sexta-feira, 3 de julho de 2015

Face up


Desde sempre as redes sociais se organizam da forma como a própria palavra a denomina: socialmente. E socialmente faz-se através do convívio directo, da presença, dos diálogos, da comunhão, do falar, do estar. Tem sido assim desde sempre, que se constroem relações e se constituem fortes laços de cumplicidade e partilha.
Por isso, não sei se deveríamos apelidar de redes sociais estas novas abordagens tecnológicas e instrumentos virtuais.

Assumidamente, concordo plenamente que as redes sociais informáticas são de uma enorme utilidade e constituem-se como um acréscimo que pode potenciar e valorizar as relações humanas. O que acontece é que perversamente se substituem a esse mesmo relacionamento, criando falsos trajectos de afectos.

Não sou habilitado academicamente para me pronunciar sobre esta questão, e com certeza  existem centenas de estudos e reflexões já nesta área, mas em termos sócio-psico-antropológicos isto deve ser um regozijo para os estudiosos da matéria. Não somente nestas perspectivas mas até no campo linguístico, se considerarmos o léxico que introduziram na nossa linguagem comum: post, like, feed, mural, link, click, selfie, etc.

E é de facto um fenómeno impressionante a explosão dos twiters e facebooks por este mundo fora. Será que as pessoas estavam ávidas de relacionamento, ou será que encontraram os seus 5 minutos de fama eterna? Criou-se em pouco tempo um polvo de relações articuladas, que na maioria dos casos exibe o bom, o mau e o assim-assim de cada um. E muitas vezes partindo da iniciativa do próprio! Não consigo perceber que no “face” (chamemos-lhe assim porque já é tão nosso íntimo...), se exponha a vida sem critérios. Todos tentam personalizar o seu perfil ideal e idealizado, mas que obviamente nunca expressará a realidade vivida, sentida e inconscientemente partilhada.

Criam e apregoam-se falsas vidas de alegria, de rejubilação, de permanente festa, que não correspondem minimamente à verdade. Fotos sempre a sorrir, sempre alegres, em que tudo parece impecável e sem defeito, onde não há lugar à imperfeição ou ao feio. Todos ambicionamos isso, mas o problema é que esse mundo não existe, e logo as pessoas se defraudam a elas próprias porque passam a acreditar num imaginário que até foi construído pelas mesmas. Mas a dada altura tropeçam e aí sabemos que a queda é maior...
Para muitos, esta vida faz-de-conta é aquela em que confortavelmente vão construindo o seu edifício de personalidade virtual.

Quase todos fazem intervenção social e questionam várias matérias de cidadania, justiça, direitos e deveres. É um processo tão cómodo e tão à distância de um clique, que na maioria das vezes se esquecem de praticar esse mesmo género que apregoam. Sobretudo aquelas pessoas que estão sempre a postar apelos, solidariedade, doações, indignações para com injustiças, mas depois não praticam esses mesmos gestos no seu dia-a-dia. Coitadinhos dos palestinianos, que injustiça atroz os clandestinos do Mediterrâneo, como me indigno com as crianças que passam fome. Vamos lá, que quantos mais likes, mais se ajuda! Mas no clique seguinte já me esqueci e passei para os vídeos loucos do futebol...
Muita acção no dedo, pouca iniciativa concreta. Como dizia o conhecido: "falam, falam, mas não os vejo a fazer nada!"

O sucesso deste modus, também reside na facilidade e rapidez de difusão da informação. As partilhas instantâneas são o espelho desta fragilidade e isolamento. Porque partilhar naquele momento, aquela situação, aquela fotografia, aquela música, faria se calhar mais sentido num determinado momento, num determinado contexto, com determinadas pessoas. Um amigo, uma mulher, um companheiro, um filho...Se partilhamos tudo muito rápido, perde-se magia e encanto..
A cumplicidade com os outros faz-se através de pequenas sintonias e de pequenas histórias em conjunto. É por isso que quando alguém por exemplo coloca uma música no mural, está a privar-se dessa cumplicidade e desse momento que poderia ser de intimidade, passando rapidamente para um vazio de anunciação desse encontro especial. Que banalização, não...?

Mas também podemos ter outra leitura. A de que estes inputs são-no para chamar a atenção, para dizer estou aqui, para dizer eu existo, falem comigo, façam likes porque assim me sinto vivo! Talvez..

Nesta análise narcísica, o culto do "eu" tem o seu apogeu máximo nas selfies! Eu a pentear-me, eu a conduzir, eu com estas vedetas, eu a acordar, eu com o Zeca, eu a fazer uma careta, eu sempre a arreganhar a taxa! Se isto fosse partilhado com um pequeno núcleo de pessoas ainda dava um desconto, mas assim em canal aberto parece-me um pouco frágil. Já que ninguém me endeusa, eu que me valorize, não é...?

E quando passam para os mais banais retratos do dia-a-dia, torna-se um pouco incómodo de aturar. O paradigma destes desabafos, são os facebookianos que publicam que fizeram cocó às 11h20m, postam uma foto do que lancharam essa tarde, e no fim colocam um pensamento filosófico ao deitar, desejando uma boa noite a todos. E o que não deixa de ser mais surpreendente nisto tudo, são os likes que obtiveram nestes mesmos comentários, provavelmente dos voyeurs profissionais.

E as tertúlias? Ah! Que saudades das tertúlias...
Nesta nova versão, há sempre um candidato a jornalista que pergunta algo do tipo: o que acham da neve sobre o resultado na democracia cristã? E logo desembestam os comentários, e os comentários aos comentários, que terminam infelizmente sem os brindes nem os abraços de despedida das reais tertúlias. Assim se perde a espontaneidade, o desafio, o cara-a-cara e a valentia de assumir os seus pontos de vista perante os olhos dos outros. Muita solidão que anda por aí...?

Do ponto de vista global, tenho a certeza que o face é uma mais-valia imensa deste novo mundo que criamos a cada segundo. Transmite-se informação fácil e rápida, revêem-se e renascem contactos anteriormente perdidos, é um excelente canal de divulgação de projectos e ideias, é ponto de partida para pequenas e grandes teorias do fole, etc, etc e etc.

Mas como tudo na vida, deve ser usado com moderação e bom senso, com educação e respeito, mas sobretudo com rentabilidade, eficácia e eficiência. Quantas horas perdem as pessoas a seguir obsessivamente os posts dos outros, quando as poderiam aproveitar a passar com os filhos, com os amigos, com os seus amores? Este mundo de bytes e gigas não é o centro de tudo. Nós é que devemos ser o centro de tudo.

Para as gerações que nascem agora, será sempre com naturalidade que agirão nestes contextos, mas há que trabalhar para que este tipo de relacionamentos sejam um extra e não o cerne das interacções.

Escravos da ditadura do vício...?
Para alguns sim...

Mas agora vou largar o computador e jogar à bola com os miúdos!

Um abraço cibernético a todos e um até já para alguns....

domingo, 17 de maio de 2015

O Elevador


Cum raio! Um homem trabalha uma vida inteira, casa-trabalho-casa e nem sequer a porcaria de um elevador tem quando chega ao escritório! Olha que isto de subir 58 andares a pé, tem que se lhe diga...

Jonas trabalhava naquela mesma empresa de contabilidade desde há 27 anos. Raramente tirava férias, e tudo o que amealhava colocava num porquinho de loiça que a tia lhe tinha oferecido. A mesma tia que fugira com um marinheiro mexicano que se vestia de toureiro todos os sábados, e lhe tinha prometido que quando chegassem ao México a coroaria de Miss Tequila. Ainda hoje lhe manda postais de Jalisco, com meias de renda, fato de variedades e um cão a tocar maracas.
"O trabalho não aleija", era o seu lema de vida.

Nesse dia, como tantos iguais a outros, o trabalho mais uma vez não o tinha aleijado.
Arrumou a sua pastinha de couro, dobrou a manta que usava por cima das pernas, e apagou a luz do candeeiro de mesa não se notando a falta da mesma, já que a geral estava ligada.

Restava pouca gente no edifício, e dirigiu-se ao elevador que hoje parecia diferente e estranho. As luzes estavam todas acesas e uma das do tecto parecia trémula de frio, parpadeando aos solavancos.
A porta estava aberta e avançou, fechando-se automaticamente atrás de si com um deslizar invulgar, como se entrasse nas entranhas de uma criatura pré-histórica e a boca se tivesse fechado...
Não encontrou o botão zero, mas havia um de cor amarela que presumiu ser um novo botão de saída.

Carregou, e de imediato o elevador começou a descer. Arrancou devagar, mas ganhou velocidade, não como se estivesse a cair, mas sim num suave acelerar em sentido descendente. Era impossível já não ter chegado ao piso térreo, caso contrário já se teria esborrachado contra o solo! 
A descida parecia infinita, cada vez mais depressa, cada vez mais abismal.

Teve de se agarrar ao corrimão, porque iam já a uma velocidade vertiginosa e alucinante! Sentia tonturas e o sangue a esvair-se pela cabeça, de tal maneira que desvaneceu sem forças deixando-se levar inerte para o centro da Terra...

Acordou atordoado e maltratado, sem saber onde estava.
Olhou à volta e para si, guardou a teoria do fole que entretanto lhe tinha saltado da pastinha de couro, e carregou no botão de abrir.
Saiu e teve dificuldade em reconhecer que sítio seria aquele, porque a luz e o calor intenso lhe tolhiam o cérebro.
Mas era um mundo diferente com certeza!

Não conseguia perceber que lugar era, com um mar de magma, criaturas voadoras meio cabeças de cegonha-meio rabos de mulher, num céu amarelado com uma espécie de nuvens cantantes, que transportavam bandas de afro-rock-punk. E que calor! Sufocante!

Tropeçou inadvertidamente num ser de três patas e sorriso trocista, sentado numa cadeirinha de praia laranja:
- Então..? Demoraste a descer, hãm..?
- Eu..? Ooonde estou...?
- Onde estás? No inferno paradisíaco, onde querias estar? És o número 57! Anda!

Enquanto corriam, reparou que tinha perdido as suas calças de fazenda e as cuecas, ficando um pouco mais arejado e liberto de pressão nas zonas mais baixas. Curiosamente ninguém ligava a isso, e as criaturas com quem se cruzava sorriam e bamboleavam o dedo em campânula de sino.

Chegaram a um balcão soturno, misterioso, com muitos papéis e carimbos sobre a mesa, os utentes sentados em cadeiras enormes, enterrados e curvados sobre as dívidas morais que tinham para pagar.

Chamaram o meu número e a criatura lá me indicou um assento de madeira rija, que rangeu num roar ruidoso. Do outro lado estava um ser com duas cabeças e quatro braços, que freneticamente carimbava papéis de 25 linhas azuis como se marcasse o ritmo com baquetas. Levantou uma das cabeças, enquanto a outra salivava sobre as folhas, e sorriu por cima dos óculos na ponta do nariz:
- Jovem Jonas, sabeis a prova a que vos sujeitais...?
- Não sei bem - balbuciei sem saber o que responder...
- Mais um desinformado! Caramba, que lá em cima não sabem fazer nunca uma triagem certa!

Arregalei os olhos muito admirado e sem perceber, mas ele lá continuou:
- Bom, chegaste ao fim da linha da tua existência e tens de passar a última prova para saber se podes entrar no inferno paradisíaco com aptidão máxima. Para isso tendes de responder e cumprir três tarefas.

Nem queria acreditar em tamanha alucinação! Então eu faleci e mandaram-me para as trevas em vez de me mandarem para o Céu? Devia haver um engano qualquer, porque eu ponho o lixo todos os dias no caixote, ajudo as velhinhas a atravessar a rua, contribuo para todos os cabazes, conforto sempre as meninas do cabarét, nunca assobio o presidente, enfim um modelo de pessoa... Será que foi daquela vez que não alimentei os pombos, quando eles migraram para uma festa no Ginjal? Não....está tudo louco!

O bicéfalo estacou e fitou-me seriamente com os três olhos:
- A primeira pergunta é: quantos empregados ucranianos há em Alcochete?
- A segunda é: quantos refegos tem a Lili Caneças?
- A terceira: se eu fosse teu primo, quem poderia ser a minha mãe...?

Huuuu! A assembleia torceu a cara e abanou a cabeça, porque temia que eu não conseguisse alcançar as respostas certas...senti uma tontura que quase me fez cair e vomitar o galão que tinha bebido ao lanche, lá em cima.

Nessa altura fechei os olhos, respirei fundo e imaginei toda Alcochete vestida de barrete russo e polaina branca, vi mesmo a Lili engomando-se os refegos, e pensei na minha família toda até a décima geração de bosquímanos.
As minhas mãos suavam que nem sovaco de visigodo, a minha barriga encheu-se de borboletas que queriam desesperadamente sair, e o meu coração dava pancadas do lado de dentro cada vez mais secas. Mas tinha de acertar senão estava feito!

Cá vai disto, pensei!
- Eh....acho que são 57 ucranianos (sem contar com o anão Uchev), 438 refegos (tirando o rego do ass) e a minha mãe poderia ser a nora da avó da tia que se parece ao primo da filha da empregada adoptada.

No exacto momento em que me saíram as respostas a aquelas perguntas tão disparatadas, cerrei instintivamente os olhos com força, para não ver o embate que me teriam reservado depois de tamanha invenção...

Mas o que aconteceu foi deveras miraculoso...Uma estridente sirene soou, um rotativo cor-de-rosa acendeu-se e pequenos foguetes foram lançados por um pipeline improvisado, ao mesmo tempo que a multidão eufórica entoava em cânticos gregorianos: "já te safaste, já te safasteeee!"
Não sei se desmaiei ou se morri pela segunda vez, mas digamos que "apaguei"....

Nesse preciso momento, fui sugado por um tubo que fazia um sistema de vácuo ascendente, e apareci à porta do elevador do meu escritório, completamente azamboado e ainda a pensar se tudo isto não teria passado de um pesadelo....

Só quando olhei para o lado e vi as minhas calças e cuecas penduradas da maçaneta de uma porta enquanto uma fresca brisa me refrescava as minudências, é que percebi que tinha revivido.

Há quem diga que destes sítios nunca ninguém volta.


Pelo sim ou pelo não, nunca mais desci de elevador...

sexta-feira, 27 de março de 2015

iTunas


Tunas para quê?
Neste conflito de interesses posso ser suspeito para divagar sobre o tema, mas tentarei o afastamento suficiente e a leitura imparcial, para poder discriminar o muito de bom que têm.

Não vou obviamente dissertar sobre praxes, ou caloiros, ou organizações estudantis, ou o que quer que tenha a ver com essas questões. Isso fica quiçá para outra teoria do fole…
Sinceramente não sei se gosto de tunas! Mas posso dizer que gosto de algumas tunas e que gosto de algum tipo de música feito por tunas.

Costumo segmentar um pouco este submundo, dividindo as tunas em duas: aquelas que apostam e mantêm a qualidade musical como o seu desígnio, e aquelas que funcionam apenas como complemento à vida académica curricular. Podemos designá-las de tunas X e tunas Z, sem prejuízo de poder estar a atribuir maior importância a uma do que a outra, sabendo que têm os seus cabimentos lógicos nos meios onde se desenrolam as suas acções.

As tunas Z são aquelas de menor dimensão, constituídas indiscriminadamente por estudantes que tendo um mínimo de aptidão musical integram o grupo, e podem assim expressar a sua vertente artística e participativa. Naturalmente que este facto repercute-se directamente no produto final alcançado! Têm geralmente uma fraca performance musical, sendo por vezes difícil de as ouvir durante muito tempo porque se torna uma tarefa deveras penosa...São por isso olhadas de lado pelos músicos e melómanos, que as condenam de imediato num primeiro contacto.

De facto, a qualidade musical destes grupos é obtusa, mas isso para mim até que nem é o mais negativo. Infelizmente, enfermam de um mal que é comum à maioria das áreas sociais e não se cinge às tunas, que tem a ver com a falta de limites e com o desmembramento de uma série de regras empíricas que nos marcam as fronteiras do bem/mal, do correcto/incorrecto, do abrutalhado/com classe, da postura/desleixo. Podem ficar assim contagiadas pelas atitudes mentecaptas de alguns universitários, que usam e abusam de comportamentos menos próprios e bastas vezes imaturos...

Isto leva a situações quotidianas, em que basta que uma destas tunas tenha uma intervenção ou atitude de um nível diferente, para que logo todas as outras sejam postas injustamente no mesmo patamar. Chama-se popularmente "pagar o justo pelo pecador"! E só porque envergam um uniforme e são universitários, se contamina esta ideia a tudo quanto é tuna!! Não tá certo...Por isso o Herman José e outros humoristas, fazem rábulas a zombarem das tunas. Porque estas dão o flanco...

Mas a isso não deviam ser condenadas, nem tantas vezes ostracizadas. Desempenham um papel fundamental na integração dos vários estudantes da instituição, têm quase todas um espírito de grupo invejável, permitem que muitos alunos tenham contacto com música, com instrumentos, com ensaios, com palcos, com um cancioneiro nacional, e transmitem normalmente alegria, boa disposição e entretenimento. Englobam os elementos como fazendo parte de um conjunto, e sem ser o seu propósito primário, acabam por desenvolver dinâmicas de progressão individual. Com uma série de itens de responsabilidade e comportamento cultural, estas tunas têm iniciativas próprias muito valorosas para as instituições que representam, sendo uma alavanca de crescimento e maturidade para os indivíduos que as integram.

No campo diametralmente oposto a este, as tunas X, quer pela sua natureza, quer pelas suas capacidades próprias e estruturais, têm outros desígnios e objectivos. Independentemente de representarem uma faculdade ou uma universidade, todas têm um propósito essencial: fazer música!
E é aqui que se concentra todo o poder e energia destes grupos! Têm geralmente bons executantes, bons ensaiadores, ensaios produtivos, rigor nas apresentações, um repertório estruturado, muitas criações musicais.

Pelo esforço e dedicação que algumas imprimem, merecem-nos todo o respeito, porque não nos esqueçamos que estas participações são voluntárias e não remuneradas. O profissionalismo e brio destes grupos, não nos podem fazer olvidar que estamos perante amadores que dão o melhor de si para que os espectáculos vão avante.

Muita gente acha que é tempo desperdiçado e mal gasto nestas andanças, mas do meu ponto de vista essa é uma visão completamente errada. Errada, porque há toda uma riqueza que se ganha e se se conquista. É verdade que muitos abdicam das suas vidas pessoais para dedicar tempo aos ensaios, ao conceito do espectáculo, às musicas novas, a discutir novas formas de abordagem musical, a estudar e reinventar o cancioneiro português, a vestir uma nova roupagem melódica a outros cantos, a criar música, letras, canções, a fazer história, a marcar os corações  e almas daqueles para quem cantam. Mas a isto chama-se crescer, construindo, munindo-se simultaneamente de armas que lhes serão úteis ao longo da vida.

A prova disso, são as centenas de elementos das tunas que comprovadamente ocupam hoje lugares de destaque nas suas diversas áreas profissionais. Desde a ciência à arte, do académico ao empresarial, muitos são figuras de renome e com provas dadas de valores, como verdadeiros exemplos de cidadania.

Estas tunas têm esse extraordinário mérito que não encontramos em muitos outros sectores. Trabalham, e bem, de forma genuína e gratuita, pelo simples prazer que lhes dá o fazer e criar música. Este é um bem inestimável, impossível de dimensionar, porque a própria espontaneidade do movimento tunante radica num sentimento aberto de partilha, e numa força de grupo que transpira e se sente quando com elas convivemos.

A sua existência conquista por si só um lugar na história, mas um dos grandes méritos que podemos atribuir às tunas, é o facto de terem recuperado muitos dos instrumentos tradicionais portugueses! Numa época em que o digital, as novas tecnologias e os artificialismos ganham terreno, foi este remodelado universo que recuperou toda a arte e saber dos instrumentos artesanais portugueses. O bandolim foi reavivado, a guitarra portuguesa ganhou novos adeptos, o cavaquinho passou a ser tocado por centenas de jovens, a secção rítmica reconquistou sons antigos, entre tantos outros exemplos reveladores da importância da redinamização de todo este comércio e conhecimento que estava em esquecimento e desaparecimento rápido.

Em termos genéricos e no momento actual, este microcosmos, e muitas vezes considerado submundo, encontra-se numa fase de decisão. Decisão no rumo que quer tomar, e na forma que se quer assumir dentro da sociedade. Este é o momento de dar o salto qualitativo, de se estabelecer como Instituição onde os seus elementos possam encontrar um espaço para continuar a exercer o seu trabalho pró buono, em prol de algo que lhes traga satisfação, mas que tenha impacto no meio onde vivem. As tunas têm de se reinventar e reinventar as suas formas de intervenção. Algumas já começaram a romper com esse status quo, através de espectáculos diferentes, colaborações com orquestras e bandas, parcerias alargadas, registos de produção, acções sustentadas de solidariedade, criação de escolas de música, envolvimento em acções educativas, etc, etc.

No entanto, e a meu ver, a chave do sucesso residirá na capacidade que cada tuna terá, em saber criar laços com o público e alargá-lo, amplificando a sua oferta musical e envolvendo diversos sectores sociais. Para este desiderato, sair do casulo universitário é fulcral. Ao mesmo tempo, a nível interno, a lógica de participação terá de ser alterada para um processo que permita um prolongamento de intervenção das gerações mais velhas, trazendo maturidade e um know-how que constitua solidez, maior coerência e continuidade aos projectos delineados. Existem muitas soluções, muitos caminhos que podem ser tomados, para que toda esta labor e todo este manancial de trabalho produzido possa ser rentabilizado e gerador de novas oportunidades nos diversos setores sociais e culturais.

Digamos que é um mundo sui generis, ao qual lhe será dado o real valor quando as pessoas se aperceberem do real valor de mercado que ele representa...


A ver vamos...

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Ensinemos a ler


Há cerca de dois séculos atrás, houve um médico judeu que criou de raiz um idioma que se propôs a ser estabelecido como língua universalmente falada. Assim se aboliriam os entraves de comunicação entre os vários povos, facilitando a interacção, os cruzamentos e um melhor relacionamento entre sociedades. O Esperanto era uma ideia sem dúvida congregadora! Esta ideia da uniformização e junção de pontos comuns, no entanto, pode resultar negativa no sentido em que a criação e a criatividade, ficam necessariamente truncadas da sua própria essência, limitando um pouco esses horizontes de diversidade.
 
Numa perspectiva de liberdade individual e colectiva, não podemos ter todos o mesmo idioma, vestir todos da mesma maneira, ou ter todos a mesma referência religiosa. O que podemos e devemos, é pregar pela diferença como elemento característico e próprio do Eu.
Estou em crer que o verdadeiro cerne da questão centra-se na essência do Homem!

O Homem como animal racional que é, segue no fundo do seu comportamento um modo de acção que podemos definir de animalesco. Animalesco porque é instintivo, impulsivo, conquistador e com um objectivo básico e primário perpetuador da espécie. Mas o homem evoluiu muito, no sentido em que estas características se atenuaram e se contingenciaram com o advento da modernidade. Modernidade com momentos mais ou menos transformadores, mas que ainda sim podemos balizar num espaço temporal de largas centenas de anos.

Hoje temos os princípios universais de não matarás ou não roubarás, como dados adquiridos neste mundo global. Mas será esta uma verdade universal, ou será que alguém despreza por completo todas estas premissas de respeito e saúde social? E se assim é, como é possível que meia dúzia de malucos desatem a disparar e matem pessoas indiscriminadamente, apenas em nome de um Deus, que nem sabem se existe?

São nestas desculpas religiosas, que a maioria das atrocidades se comete.

É a guerra entre cristãos e muçulmanos na Nigéria, entre judeus e muçulmanos no médio oriente, entre xiitas e sunitas no Iraque, entre budistas e muçulmanos no sul da Tailândia, entre católicos e protestantes na Irlanda, entre ortodoxos, católicos e muçulmanos na ex-Jugoslávia, entre budistas e hindus no Sri-Lanka, entre hindus e muçulmanos em Caxemira, e em muitas outras pequenas escalas por esse mundo fora.

Poderiam dizer que estes conflitos se aproveitam do nível muitas vezes básico populacional, mas isso não é puramente verdade, uma vez que temos exemplos nos cinco continentes e todos com níveis assimétricos de literacia, mas num crescendo de violência que nos faz regressar ao início do texto, em que a parte animal do Homem se revela e se manifesta como alegadamente um último reduto de afirmação.

São autênticas barbáries, são autênticos bárbaros, e é necessária uma reflexão profunda, lata e abrangente de todas as variantes que se imiscuem nesta problemática. Os verdadeiros interesses económicos, imperialistas, e de poder, utilizam-se das fragilidades dos indivíduos de uma sociedade que alimenta seres egoístas e ambiciosos de parecer, mas despreocupados de ser.

Ao mesmo tempo é curioso que os meios de comunicação social se deixem enredar nesta trama fácil de alimentar, e de forma indirecta perpetuar sentimentos de revolta, vingança e falsa moralidade. Falo sobretudo nos atentados episódicos de terrorismo, que geram sempre uma onda de legítima indignação e repulsa, mas que resvalam para uma fácil e simplória acusação de grupos que reivindicam ideologias como argumento para os seus próprios actos. Grupos esses que se utilizam de normalmente um argumento ideológico que lhes possa justificar esses covardes ataques. Na maioria das vezes tomam o um pelo todo, e toca de arrasar uma ou outra religião, um ou outro grupo étnico, um ou outro povo muitas vezes sem qualquer responsabilidade.

Confesso que não sou um conhecedor profundo da génese das religiões, mas não conheço nenhuma religião que apregoe a violência, que apregoe a injustiça, que tenha valores contrários à essência humana. O que existe, são pessoas que interpretam a informação da sua religião para a utilizar de acordo com os seus objectivos menos lícitos e mais ambiciosos.

O que de verdade destrói a imagem de qualquer religião são os seus fundamentalistas! É por eles que se cometem as maiores atrocidades, as maiores injustiças e os maiores assassinatos físicos e intelectuais deste planeta.

Concordo que esta questão é tão ampla e multifactorial que é impossível descolá-la de outros interesses e vontades secundárias. Não podemos ser ingénuos e pensar que os fundamentalistas religiosos são os únicos culpados, porque claro que os jogos económicos, a ambição do poder,  os desejos expansionistas, o lucro desmedido, são os factores que no fundo ditam estes movimentos, os alimentam e os promovem para assim atingirem os seus propósitos. É uma grande trama mundial, onde muitos países lucram com este verdadeiro negócio, independentemente de pertencerem ao clube dos ricos ou dos pobres. Por esta razão,  fico perplexo ao ouvir o descaramento de muitos líderes que em tom angélico se pronunciam sobre atrocidades, quando eles próprios têm atitudes semelhantes na sua essência. Na guerra, atacar não é a melhor estratégia para defender. Não há justificação nenhuma para a violência, ponto!

E se é simples pensar nos problemas, difícil é encontrar soluções adequadas. Se marcarmos um epicentro no conflito, não é aí que o teremos de resolver. Temos de pensar de forma muito mais lata e alcançar a periferia dos círculos em redor desse núcleo. A humanidade é muito mais estratosférica do que meia dúzia de loucos e insanos, mas a humanidade é ainda muito iletrada e consequentemente fácil de influenciar. E esta fragilidade é tão flagrante, que chega a ser constrangedor saber que povos inteiros veneram os seus líderes sem escrúpulos, pelo simples facto de que são facilmente manipuláveis.

Estou em crer que é aqui que teremos de agir e executar. Precisamos de construir massa crítica, de chegar a todos, de maneira a que esta multidão influencie o tal epicentro. Estou certo que estas questões apenas sanarão e se contingenciarão, se todos fizermos parte da solução. Eu, tu, ele, nós, vós, eles!

Estas acções terroristas, a guerra, os conflitos, só desaparecerão quando nos preocuparmos em formar melhores pessoas. Quando nos preocuparmos em olhar para o lado e ajudar quem precisa. Quando dermos a todas as crianças as armas da sabedoria, do pensamento livre, dos valores básicos da vida. Não podemos ser todos ricos, mas temos a obrigação de dar a riqueza dos livros a todos. Esta é a verdadeira arma da construção de uma sociedade mais justa e humana. A literacia é a base da civilização!

E quando tivermos o mundo todo por igual, uniformizado no bem, sem olhar a quem, teremos os Homens a discutir os conteúdos sem olhar à forma, pelo que qualquer teoria do fole servirá para partir a outro patamar.
Mais do que darmos acesso à informação, temos de dar capacitação à interpretação e uso dessa mesma informação!

Aí estará a chave do sucesso da humanidade.
Façamos cada um o seu trabalho.

Eu? Já comecei com os meus...

If I go as a Hindu,
I'll meet a Muslim or a Christian,
If I go as a socialist,
I'll meet a capitalist,
If I go as a black man,
I'll meet black men or white men,
But if I go as a human being,
I'll meet only human beings.
Satish Kumar

Um abraço!

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A Polaca


O dia-a-dia de um hospital pode parecer organizado, linear e completamente programado. Mas é só aparência!! Porque vive em permanência do inesperado e do limítrofe, impedindo-nos de orientar algo coerente e sequencial quando chegamos à enfermaria.

Tinham-me internado o senhor Albino na cama 25, num quarto com vista desafogada para o exterior, enfeitado com as árvores que circundavam o edifício.

Era um homem de 86 anos de idade, olho azul brilhante, sincero, sorriso doce, típico dos dementes que anuem a tudo sem saber porquê.
Prestei a informação básica à esposa, que iria começar o antibiótico, que provavelmente teria alta em breve, e que a situação clínica estava estabilizada. Nada de especial, critérios de gravidade baixos, bom prognóstico nesta intercorrência da já muito longa vida deste valente militar na reforma. Ex-combatente no Ultramar, tinha centenas de histórias para contar da sua vida...

Umas horas depois, tinha de novo a esposa do senhor Albino da cama 25 a pedir para falar comigo.
-Diga-lhe que já lá vou...
Quando saí do gabinete já estava a senhora de plantão, pelo que não pude contornar o assunto.
-Boa tarde, como está? E estendi a mão para a cumprimentar.

Era uma senhora baixa, pele pálida e olho claro, rugas vincadas da face, que completava a sua fisionomia típica de Leste com um barrete russo de pele enfiado na cabeça.
Esticou também ela a mão, e apesar dos seus talvez 80 anos (adivinhava eu), apertou-me a mão com tal firmeza que me pôs logo em sentido.
-Boa tarrde doutorr!

Na sua pronúncia  eslava, carregava nos érres, como se um motor de arranque se intrometesse nas palavras.
-Como se encontrra o meu marrido...?

Mais uma vez lhe expliquei que os critérios de gravidade eram baixos, que as coisas estavam a evoluir bem, e que o prognóstico era positivo.

Da aparente dureza da sua expressão, e com os olhos semi-cerrados, lançou-me com um certeiro:
-Sabe? Eu conheço o doutorr! O doutorr nunca esteve na Polónia...?

Por momentos fiquei suspenso, pensando em que situação me teria cruzado com aquela personagem num país tão longínquo...

Ela prosseguiu no seu sequencial à interrogatório tipo "serviço secreto":
-No ano de 96, o doutorr não esteve en Varrsóvia...?

Um ponto de interrogação deve ter aparecido por cima de mim, porque a senhora semi-cerrou ainda mais os olhos e deve ter pensado para consigo: "puxa pela cabeza, porrque te vais lembrarr!"

Em modo de imitação, também semi-cerrei os olhos, mas depressa os abri de espanto como se um raio me atingisse.
Sim! Tinha-me cruzado com aquela senhora há dezoito anos!!!

No verão de 96, fiz um estágio na Faculdade de Medicina de Cracóvia, ao abrigo de um programa de intercâmbio estudantil.
Comprei o bilhete de avião Lisboa-Varsóvia, que custou aos meus pais uma pequena fortuna, e de repente vi-me transportado para um país pobre, ainda na era pós muro de Berlim e com um aparelho de estado muito dominante.

Mal aterrei, fiquei retido umas horas no aeroporto a perguntarem-me vezes sem conta para onde ia, com quem, e porquê. Apeteceu-me responder ao carrancudo polícia de fronteira: para o bem-bom, com a tua irmã e porque ela tem mais amigas do que tu!
Mas de sorriso amarelo, lá lhe disse a verdade, ao mesmo tempo que idealizava como seria a sua irmã...

Da mesma maneira que me prenderam, assim me libertaram, e assim pude apanhar um autocarro directo do aeroporto para a estação de comboios no centro de Varsóvia. Uma capital sombria e com blocos de Leste, onde se adivinhavam pessoas a comer, a brincar, a conviver, a amar, a discutir, a sobreviver...

Um edifício enorme, que ainda hoje desempenha as mesmas funções, escondia no seu subsolo a estação central ferroviária duma Varsóvia gasta. Uma abóbada impressionante onde seriam as bilheteiras, fez-me sentir insignificante num instante. Não sabia bem para onde me dirigir, e se perguntava algo a alguém, todos encolhiam os ombros num expressivo "não entendo...!"

De repente, ali estava eu perdido, numa estação de comboios onde nem um letreiro em inglês se vislumbrava, onde ninguém falava outro idioma senão o polaco, onde o cinzento imperava e apagava qualquer cor que quisesse emergir…
As pessoas cruzavam-se como autómatos, ninguém parecia feliz e a teoria do fole vendia-se nas bancas, traduzida, e com ilustrações romenas.

Nisto, enquanto pousava a minha mochila, qual a minha surpresa quando dou de caras com um dos caloiros da minha faculdade!
Daquela Lisboa que tinha ficado para trás!
Ali perdidos os dois, nas reminiscências da ex-União Soviética!

-António..? Disse eu baixinho e com uma cara de perfeito espanto!
-Olá. Disse-me calmamente, como se me acabasse de encontrar na sala de alunos.
-Por estas bandas...?

Contou-me que andava a estudar Esperanto, e que nos seus estudos tinha conhecido um casal polaco que o tinha convidado a passar umas férias na Polónia.

Efectivamente, estava a seu lado um casal de meia idade, com um sorriso simpático, olhar franco e directo nos olhos, que me cumprimentou com um aperto de mão que mal adivinhava eu, me reconheceria anos mais tarde.
-Bom dia. Muito gosto!

Tinham sido eles a minha salvação naquele dia de verão escuro, num país que ainda estava sombrio das influências do antigo Bloco deLeste...

Tomamos café e trocamos gestos de mímica, enquanto uma ou outra conversa se traduzia em Esperanto. O casal comprou-me o bilhete por uns escassos zlotys, e levou-me mesmo até ao vagão, com uma afabilidade e uma delicadeza que contrastaram com tudo aquilo que até ali tinha contactado.

Com o passar dos anos, a memória já tinha apagado este encontro do meu baú, e nunca sequer me voltei a cruzar com nenhuma destas personagens.

A Dona Maya ficaria viúva anos mais tarde, e nas voltas que o mundo dá, conheceu um marinheiro português pelo qual se enfeitiçou de amores. Casou de novo, e veio morar para Portugal fazia já 6 anos, tinha aprendido o idioma com muita facilidade, e acompanhava agora a decadente senilidade do marido, com uma devoção e dedicação exemplares.

Eis senão que a casualidade do destino nos proporcionou um novo encontro, anos mais tarde e pondo-me a reflectir o quão pequeno é o mundo, e o quão grande se fazem as relações....

Ainda não tinha recuperado do espanto de tamanho cruzamento de astros!
Não acredito no destino, mas o facto deste encontro completamente inesperado 18(!) anos depois, é algo no mínimo muito esotérico!

Fiquei como médico pessoal de ambos, sentindo que o destino nos tinha reunido por diversos acasos felizes. Teria assim oportunidade de retribuir a amabilidade polaca, dum qualquer verão pós perestroika..

Esta é uma história que recordarei sempre com muito carinho, como mais um retalho da vida de um médico...

Dziękuję Maya!!!


domingo, 2 de novembro de 2014

A queda


A notícia era abertura dos telejornais do mundo inteiro. Ninguém sabia como podia aquilo ter acontecido, que estranhas forças poderiam estar por detrás de tão invulgar fenómeno. Neste caso poderíamos até chamar de falta de forças, uma vez que ele não se susteve lá em cima...

Foi tão abrupto como um raio, e quase tão chocante como uma cena de pânico.

Batiam as 12 horas e quinze minutos do dia 19 de Agosto de 2014, quando a vida decorria tão normal como poderia decorrer, naquele mundo igual a tantos outros.
O sol brilhava lá em cima tão intenso, que alguns até lhe rogavam pragas para que se apagasse...
E não é que às 12 horas e dezasseis minutos do dia 19 de Agosto de 2014, as forças deram acção aos pensamentos, e o sol....caiu?

Sim, caiu tão a pique como a pique brilhava no minuto anterior. Como se estivesse pendurado por um fio imaginário e alguém o tivesse cortado. Caiu em silêncio, sem estrondo, sem estoiro ou explosão hollywoodesca, desaparecendo na linha do horizonte e fechando o pano da sua actuação.

O sol tinha caído e mergulhado a terra na negritude total!

Toda a gente foi apanhada de surpresa: os carros chocaram uns com os outros baralhados, o rapaz que descia a escada a correr ficou sem luz e espatifou-se contra a parede dum meio-piso, e alguém não conseguiu ler a teoria do fole enquanto sentado na retrete se aliviava dos restos do dia anterior...

O pânico gerou-se de imediato nas populações, e todos acharam que vinha aí o fim do mundo! O apocalipse traria os quatro cavaleiros ceifando tudo e todos, as pragas desceriam à terra, os ventos soprariam rugindo, e o fogo brotaria da terra engolindo os homens. Mas nada disso aconteceu... Apenas a noite tinha caído para sempre no planisfério.

Os animais calaram-se num silêncio ruidoso e inquietante, mas rapidamente retomaram as suas rotinas de caça ao gato e ao rato, passado o susto inicial...

O dia transformado noite de forma tão pacífica, tinha gerado uma adaptação das luzes e iluminação àquele horário esquisito.

Todos, atónitos, saiam à rua olhando o céu tentando vislumbrar o outrora astro-rei. Mas nada...

Jornalistas, comentadores, astrólogos e até bispos, venderam a sua teoria em troca de uns segundos de fama num qualquer canal televisivo.

Cedo as tentativas de respostas se centraram na comunidade científica. Teorias de translação, da conjugação do ropirininau com o pátátús, de energias inversas, de sustentação do ozono, e até da atração-repulsa dos corpos celestes.

Com o sol caído para lá do horizonte, como fariam para o recuperar? Quando algo cai, alguém se agacha para o apanhar, mas neste caso a situação era bastante mais complexa, porque quem é que pega numa bola em brasa e a coloca outra vez no céu? Como iria a ciência resolver este imbróglio astronáutico?

Pôs-se em marcha a maior operação mundial de todos os tempos, e encontrar uma solução concertada para pôr o seu, no seu sítio. As agências espaciais trabalhavam noite após noite para que uma rápida solução fosse achada. Porque o mundo simplesmente não podia viver à luz permanente do halogénio!

As plantas ficavam raquíticas, os fungos floresciam, a visão ficava escurecida, os níveis de cortisol e melanina baralhavam-se, os painéis solares dormiam em permanência, o galo não cantava, e nem as sunset partys tinham a parte "pela noite dentro".

Enquanto isso, todos lançavam palpites de como repor a luz! Uns com ideias de focos gigantes de holofotes reguláveis, outros a imaginar o desvio de estrelas da galáxia mais próxima, e os russos a maquinarem a tentativa de intersecção de feixes nucleares que criassem um novo sol... Todas as ideias eram válidas, mas pouco exequíveis na prática...

Surpreendentemente, a resposta viria de um menino de 7 anos de idade!
Na sua simplicidade, apenas pensou em voz alta: se o sol caiu lá por trás e agora está lá em baixo, o que temos a fazer é descer a terra para um sítio mais abaixo do sol...

Solução brilhante, afirmaram os cientistas! Mas como iriam deslocar uma massa de triliões de peso, pelo espaço, para que esta adoptasse uma localização diferente daquela em estava desde a sua existência...? A terra não se mexe assim como assim...

Nesse entretanto, todas as cidades viam o seu funcionamento habitual afectado por este fenómeno quase paranormal. As rotinas eram controladas apenas pelos relógios, mas nunca batiam certo com a lógica do ciclo dia-noite, ao mesmo tempo que as reservas de energia se iam consumindo rapidamente, uma vez que tudo o que era luz artificial tinha de ser mantida acesa 24 sobre 24h. Para além disso, a serotonina e os ritmos circadianos alterados, faziam com que a irritabilidade das pessoas fosse em crescendo, notando-se já alguns distúrbios sociais e focos de tensão em bairros urbanos mais desfavorecidos onde a energia falhava amiúde.

Enquanto se remexiam soluções e mais soluções, já se tinham passado 42 dias do fatídico  apagão...

Curiosamente, a mesma criança que alvitrou a solução, também pensou na resposta: então e se saltássemos todos ao mesmo tempo e afundássemos a terra para um plano inferior?

Todos clamaram aleluias que a solução do problema estava à vista, que iriam resolver o assunto em menos de nada, mas ninguém se lembrou de como executar um plano deste tipo.

Como iriam pôr a saltar 7 mil milhões de almas ao mesmo tempo, de maneira a que a força fosse toda feita ao mesmo tempo, e o impacto fosse ao segundo? E a sincronização desta gente toda? Daríamos uma alerta mundial via rádio, tipo "3, 2, 1, agora?.", e o mundo todo dava um salto sincronizado? Corresponderia a uma força de 3,2 joules por pessoa o que com as agulhas bem afinadas daria um impacto total de 21 biliões de joules. Seria suficiente para deslocar a terra para baixo? Os cientistas quando se interrogaram sobre isto, baixaram os ombros e levaram as mãos à cabeça desanimados...

Mas houve um que se levantou de repente, de olhos muito esbugalhados e completamente despenteado como um porco-espinho.
Fitando o horizonte, sorriu misteriosamente e murmurou entre dentes: já sei!

Melhor que dispersar a ordem de saltar em uníssono, a força teria de ser aplicada num determinado ponto que servisse de fulcro, e para isso apenas necessitariam de meia dúzia de indivíduos com índice de massa corporal superior a 51. Isso, e um ponto algures na terra, resolviam a equação...

As notícias desdobraram-se e os noticiários faziam saber que o COSARPLATE (Comité de Salvação do Astro Rei e do Planeta Terra), procurava basicamente gordos e muuuito gordos para o salvamento da Terra. Ou do sol, conforme a perspectiva...

Os americanos foram os primeiros a responder com um eunuco de 32 anos e 522 quilos, os alemães ofereceram duas mamalhudas com 381 quilos, os albaneses lançaram um exemplar de porte baixo e redondo com 403 quilos, a polinésia francesa com um indivíduo quase aparentado de javali com 381 quilos, e os portugueses com o redondo do Carlinhos de Alfama, cujo fígado pesava uns impressionantes 183 quilos!

Foram apresentados nos noticiários como os peso-pesados da estratosfera, posando em tanga e exibindo todas as suas flácidas gorduras pendentes, com um orgulho descontraído.

Depois de muitos cálculos e equações rigorosas, decidiu-se que o epicentro que iria fazer estremecer a terra e abatê-la uns bons metros, estaria no terreno da Teresinha dos rissóis, em pleno centro de Massamá!

Ali se montou a maior tenda de telecomunicações do mundo, em que cientistas, investigadores, engenheiros e cartomantes beirãs, estudavam o ponto exacto em que o grupo dos gordos teria de saltar.
Para esse fim, construíram cinco torres em volta de um determinado ponto marcado com uma cruz amarela, em que os peso-pesados teriam de acertar.

O dia chegou em grande azáfama, com os presidentes das grandes potências mundiais a marcar presença no local, rodeados de um fortíssimo aparato de segurança. Havia quem não gostasse de chamar-lhe "o dia", uma vez que a terra estava imersa num escuro breu desde há quase 223 dias, mas para o caso pouco importa.

Os gordos estavam tão concentrados e focados na sua missão, que nem repararam que tinham rejeitado uns pratos de tripas com favas e uma francesinha de sobremesa. Começaram a subir as torres, ajudados por uma grua que lhes poupava o esforço dos pequenos músculos, tolhidos pela gordura que pendia flácida e luzidia de tudo quanto era recanto e prega do coirato humano. Ao chegarem lá cima, olharam concentrados para o X onde teriam de aterrar, sabendo que da precisão e pontaria dependiam milhões de almas fotosintéticas.

A contagem decrescente foi dada a nível mundial e todos a acompanhavam pela televisão, como se da extracção da lotaria do Natal fosse.

Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, e......atiraram-se no vazio em câmara lenta num movimento artístico que os fez cair todos no mesmo exacto segundo, enquanto a assistência sustinha a respiração de ansiedade...

Puuuuumba!!!! Um estrondo imenso abalou as estruturas mundiais, numa escala de richter enormíssima e de tal maneira, que a Terra foi mesmo impulsionada para baixo e o sol ganhou a sua posição lá no alto! Tal e qual como tinha previsto o rapaz!!!

Assim como desapareceu, assim recuperou o sol o seu lugar lá no cimo. Brilhava de novo tão intenso e quente como se dali nunca tivesse saído.

Foram sete dias de festejos e de folia, que devolveram a esta gente uma alegria e uma jovialidade nunca antes sentida na Terra...

Assim se fechava um período negro da história do planeta.

Assim os homens demonstraram que basta unir-se para que o sol brilhe para todos...

Assim nos unamos para que o bem comum aconteça...

Assim, seja...

domingo, 10 de agosto de 2014

A cereja no topo


Trabalho, honestidade e.....bom senso! Este é o ingrediente em falta para completar a minha trilogia de sucesso.
Ninguém sabe o que é, mas todos o usamos no dia-a-dia. Ou pelo menos todos o deveríamos usar....

Por um lado funciona como um sexto sentido, em que intuitivamente assumimos as nossas opções, por outro lado funciona com uma análise racional e pensada daquilo que vamos decidir.

Chamemos-lhe a opção pelo feeling, e a decisão pela táctica do xadrez.

No feeling, que nem toda a gente possui, o bom senso é aplicado mais ou menos ao calhas, e apenas pelo faro de que se tomarmos aquele caminho as coisas vão funcionar bem. Mas não é suportado por nenhum indicador à vista. Digo à vista, porque provavelmente os inputs que fomos recebendo ao longo da vida, dão-nos confiança empírica de que a opção acertada será aquela. Aqui o anglicismo expressa na perfeição a génese, e resume um abstrato que fundamenta esta lógica-pouco-lógica. Podemos dar como exemplo, o bom senso de contornar um beco escuro para chegar são e salvo ao destino. É quase como uma intuição que nos indica a melhor malha.

Enquanto o feeling funciona como um instinto primitivo, o bom senso aplicado com a regra do xadrez é mais elaborado e racional. Tal como no xadrez, o jogador avalia o tabuleiro, analisa a jogada e sabe que com aquela jogada, poderá ter uma série de sequências na cabeça que lhe permitirão reagir conforme o movimento das peças brancas. Ele sabe e consegue prever as diversas alternativas que se desencadeiam por mover a torre para E4. Não é futurologia, mas apenas uma dedução de combinações que se podem suceder de forma matemática até prevermos o xeque-mate.

Tomemos como exemplo aparentemente estranho, a discussão ocasional de dois transeuntes! O bom senso nos dirá que devemos intervir sem tomar partido apaziguando os ânimos, porque o nosso objectivo é que ninguém se aleije, sabendo de antemão que o restante processo de (des)entendimento não nos caberá a nós. Mas antes desta intervenção, devemos prever todo o processo mentalmente: se há condições de segurança, se estão armados, se aparentam pouca ou muita ferocidade, se têm indícios de doença mental, se temos ajuda por perto, etc, etc, etc. Ou seja, nesta modalidade aplicamos o bom senso de forma racional e estimada, avaliando os riscos e benefícios do cenário em questão.

Podemos quase inferir, que o bom senso não sendo uma ciência exacta, se comporta em alguns aspectos como uma ciência. Na análise, na ponderação, na colocação de hipóteses e metodologia própria de confirmação, eventualmente até no campo da própria experimentação.

O bom senso aplica-se sempre numa encruzilhada, numa paragem, numa tomada de rumo que irá determinar qual o caminho a enveredar. E é este factor que determinará o sucesso da opção escolhida. Porque podemos trabalhar muito e ser muito honestos, mas nas verdadeiras decisões de vida, o bom senso é que vai fazer a diferença. A diferença para o positivo, para o rentável, para o gerador de ganhos e conquistas que lançam pontes e ampliam ligações capazes de gerar mais sucesso. No fundo é aquele toque de magia que distingue muitas vezes o bom do excelente!

O senso é um domínio que somos chamados a exercitar em todas as tarefas do dia a dia. As que têm mais impacto são geralmente mais exigentes, e demonstram uma maior capacidade na sua aplicação. Uma teoria do fole num exemplo real, exige uma grande dose de senso, para que a loucura não se derrame e invada de letras este ecrã. Desde que acordamos até que nos deitamos, o senso é aplicado em tudo. Nas ocasiões e nas acções. Todavia, enquanto o senso é aplicado por todos de forma universal, o que distingue uns dos outros é a diferença daqueles que utilizam o senso, daqueles que utilizam o "bom senso" que falamos. Os primeiros usam-no por necessidade, os segundos para resolver uma necessidade com eficácia. Jogar à bola todos jogamos, mas marcar golos nem todos...

O bom senso implica também saltar cercas. Superar chavões e disciplinas balizadoras, sulcando um caminho para alcançar o sucesso. É por isso que nenhum fundamentalista pode ser sensato, pois a aplicação cega de uma regra não permite a maleabilidade suficiente para reconhecer que ao tomar determinada acção através duma conduta inflexível, ela o vai impedir de alcançar muitas vezes o desiderato correcto. Podemos quase chegar ao exagero idealista de afirmar que as regras foram feitas para as quebrar. Por isso o fundamentalista puro não alcança o sucesso pleno. Porque se bloqueia nas suas próprias soluções estanques, e não introduz as circunstâncias na sua equação de solução, agindo irredutívelmente numa solução quadrada e limitada.

Não tenho dúvida que o bom senso é o calço que possibilita o acesso ao sucesso, e a prova disso é a de que os grandes estadistas e universalmente reconhecidos como personalidades consensuais, utilizaram o seu bom senso em questões sensíveis e delicadas. Ghandi com a sua atitude pacifista evitou uma guerra civil que seria terrível, Obama com a sua gestão de bons-sensos leva à reforma do sistema de saúde americano, e mesmo o Papa Francisco consegue reunir várias religiões, passando a mensagem da paz de forma universal.

O bom senso é também um processo de aprendizagem, de maturidade, e muito denota de ponderação. É importante que analisemos os seus processos de aplicação para que possamos corrigir erros e transmitir essas experiências a outros. Por defeito, os idosos tem em regra uma aplicação do bom senso mais optimizada e aperfeiçoada. Não é também à toa que habitualmente, as pessoas lhes pedem conselhos e opiniões. Tem a ver com este processo de tentativa-erro e feeling que cada um possui.

Ninguém se pode prender à obsessividade de alcançar o bom senso absoluto porque é quase impossível, mas concluo tal como comecei: trabalho e honestidade como a base da trilogia, e bom senso aplicado no topo do vértice!

Esta é a fórmula da trilogia do sucesso!

Bons feelings, então!