouco humilhante

Aquela base era americana, e os gringos não brincam em serviço quando assumem uma missão. Nunca se quiseram misturar com a logística da NATO, e assumiram com a sua Operation Enduring Freedom toda a cadeia de esforço, desde o fabrico do pão até ao abastecimento dos caças. O ambiente ali era descontraído, com um MacDonaldà entrada, um Pizza-Hut mais à frente e uma Shop com toda a espécie de artigos vindos da América. Agora percebo porque tinham querido ali parar

A calmaria durou pouco e fizemo-nos de novo à estrada com aquele nervoso miudinho, a adrenalina nos píncaros, e a respiração ofegante como quem vê a luz ao fundo do túnel mas não a vê aproximar. Depois de muitos gritos, guinadas, carros atravessados e desta vez nenhum tiro de aviso, chegamos a Camp Warehouse.

Era daqui que Portugal tinha outrora exercido o Comando Regional de Cabul e o que chamava a atenção era o edifício de comando enorme, com o símbolo da república; a messe com talheres de metal e refeições de um compatriota de Salvaterra do Minho e mãe galega; um espaço de jogos, com bilhar, setas e matraquilhos da Anadia; uma igreja improvisada em madeira; e um bar com uma réplica de um eléctrico com vários motivos lisboetas. Um verdadeiro cantinho deste nosso país, onde as forças armadas não descuravam nenhum pormenor para fazer vincar a nossa hospitalidade. Neste caso em terra alheia.

A igreja era espartana, pequena mas acolhedora, com uma cruz onde Cristo figurava em homem sofredor, construído com restos de uma corda de sisal. Não estava ninguém e sentei-me comovido por estar ali. Por pensar que mesmo na guerra, a religião pode trazer-nos paz, tranquilidade e sobretudo a serenidade para criar espaço para o reencontro com nós próprios. No meio do caos e da confusão, é sempre importante ter um tempo para parar e reflectir, para meditar naquilo que verdadeiramente importa na vida.

A recepção ao ministro foi no bar, e nuns breves discursos elogiaram-se as Forças Armadas, os militares e Portugal! Em cada rodada de vinho do Porto se via a descompressão e os olhos cada vez mais brilhantes de todos, de maneira que quando o ministro abalou, já todos cantavam e brindavam como se não houvesse amanhã. O mais real é que poderia não haver amanhã ali, pelo que o melhor seria aproveitar os croquetes, as empadas, o presunto e o vinho do Porto

A jornada chegava ao fim e confesso que a viagem de regresso foi bem mais tranquila. Os mesmo gritos, a mesma rapidez, mas o etanol que nos corria nas veias dissipava esse medo e essa incerteza. Apreciei com outra calma e com outros olhos aquela Cabul destruída, aquele país sem futuro, aquelas mulheres oprimidas, aquela sujidade entranhada em tudo, aquelas crianças sem infância. Acenei a uma, que desta vez retribuiu com um sorriso complacente, como quem tem pena de nós e do nosso destino

Chegáramos à nossa base, sãos e salvos.

Missão cumprida!

Cabul, 6 de Julho 2009


quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Segunda nota 20 em 10


Olá Pedro,

Há datas que devem ser assinaladas, e por vezes há palavras e coisas que devem ser ditas. Como as cartas de antigamente, que em papel de linhas plasmavam no tempo aquilo que muitas vezes se quer eterno.

Ser segundo filho tem sempre a vantagem de já saberes o que vai acontecer, mas tem também o desafio de fazeres o teu caminho próprio.

Estes 10 anos têm sido de uma felicidade imensa por te ter, e de um coração cheio por saber que cresceste feliz e puro. Fizeste tudo no tempo certo, com a maturidade certa da idade, e com a consciência e responsabilidade que nos orgulha.

Agora que começas uma nova escola, novos amigos, novos professores e um percurso mais crescido, parece que a vida vai mudar. Mas deves levar sempre, aquilo que nos ouviste dizer: amor, compaixão, trabalho, responsabilidade, e muita alegria. As descobertas de agora são muito mais giras e desafiantes, e um novo mundo abre-se a cada esquina do tempo. Dá muita atenção a tudo e olha com afinco o que nos rodeia, aproveita a vista para além dos ecrãs, para além do mundo das redes sociais, para além dos olhos dos outros. Desfruta no violino, na música que aprendes, nos espectáculos que assistes, nas viagens que fazes, nos passeios de bicicleta. Aprende o encanto de cada momento.  

Se te deitares de barriga para cima, consegues ver o infinito no céu, se vislumbrares o horizonte consegues ver os limites, se subires uma árvore consegues abraçar o mundo, mas se leres um livro viajas no tempo e no prazer da tua descoberta. Interessa-te, explora, descobre, vibra como nunca com o cheiro de terra molhada, e partilha as coisas de que gostas. Só assim vais poder criar e construir a pouco e pouco a tua história e a tua vida.

No outro dia dizias-me que tinhas tido um sonho. Que um ladrão entrava em casa e dizia que ou levava o teu pai ou matava o teu cão. Escolheste ficar com o pai, mas choraste muito! Ao longo da vida também vais fazer muitas escolhas e muitas decisões que mesmo que te ponham a chorar, têm a mais-valia de terem sido tomadas por ti. Pensa sempre pela tua cabeça e pondera com as opiniões do teu pai e da tua mãe. Ainda tens a sorte de ter um irmão mais velho e sensato que te vai ajudar sempre.

Outra das coisas que temos de ter à medida que vamos crescendo é coragem. Não tenhas nunca medo de nada nem de ninguém. És uma criança com um sentido de justiça tão inato e tão natural, que vais precisar de empenhar toda a tua força e coragem para levares o caminho da verdade mais adiante, e para lutares por um mundo que tu vais querer sempre melhor.

Continua com o teu mundo imaginário, com os teus generais Gervásio, Godofredo e Asdrúbal, que lutam no espaço entre o colchão e a cama, para que derrotem o monstro da água sempre que tomas duche. A nossa imaginação e o nosso imaginário, podem ser uma segunda casa onde sabe bem descansar sempre que nos apetecer.

A tua alegria é contagiante e a boa energia que emanas, fazem de ti um poço de vibrações positivas que não precisam de estímulos nem de lenha extra. Enquanto fores crescendo só precisas de ser autêntico, de ter a tua personalidade, e não precisas de imitar nada nem ninguém. Afasta-te de tudo aquilo que sabes que faz mal, dos vícios, e sobretudo aprende a saber dizer não.

O sucesso faz-se subindo cada degrau da nossa escada interior, e independentemente do patamar que alcançarmos, uma das máximas é que estejamos bem e felizes. Tens tudo para isso, e com trabalho e foco naquilo que pretendes, irás subir até aos teus sonhos.

Não te esqueças que vamos estar sempre aqui para te ajudar, para te apoiar, mesmo que te enganes no caminho e tenhas que voltar atrás para continuar a correr. Vamos abraçar-te sempre, vamos estar sempre juntinho do teu coração, e vamos ficar para sempre no teu pensamento.

Só te desejamos uma coisa: que sejas muito feliz!!

Um beijinho deste pai que te ama infinitos!


quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O Avô Francisco


As notícias ouviam-se sempre na BBC, num rádio castanho-escuro, onde o gato se costumava enroscar ao zoar das válvulas quando aqueciam. Emitia um som rouco, com um genérico instrumental e a voz conhecida do locutor, descrevendo o que tinha acontecido nessa semana na guerra. Os alemães continuavam a ganhar terreno e o seu desejo expansionista ainda não era contrariado pelos Aliados, por quem todos torciam nesta zona.

Apesar de tudo, naquela vila perdida no meio do Atlântico, sobrevivia-se às consequências da guerra e a todas as contingências que ela acarretava. Os bens essenciais importados da metrópole, não chegavam sequer para abastecer meio mês de carregamentos do cargueiro “Rovuma”. 

Aproximava-se a época do Natal, e nesta altura a Ribeira Brava engalanava-se com arcos de verdura pelas ruas da baixa, fitas coloridas enroladas nos postes e largos panos brancos com a cruz de Cristo encimada. Pequenas luzes cintilavam durante a noite, distribuídas apenas pelas árvores do átrio da igreja e da rua principal, uma vez que o conflito obrigava a restrições de toda a ordem.

A casa do avô Francisco ficava num dos topos do vale desfrutando de uma vista desafogada da vila que ainda se localiza à beira mar, na desembocadura de uma ribeira que no inverno ganha a fúria da torrente da Serra D’Água. Era proprietário de uma fábrica de pirotecnia, e naquela época o trabalho era muito intenso, uma vez que os festejos de Natal e o Fim do ano aumentavam a procura de barris, estralinhos, ratinhos, vulcões de lava, bombas de garrafa, bengalas douradas e outro material de maior calibre para o fogo a sério. O fabrico artesanal era ainda o habitual, sendo a mescla de explosivos doseada com pesos e medidas muito rigorosas. Apesar desta indústria herdada do seu pai, o avô Francisco trabalhava na alfândega da Ribeira Brava, mandando e desmandando tudo aquilo que era encomenda e produto importado via marítima.

A guerra que grassava na Europa e à qual Portugal estava apartado por um Salazar paternalista, trouxe muitas carências e necessidades, a uma vila afastada de uma capital e duma ilha já de si longe de tudo e mais alguma coisa. Ainda para mais naquela época natalícia, em que o consumo aumentava e as pessoas gostavam de trocar prendas e preparar as iguarias típicas com os melhores ingredientes.

O Natal perspectivava-se magro, apenas com uns bolos de mel e umas broas extra, mais uma ou outra lembrança virada para as crianças. Em casa do avô Francisco, a época era vivida com intensidade e muita preparação, estando inclusive um quarto da casa reservado à construção da lapinha, com a gruta de Belém no centro e uma extensa construção em papel pardo escurecido a imitar a rocha, por onde se espalhavam as figuras dos pastores, as casinhas de cartão mais pequenas no cimo, a aldeia com a igreja e o largo, o riacho em algodão, as prateleiras com as searinhas crescidas do trigo plantado há uma semana. Toda a gente vinha apreciar aquela obra de arte na casa do Sr.Araújo.


A avó Felicidade era funcionária dos Correios Postais da Ribeira Brava, e todos os dias recebia notícias por telegrama, com anunciadas desgraças impostas pelo ameaçador império nazi. Expedita em comunicação morse, muitas mensagens encriptadas enviou, sabe-se lá a quem e com que motivo… O traço, ponto e traço saía-lhe no automático, e recebia os mesmos intervalos, que reescrevia num papel timbrado em letras, pontos e vírgulas. 

Neste entretanto, o império alemão continuava a conquista continental e a sua Armada navegava no Atlântico com um poderoso dispositivo bélico. Os famosos submarinos U-Boolt serviam a Marinha Alemã, na altura designada de Kriegsmarine. Afundavam navios Aliados carregados de munições e abastecimentos, através de um eficaz sistema de submersão e poderosos torpedos lançados da profundidade. Embora não lhes estivesse autorizada a navegação em águas territoriais portuguesas, muitas vezes as atravessavam e nela navegavam sem pudor, pois a Marinha Portuguesa não tinha a tecnologia suficiente ou sequer os meios de os detectar.

Naquela antevéspera do dia de Natal, o avô Francisco saiu a meio da noite disposto a trabalhar para um Natal diferente. Vestiu-se com o uniforme de trabalho, e pé-ante-pé saiu pela porta de casa fechando-a sem o mínimo barulho. Desceu até a vila, e no cais esperavam-no dois homens num bote, com várias caixas de verdura, fruta e meia dúzia de garrafas de vinho Madeira. O mar estava chão, e foi fácil aos dois embarcadeiros afastarem-se noite dentro e mar fora. Já só viam a silhueta assustadora da ilha, quando o avô Francisco conferiu o rumo e fez três sinais de luzes com uma potente lanterna, ao meio do oceano. Tiveram três outros toques luminosos de resposta, ao mesmo tempo que puderam ver à luz do luar, emergir do fundo oceano um imponente submarino alemão, que para seus espantos apenas criou uma pequena ondulação que oscilou o bote. A escotilha abriu-se num escorrer de água, e de lá um graduado aflorou com uma bandeira branca em sinal de paz. Com ele trazia umas caixas, que não eram de fruta ou verdura..O avô Francisco sorriu, e num alemão muito básico cumprimentou o oficial alemão, ao mesmo tempo que se colocavam a bombordo para amarar. A troca de caixotes foi muito rápida, e tão depressa o submarino submergiu no negro das águas assim como tinha emergido, começando os homens a remar felizes rumo a terra.
Ao chegarem a bom porto, ainda de noite, certificaram-se que ninguém estaria espiando e dividiram os conteúdos dos caixotes pelos três. 

O avô Francisco subiu contente a estrada, e antes de entrar em casa descalçou os sapatos, abrindo a porta da sala com o menor ruído possível. Pousou a caixa em cima da mesa e abriu-a com os olhos cintilantes. De lá tirou um sortido de chocolates, amêndoas, patés de beluga, duas garrafas de champanhe austríaco, e um carrinho de bombeiros em miniatura. Apesar de ser pelos Aliados na guerra, aquele negócio de troca com os nazis não o chocava e achava que seria uma permuta justa: bens frescos aos alemães, que retribuiriam com doces e iguarias que de outra forma não encontrariam na ilha naquela época. 

Nessa manhã, acordaram e foram dar com esta inesperada prenda de Natal junto ao presépio! Um cantinho de aconchego num mundo em guerra, onde por um momento se esqueceram das privações e celebraram o simbolismo do Natal!


Boas Festas a todos e muita Saúde! 

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Valente Valentim

Naquela época, todas as dificuldades sabiam a vitórias ultrapassadas, como se no mundo real tudo de mau se esquecesse. Aquela criança não tinha sido programada, nem desejada, nem sequer conscientemente planeada sob a forma razoável de um futuro organizado. Aconteceu porque eram casados e assim tinha de ser, como tinha sido com os seus pais, avós, bisavós e por aí a fora.

Já antes de nascer se mexia e remexia na barriga da mãe. 
Esta criança vai ser um furacão quando sair! Com esta genica logo tão de jovem, isto promete!
Desde bébé que tinha uma energia física muito expressiva e fluente, como quem fala através do movimento. 

Revelava um controlo do corpo como ninguém, aliado a uma sensibilidade para o belo e artístico, que naquela época e naquele Portugal atrasado só poderia ser  visto como excentricidade.
Gostava de rodopiar e sentir o ar fresco na cara, de parafrasear no corpo aquilo que sentia quando ouvia música, de espalhar a sua alma no físico do espaço.
-Sinto uma alegria tão grande quando danço mãe!

À revelia dos pais, tinha aulas de ballet num dos estúdios do Teatro Nacional D.Maria, dadas por um professor anti-regime, que via naquele rapaz uma lufada de sangue inspirador. Deu-lhe técnica, disciplina, espaço criativo e sobretudo deu-lhe a vontade de querer lutar por algo que queria conquistar.

A decisão não foi fácil, mas com 16 anos tinha de escapar de um mundo que o sufocava e lhe tolhia os braços do livre pensamento. Queria ser bailarino, mas a sua homosexualidade não era aceite num Portugal de atrasados e de estreita visão, pelo que fugiu deixando em casa uma carta de desabafo e memórias. 

A Espanha de Franco também não seria mais aberta, e nesse trilho trabalhou em bares, danceterias, cabarets e afins, custeando a sua própria sobrevivência. Esse caminho que procurava sem rumo aparente, mas decididamente pela arte da dança. 
Estalava a sangrenta guerra civil espanhola, e foi preso pela polícia política. Uma rocambolesca fuga e um esconderijo num convento, onde se travestiu de freira, permitiu livrar-se de uma Espanha que entretanto caminharia para um abismo fascista e totalitário. 

Chegaria finalmente à Europa moderna, a Europa que dava cartas naquela época, e que era um exemplo de prosperidade e pensamento livre como ele. Sem saber bem como, desembarcou na Alemanha nazi, onde teve logo emprego no teatro Ópera de Estugarda, entrando nas melhores peças com destaque de solista. Muito ligado ao regime, depressa se tornou uma figura de relevo percorrendo o país em tournés de sucesso, e tendo inclusivé sido condecorado pelo próprio Führer com a medalha de Mérito artístico. Convivia com as altas esferas da elite cultural e estatal, privando por várias vezes com Marlene Dietrich em luxuosas festas dadas em faustosos palácios, amiúde frequentadas por Hitler. Todo um sonho realizado, toda uma vida que saltava agora para os palcos, todo o fulgor das palmas e dos aplausos que lhe reconheciam a arte da dança.

Tudo corria bem e por isso não se sabe porque voltou. Talvez porque fugisse novamente de um conflito..
Quando aterrou nessa Lisboa pacata que detinha a neutralidade da guerra, chegou com todo o glamour e toda a vontade de exuberar o mundo artístico de uma sociedade que gostaria fosse de plumas, lantejoulas e vestidos garridos com personalidade e vida própria.

Naquela altura, a PIDE não perdoava, e depressa os vizinhos se encarregaram de delatar o lindo bailarino da Alemanha que tinha vindo contaminar a tradição conservadora de um país disciplinado e imperial. Prenderam-no, abusaram, torturaram-no só porque não eram capazes de entrar na sua cabeça e assim perceberem que uma mente brilhante não precisa ficar refém do seu corpo, das fronteiras dos outros e muito menos da estreiteza da visão humanista. O que constava da sua ficha de arresto era um motivo único:”homosexualidade”..

Foi internado no Hospital Miguel Bombarda em 1939, e só 40 anos mais tarde viria de lá sair. Os Psiquiatras apodaram-no com vários epítetos diagnósticos, mas nenhum se afigurava como um rótulo digno para tão exuberante personagem.
Certo dia, um médico  perguntou-lhe o que desejava para o futuro.
Respondeu simplesmente que gostaria de nascer de novo em duzentos anos, não sentir uma redoma de vidro permanente, não sentir a prisão do seu pensamento. Ser ele próprio, sem disfarces.

Passou pela cela do isolamento, pela ala dos violentos, pela enfermaria dos esquizofrénicos, e até lhe fizeram uma lobotomia pré-frontal, tão em voga naqueles tempos. Achavam que tirando um pouco do cérebro lhe roubariam a alma.
Um espírito com asas tinha sido manietado da sua própria identidade, do seu próprio eu, aprisionado por uma barreira de uma sociedade arcaica no pensamento e na liberdade.

Vestia-se todos os dias como se fosse debutar, e já se tinha acostumado à vida do hospício. A rotina diária tornava-se fácil, se cumprisse todas as ordens e se não rejeitasse a medicação dada pelos dedicados enfermeiros, alcançando o seu objectivo de não ser muito importunado. Acabou por fazer daquela a sua casa.

Pelos seus dotes de costura e conhecimentos cenográficos, foi mais tarde responsável pelas peças de teatro, das festas de natal, dos saraus e de tudo o que tinha a ver com a própria actividade lúdica da instituição. Fazia os figurinos, ensaiava os malucos, construía os cenários, dava os ensaios, sendo nisso que dedicou grande parte da sua reclusão. 
Dentro de muros, guardou os seus rasgos de genialidade em troca da sobrevivência num local onde pelo menos conseguia ter o seu espaço. Uma vida num cordão de segurança, que o escondia da vergonha de uma sociedade incapaz de gerir as suas próprias pessoas.

Passou mais de uma vida inteira sonegado a uma instituição mental sem nunca perceber o porquê. Sem nunca ter tido oportunidade de se afirmar como era, como se sentia, como desejava, como queria viver a vida. Nunca teve a visita de um familiar, de um amigo, de alguém que pudesse estar ali com ele e testemunhar que também ele era gente. E que não estava errado. Que nunca tinha estado errado.

A 3 de fevereiro de 1986 teve alta com o resultado melhorado
A 3 de fevereiro foi declarado o óbito e foi a enterrar no cemitério de Benfica.

Ainda hoje lhe devemos uma explicação.
Ainda hoje não lhe pedimos desculpa…


In memorium de Valentim de Barros

domingo, 14 de abril de 2019

O Bandeiras


Naquele princípio de século, Machico era uma pacata vila onde viviam apenas 5000 habitantes distribuídos pelo centro e serranias próximas. Aureliano era o comerciante local que assegurava todo o material de cozinha, limpeza, bric-à-brac, utensílios para a agricultura, e até uma pequena farmácia funcionava como retrosaria de largo espectro, onde no fundo tudo se encontrava. Desde o alfinete até aos sacos de cimento.
Semanalmente e por via terrestre, trazia o abastecimento do porto do Funchal, sítio onde descarregavam os verdadeiros cargueiros cheios de material oriundo da longínqua metrópole.
Tinha herdado aquela loja do pai, mas foi por sua iniciativa que desenvolveu esta capacidade de oferecer todo o leque de material que vendia.

Aureliano tinha casado há pouco tempo com Maria das Neves Spínola, numa cerimónia que reuniu as maiores figuras da vila, desde o governador ao padre, o chefe de polícia e a parteira local. Vivia bem, e sem preocupações, com o sonho de constituir prole e construir uma unidade transgeracional que seguisse uma lógica de família tradicional, e ao mesmo tempo empreendedora. 
Ficaram muito felizes quando Maria das Neves soube estar de esperanças! Ele de peito inchado, atendia os clientes com uma alegria e orgulho inusitado, fazendo previsões para aquele filho que sempre desejara e que seria o primeiro de uma descendência com os olhos no futuro:
-Já lhe bilhardei que a minha Maria tá de menino?
A gestação correu sem percalços, e da barriga empinada as experientes parteiras aventavam mais a hipótese de uma menina que um menino, o que não desanimava Aureliano:
-Tem de ser um buzico, que é pra ficar o comandante herdeiro deste império!

Nesse dia as dores eram mais que muitas, e as contracções iam e vinham como se apertos lancinantes lhe esmagassem a barriga. Parece que era a hora! Toalhas limpas, água aquecida, uma cama confortável, e a parteira a chegar da Serra D’Água…
Força, força, força! Sangue, suor, lágrimas e gritos….e lá saiu uma bela criança, roliça e viçosa, mas….sem apêndice macholas! Quando deram a notícia a Aureliano, que esperava cá fora com uma garrafa de Madeira velho e bolo de mel, a sua reacção foi de esbugalhado espanto, mas  depressa se enterneceu num sorriso comovente quando a colheu nos braços.
Os dias passavam e cada vez gostava mais da sua princesinha, que crescia a olhos vistos, só e apenas com o leite materno. Como se aquelas tetas tivessem sido construídas para central energética desde sempre!

Aureliano não desistia, claro, da ideia do menino. Tinham-lhe dito que se fosse numa lua cheia com o grasnar de um pato na altura do clímax, a obra estava encomendada! 
Depressa se deu dia de lua cheia, e Aureliano contratou o Pelicas da barbearia para que este se pusesse à janela nessa noite, a apertar o pato do lago municipal de 15 em 15 minutos. Assim foi que em pleno acto, enquanto Aureliano cumpria a sua missão de espadachim introdutor, de quarto em quarto de hora se ouvia o roaz do bicho emprestado ao lago do município. No final, caiu refastelado de barriga para cima, enquanto a mulher confirmava ainda em fase de calores ruborais, se aquele pato tinha sido contratado para a cronometragem da coisa…

Parece que a técnica tinha dado resultado, porque Maria das Neves estava novamente de esperanças. Aí o júbilo foi redobrado, porque a técnica aplicada tinha tido sucesso, e até o Pelicas andava todo inchado sentindo-se de certa forma parte integrante daquela concepção.

No dia previsto, lá mandaram vir a parteira da cidade, não fosse haver algum azar maior e: 
Força, força, força. Sangue, suor, lágrimas e gritos e…..mais uma menina!!!
Desta vez não esmoreceu e deu-lhe o nome de Candelária, em homenagem a uma turista alemã que havia conhecido fortuitamente numa das incursões à cidade...

Como não havia duas sem três, achou que à terceira era de vez! Comprou uma revista especializada em concepção e fecundação holística, tendo encontrado no capítulo quarto um artigo com o título “How to conceive boys with success!” Na linha 23 descrevia que no momento do ocaso matrimonial, o macho deveria coadunar as palmas em ritmo de tercina com três urras à rainha Vitória da Capadócia. Aureliano achou um pouco estranho, mas tal era o desejo de ter um varão que estava disposto a tudo.
Nessa noite introduziu-se sorrateiramente na cama enquanto Maria das Neves já aquecia os lençóis, começando o ritual de ignição a que a respectiva não se furtou. Enquanto cavalgava garbosamente, Aureliano sentiu também uns calores como quem já está próximo de atingir o expoente máximo. Em refulgente êxtase e de olhos revirados, começou de súbito a bater palminhas em tercina e urrou orgulhoso três vivas à rainha Vitória da Capadócia!
Teve como resposta imediata de Maria das Neves um colérico:
-Quem era essa tal rameira da capadócia!!!?
Mesmo assim a semente germinou e outra vez nove meses depois: Força, força, força! Sangue, suor, lágrimas e gritos e….mais uma! Desta feita Mariana...

Aureliano não desistia e achou que a conjugação de Marte com Saturno, junto com a primeira chuva de setembro resolveria o caso, mas nem o dilúvio que se abateu sobre Machico conseguiu dar força à criação do rapaz, somando então 4 raparigas roliças e bem mantidas.
Força,força, força! Sangue, suor, lágrimas e gritos e….uma Guilhermina!

-Não desanimes compadre! Vais ver que à quinta é que é…
-Nã sei homem…isto parece que se tem de fazer umas rezas…

Lembrou-se que se calhar era melhor uma estocada plena de ânimo, do que uma insistência que pudesse fraquejar o zig zag dos seus soldadinhos. Naquele mês poupou-se dos prazeres da carne, enquanto sentia os seus reservatórios encherem-se dia após dia. No fim já andava de pernas arqueadas, pois o volume lhe molestava os movimentos mais rápidos.
Nessa noite pensou que ia rebentar e Maria das Neves também, mas pelo menos foi eficaz! Era desta!
Mais nove meses de espera e uma barriga cada vez mais proeminente, quando rebentaram as águas de Maria das Neves. A outra parteira que tinha vindo no horário do Funchal só para garantir um bom parto, e que se preparava para acolher o dito rebento, acolheu não um menino, mas sim duas meninas de uma vez só!!! Gravidez gemelar! Que raio de pontaria…

Já somava 7 meninas na sua prole e de tudo tinha feito para cumprir o sonho de ter um varão que comandasse todo o império de loiças e afins.
Mesmo assim não baixou os braços e foi falar com o Pároco Rufino. Pensou que apesar deste não saber nada das coisas do amor, talvez pudesse interceder junto de Deus para que lhe cedesse a graça. Afinal de contas era um bom cristão e frequentador das missas de domingo.
-Diga-me senhor Pároco, apesar de eu saber que o senhor não sabe do que estou a falar fisicamente, como posso ter esta bênção…?
-Olha meu filho, Deus dealba nas linhas do ignómito falciparum tudo o que se revela com a destreza celestial da profícua descendência geracional. Esse desiderato, é concedido por aqueles que ornamentam palacianamente a casa do Senhor, com peças áureas ou partilhas pecuniárias de soberba jactância singular.
Abriu ligeiramente a boca de espanto e respondeu a tão enigmático comentário:
-Mas, mas….é pra ir prá frente ou é para me ir embora…?
-Não meu filho, creio que com uma boa esmola à igreja isso se resolve…

Ficou a pensar nisso e pareceu-lhe que o pároco tinha razão. Talvez Deus estivesse a fazer troça dele e só lhe mandasse filhas. Sabe-se que Deus é caprichoso com as mulheres, e quem sabe tinha uma taxa alfandegária para pôr rapazes cá na terra!
Adormeceu com este pensamento e a meio da noite acordou em sobressalto: levantou-se e fez um desenho daquilo que pretendia. 
De manhã nem tomou o pequeno almoço e correu para a joalharia Esmeralda, com o desenho que tinha feito quase em sonambulismo: um pirilau de ouro, ancorado em dois tomatinhos de prata cravejados a brilhantes!
O joalheiro achou o pedido estranho e pensou para ele que havia brinquedos mais baratos, mas como a encomenda era bem paga, não se ralou.

Uma semana depois, já estava tudo finalizado e a obra podia ser levantada.
Aureliano nem a desembrulhou, meteu-a debaixo do braço pois já a tinha pago-para não haver derrapagem no orçamento-e correu direcção à igreja de encontro ao pároco:
-Aqui tem senhor padre. A minha contribuição para a igreja…
O padre tomou-a nos braços e descascou-lhe o papel…
Apareceu então um marsápio todo em ouro maciço, não em posição de flacidez económica, mas apontando ao céu como já dizia a leitura de São Jorge aos Coríntios de Efésius. A base era constituída por dois tomatinhos de prata túrgida que assentavam numa sólida placa de bronze, com o inscrito “Para uma dádiva de força”.
O padre gaguejou enquanto a sua face se ruborizava:
-Nunca tivemos uma peça tão…tão…tão…rica nesta paróquia…

Aureliano estava duplamente inchado de contente, pois a obra de arte foi acolhida na missa de domingo, exposta durante todo o cerimonial em cima da mesa do altar, sendo cobiçada e atraindo o olhar fixo das beatas de todo o Machico.
Uma vez finda a missa, Aureliano sentia-se confiante e crente de que desta vez iria resultar e todas as rezas que culminaram com tão singular ofertório dariam o fruto mesmo desejado e procurado.
Nessa noite sentia-se feliz e vigoroso, pelo que Maria das Neves ao fim de duas horas o colocou fora do quarto pois precisava de descanso…
Com a primeira falha do ciclo e com o aumento da barriga de novo, Aureliano estava convencido que era desta! 

Nove meses novamente, Força, Força, Força! Sangue, suor, lágrimas e gritos e…..BUM! Finalmente um rapazolas, ainda por cima bem apetrechado!!!
Aureliano, não cabia em si de contente correndo pelas ruas aos gritos:
-É varao!É varao!É varão!!!

Com esta remessa de Deus, Aureliano decidiu que tinha de fazer uma festa e encomendou a fanfarra de Câmara de Lobos, uma espetada monumental, dez pipos de vinho, uma procissão com sete andores, e engalanou Machico com bandeiras de 3 em 3 metros por todas as ruas e ruelas. Nunca se tinha visto tanta bandeira por metro quadrado! Tantas e tantas bandeiras eram, que ainda hoje Aurelianinho é conhecido como o “Aurelianinho das Bandeiras”….!
O povo rezou, cantou, bebeu e comeu durante três folgados dias, rejubilando-se com a vinda do descendente tão ansiosamente aguardado.
Aureliano era um homem feliz e realizado!
A prova de que quem insiste e não desiste, colhe os frutos do amor…

Um abraço..





quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

O Castaño

Funcionaba como un enclave dentro da cidade, un bastión do interior dunha Galicia que hai moito fora esquecida por unha España preocupada co que lle traía riqueza e notoriedade, como se a riqueza non se atopase nas súas xentes, nas súas diversidades, na súa alma. Vigo comezou a  ser un importante porto pesqueiro de Europa nos anos 80, pero ata alí era só unha pequena cidade de provincia con algo de cosmopolita. Un dos seus barrios típicos situábase entre a praia éo centro histórico, algo outsider da Gran Vía, pero só a un paso do seu frenesí. Era case como unha aldea gaulesa dos libros de Astérix, onde os aldeáns se tiñan fixado hai unha ou dúas xeracións. 

Varios personaxes aquí habitaban, como a portuguesa Dona Rosa, viúva moi cedo e con un mal feitio do demo, que puña o coñecido incha-beiços nas uvas que crecían na parreira da casa, descubrindo de inmediato que mozo se tinha aventurado a arrincar os acios pequenos e doces da uva americana. 

O bar do Castaño, tiña xogos de azar tipo ruleta, xeados de xeo corado, gomas elásticas rosa interminables, e servía vasos de viño barato a aqueles que alí moraban e os que estaban de paso para o barrio social da Salgueira. Había tamén o barzito da Ramona, que servía tapas e vasos de cidra, situado na pequena rúa principal. 
O marido traballaba nas obras e tiña dous fillos grandes e gordos, pero cun cerebro que non facía xustiza ao tamaño da superficie corporal. Cos resultados escolares que tiñan, rapidamente deixaron a escola e se entregaron a seguir os pasos do pai. 
A irmá máis vella, sufrira unha anoxia cerebral no peri parto que a deixou vesga, deficiente dun brazo, e por castigo divino ou herdanza xenética, menos afortunada aínda en relación á beleza física. Poldita era boa rapariga e moito trabalhadeira, pero os estudos nunca foron o seu forte, polo que axiña se converteu á lide da casa. 
Pero nestas cousas do amor non hai quen faga previsións que sexan sempre acertadas, e neste caso ata saíu a terminación a Poldita. 
O corentón de alcume Algarrobo tampouco era abonado de beleza, tiña unha barriga de cervexa e adiposidade acumulada, un coeficiente intelectual embebido en etanol, pero morría de amores por Poldita, aínda sendo el máis vello dez anos do que ela. 
Consumía de mañá, pola tarde e ao fin da tarde, pero de cando en cando se lembraba de como chegaba a casa, recordando só a imaxe do lampião de rúa que o viño transformaba en dous.

Ese día estaba empeñado en que ía pedídela en casamento, porque cumprirá xa os 42 anos de idade, xa traballaba e era capaz de soster unha familia. Ainda encima, o seu mellor amigo fuxira cunha colombiana vêr o por do sol debaixo dun coqueiro algures na praia de Fuentenilla en México. 

Entrou decidido pola mañá no bar, viu Poldita, encheu o peito de aire cun chorrilho de palabras, pero o que saíu foi unha dose dobre de Martini. Repetiu a receita ao xantar e durante toda a tarde, pero as palabras nesa hora xa non se articulaban, parecendo máis un discurso de Esperanto arrastrado, que unha declaración de compromiso. Ás seis da tarde o bar fechaba portas, polo que ás cinco para as seis, e vendo xa dúas saídas na súa mira, pechou un dos ollos e comezou a andar moi direitinho levantando as pernas para non tropezar. Tivo mala sorte porque non acertou na porta correcta esmurrando-se a el mesmo, e deu unha pirueta mesmo a tempo de caer amparado nos brazos de Poldita. Cando abriu os ollos, viu-se ao seu colo, sorriu, e de palpebras semicerradas suspirou: 
-Te quieres casar conmigo nena ..? 
Todos quedaron suspensos da resposta, pero cando dixo "si", unha inmensa alegría invadiu os comensais que ergueron os vasos e brindaron nun só amplo sorriso desdentado. Deste xeito só se estragaba unha familia ... 

Tiveron dous fillos xemelgos, lindos e perfectos, o que demostra que a natureza é de unha xenerosidade e xustiza a toda proba. Vivían de forma honesta, traballaban como podían, eo Algarrobo continuaba a servir de vasilhame diario ao viño servido na tasca da Ramona. Chegaba a casa todos os días embriagado, e metía-se debaixo dos sabas no maior silencio que podía, tentando en balde facer desaparecer aquela barriga con proporción de lontra. Poldita sentía o bafo a etanol e dáballe logo unha patada na canela que era a única zona non almofadada que podia aleijar. 

Nun deses días Algarrobo comprou unha cautela do El Gordo, deixouse a na entrada por debaixo dunha imaxe do San Roque a ver se daba sorte, e saíu á tasca. 
Á hora dos números andaren á roda xa a súa cabeza xiraba en sentido contrario pero á mesma velocidade do Albariño que tiña bebido. 
Quizais fose iso, ou do cocido galego que enfardara ao xantar, pero a pronunciada pança comezou a gorgolejar ea facer uns ruídos de mecánica entupidos. Tivo que ir a correr para a latrina, onde unha sinfonía de acordes guturais esvaziavam o home daquelas impurezas. Nin sequera asistiu á transmisión dos números en directo, onde todo o país puña a súas fantasías de gañar un sustento para a vida. 
-El doscientosveinticuatromilnovecientosuuuno
Aínda escoitou a radio de lonxe. Nisto, entra esbaforida Poldita coa cautela na man eo seu ollar vesgo tamén de alegría: 
Gañamos, Gañamos

Apuntaron todos cabisbaixos á latrina onde estaba Algarrobo sentado no trono, pantalóns polos nocellos, sorriso conxelado na cara e cianosado do ataque ás coronarias que se lle entupiram, tamaña era a conmoción. O 092 foi máis rápido que unha bala, e cando chegaron xa estaba o Toñito "Habichuela" facendo compresións no peito da vítima en parada, como vira naquel filme no cine Olimpia. Case morreu da parada, pero o que lle parara hai moito tempo fora o cerebro. 

Despois daquel susto decidiu que era un home novo e coa carteira rechea, comprou sete traxes brancos con zapatos cor marfil a condizer, unha parabólica, un asador que veu de Arxentina, e un piano de parede porque quedaba ben na sala. 
Cambiou o seu pensamento, e xunto con Poldita insistiu en manter a memoria do pasado, asumindo en parella que debían compartir cos outros o que a propia comunidade lles dera. Compraron unha radio á D.Rosa, ofreceron un parque infantil á comunidade, doaron a bancada do Castaño Fútbol Club, e foron nomeados os festeiros da romaría de agosto. 
A vida cambiou e cambiou para sempre. 

Aquel enclave galego daba unha lección ao mundo, unha lección de reparto e de recoñecemento de que somos unha súmula de aquilo que vivimos e con quen convivimos!

Aupa Castaño !!

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Trepo


Vivia em Arroios desde que tinha chegado a Lisboa. Ali foi parar quando desembarcou num país que pouco se parou no seu passaporte. Abriram, olharam para a fotografia quadriculada, confirmaram as feições, carimbo vermelho da República, e nem um obrigado. Como autómatos, limitaram-se a reconhecer o trâmite da legalidade.

Arranjou um quarto numa zona onde os gemidos faziam parte da venda ambulante de carícias de adultos, e onde homens compravam um cantinho de amor. Começou por trabalhar nas obras que lhe davam bom sustento para manter a vida de homem vulgar, gastando em tabaco, bebida e nas vizinhas dos gemidos. 

Depressa resolveu mudar a vida muito vulgar, e começou por lavar pratos no restaurante do senhor Abel. Ficava na baixa, e era um daqueles estabelecimentos em que os empregados se vestiam de calça preta, camisa branca, colete preto e lacinho à moda francesa. Vinicius, como estava sempre a lavar pratos, espreitava quando podia pela janela da cozinha para a sala cheia de veludos e cetins, imaginando-se vestido de lacinho dourado a comandar a sua tropa de empregados de mesa.

Apesar de naquela altura se começar a sentir muito cansado ao longo do dia e das semanas, com febres que iam e vinham, começou a habituar-se a que aquilo fosse normal. Ao fim de alguns meses passou-lhe, e embora o seu cérebro tivesse ficado mais lento sem perceber porquê, até foi promovido para ajudante de cozinha categoria B. Isso implicava que teria de transportar todos os pedidos recém-feitos para o famoso balcão de recolha dos empregados de mesa. Aí começou a perceber que a sua grande mais valia eram os pratos quentes e todos os tachos com uma temperatura acima da média. Enquanto todos os outros ficavam a soprar nos dedos com o escaldão, Vinicius pegava em tudo sem o menor esgar de dor! Parecia o super-herói das travessas!

Este pormenor, fez com que o chefe de sala reparasse nele e na sua performance, pelo que num mês passou para a sala de refeições. Aquele foi um dos dias mais felizes da sua vida, se não contarmos com o dia em que o seu pai o levou ao futebol. 
Recebeu a calça preta, o colete preto, a camisa branca imaculada e o famoso lacinho preto, juntamente com umas notas extra para comprar uns sapatos pretos que se moldassem ao pé. Ficou tão contente que naquela noite arranjou não uma, mas duas companheiras de gemidos que o deixaram literalmente de rastos. Já não era tão novo assim e desde que a mulher falecera de tuberculose ainda jovem, a sua vida de amores fazia-se por pagamentos.

O restaurante recebia clientes da alta sociedade e era conotado com o partido no poder, pelo que depois de umas pequenas instruções de como servir e de como fazer um pouco de etiqueta com os comensais, depressa se tornou num eficiente empregado. O emigrante tinha dourado a sua pílula de sucesso, e ganhou até um tique involuntário de um abanar afirmativo de cabeça que acabou por se tornar permanente. Independentemente de lhe pedirem o que quer que fosse, estava num sim repetido.

Ao fim de algum tempo estava muito eficaz na sua prestação e andava entre mesas com um porte altivo e militar, como se marchasse carregando nos calcanhares e lançando as pernas prá frente em passadas muito abertas. Carregava travessas quentes e pratos a escaldar, coisa que os outros empregados não faziam, permitindo que a comida chegasse às mesas ainda a fumegar. Era um portento de serventia!

A senhora Corte-Real, almoçava todos os dias na mesma mesa e à mesma hora, fascinando-se com o serviço de Vinicius. O seu marido era diplomata e na maioria das vezes estava em missão fora do país,  pelo que se tinha habituado a fazer as refeições fora. Aquele restaurante de luxo era quase uma cantina, onde se sentia em casa e onde os empregados lhe faziam todos os mimos.
-Bom dia Madame Corte Real! Hoje vem muito bonita! Dizia-lhe o porteiro com um levantar do chapéu
-Deixe-me pendurar o seu casaco no bengaleiro- dizia-lhe afável o chefe de sala
-Hoje guardamos-lhe aquela fatia do seu bolo preferido-sussurrava-lhe Vinicius.
Vestia-se de forma impecável, os melhores fatos de alta-costura, o perfume mais cheiroso, mas almoçava sempre sozinha, sem uma amiga, sem um familiar, sem ninguém.
Tinha um carinho especial por Vinicius e gostava muito de falar com quem lhe ouvia o que tinha para dizer e desabafar. Ele chegava naquela passada patética e naquele abanar de cabeça, com o guardanapo dobrado sobre o antebraço,  curvando o tronco em sinal de deferência:
-Hoje temos faisão com arroz de trufas e um consommé de aboborinha, Madame! Penso que vai adorar!
Nesse dia reparou que Vinicius tinha uma ferida na mão esquerda e perguntou:
-Aleijou-se na cozinha Vinícius?
-Foi a levar uma travessa a ferver para uma das mesas, Madame. Agora se fico muito tempo com a travessa na mão, queimo-a. Mas não me dói nada, não se preocupe. Tenho muitas dores é nas canelas e incomodam-me muito estas bolinhas que me aparecem debaixo da pele, mas nada de importante-Disse isto com um sorriso conformado enquanto se retirava.

Corte-Real estranhou muito e ficou a pensar que não seria normal, pelo que decidiu marcar-lhe uma consulta. Tratou de tudo nessa tarde, e na manhã seguinte obrigou o pobre coitado a estar na baixa de manhã cedo com um seu amigo que tinha consultório ali por perto. Fez questão de o acompanhar mas não entrou no gabinete, não fossem as más-línguas congeminar tortuosos pensamentos pecaminosos entre os dois.

O Dr.Almeida era um médico experiente, com uma carteira de doentes imensa, que tinha trabalhado muitos anos em África, tendo inclusive recebido uma medalha de mérito do Governador de Lourenço Marques. Assim que viu entrar Vinicius naquele andar típico e o abanar afirmativo de cabeça, franziu o sobrolho como quem cheira a doença. 
-Sente-se meu caro. Em que posso ajudá-lo?
Vinicius sentiu que podia abrir a sua alma e expor figuradamente os seus órgãos a tão distinto médico, pelo que não se coibiu de contar a sua vida de fio a pavio, sem omitir nenhuma parte mesmo que íntima.


O Dr.Almeida, especialista em doenças sistémicas, infecto-contagiosas, venéreas e do foro neuroendócrino, ouviu atentamente dirigindo o interrogatório habilmente, medindo-lhe o pulso, palpando-lhe as ínguas, auscultando os sopros, diga 33, adivinhando os órgãos internos com as finas mãos e o frio do estetoscópio…
Ouviu, ouviu, ouviu e falou pouco, concluindo de forma vitoriosa:
-Da avaliação que lhe faço nesta anamnese e exame objectivo exaustivo, concluo que o meu amigo só pode ter uma doença que se enquadre: Sífilis Terciária! Uma clássica tabes dorsalis,  as gomas sifilíticas, provável aneurisma da aorta, enfim, precisamos só de confirmação laboratorial para começar o tratamento! Não lhe garanto que fique como era, mas não vai piorar!


Saiu dali cabisbaixo, derrotado por perceber que tudo aquilo com que lutava se relacionava com uma doença. Mas aceitou, agradeceu à Madame o cuidado, e encarou a fatalidade como uma oportunidade de continuar a sua vida. A vida que escolheu.
Vinicius ainda hoje, e ao fim de 20 anos, continua a ser o melhor empregado de mesa daquele restaurante!
Assim foi…