sábado, 7 de novembro de 2009

A Volta

A distância é muitas vezes dolorosa e sofredora. Quando nos afastamos e sentimos a falta, nada nos é indiferente. Mas neste caso a distância é apenas física e temporária, sabe-se que terá um principio, meio e já estamos no fim.

Neste longo período arrastado, houve bons e maus momentos convividos, bastas vezes em segredo e em ruidoso mutismo, que contido, ao mesmo tempo tinha de ser gerido em prol de um espírito de grupo, de exemplos dados, e de uma tolerância capaz de conter muitas vezes as tendências aos excesso e aos desabafos extremistas.

A disponibilidade total, a pressão diária de uma rotina de lugares, de pessoas, de situações vulgares e comuns, tornam-se num desgaste à nossa existência. É inimaginável durante cento e vinte dias, todos os dias da semana, vinte e quatro horas por dia, ter de aguentar um ritmo cadente de problemas, situações, relações e muitos arrelios simplórios de reles alminhas, com uma disponibilidade permanente.

A juntar a tudo isto, há as suadas comidas picantes da messe, as ameaças de rockets que nos empurram para os abrigos, as sirenes que nos fazem refugiar aos bunkers, os estropiados que nos chegam sem remédio, as crianças com os cognomes de “danos colaterais”, os atentados que muitas vezes explodem à nossa porta, o olhar vazio e em procura de respostas dos feridos em combate, as impossibilidades de tratamento e impotência médica, a asfixia do claustrofobismo do campo, a distância dos nossos e sua presença constante em nossas lembranças, os uniformes que nos padronizam os estereótipos desgastantes, as rajadas de metralhadora durante a noite que não sabemos de onde vêm e se em nós acabam, os múltiplos estrondos que nos aceleram o coração, a companhia permanente da pistola que nos relembra a nossa primitiva condição, as tempestades de areia que nos nublam a vista, as horas e os dias que se nos transformam em pesadelos de tempo, enfim...

Curiosamente, estes meses serviram de prova de resistência, de tolerância, de demonstração interior de capacidades superiores escondidas, de novas realidades cinematográficas, da valorização de pequenas gigantes coisas, da descoberta de novas competências e novas aptidões, do aperfeiçoamento dessa virtude que é a adaptação ao que não é por escolha nosso.

Qualquer experiência tem os seus pontos que nos fortalecem e nos engrandecem a alma, por muito negativa na sua essência que ela seja. Mesmo na guerra tiramos partido daquilo que é positivo: a camaradagem, a partilha do desconhecido, a nossa camaleónica versatilidade, a tentativa de adaptação saudável ao meio adverso, os mecanismos de compensação inventados, tudo serve para amenizar aquilo que nos está distante e fora de controlo. Ao mesmo tempo, as outras partes tambem crescem, tambem se adaptam à nossa ausência, tambem se independentizam como pessoas e ganham novos reforços positivos do seu “Eu”. Estes novelos físicos que se desenrolam pela distância, voltam-se a enredilhar num aperto mais forte pelo reencontro.

Mas sobretudo a experiência desse sentimento que é nossa pertença na palavra e universal na emoção, que é a saudade. Não se consegue transmitir a emoção de comer bacalhau neste fim de mundo, de sorver um belo copo de tinto, de degustar uma feijoada, uma francesinha, um até real bitoque no nosso aniversário, como se fosse a maior das iguarias gastronómicas. Receber os mimos da família, em géneros e pequenas lembranças que nos fazem voar e flutuar de alegria, os desenhos dos meninos, o vinho escolhido com os chouriços e paios, dão para fazer uma festa e chorar por mais!

Agora tudo isto chegou ao fim, o mau e o menos mau, indo dar lugar ao regresso a tudo aquilo que aos meus olhos é bom: voltar!
Até já.
Mas a teoria do fole continua!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

"O Camólas"

Assim que a noite caía apagando a luz do sol, Camólas descia as escadas de madeira antiga, e abria a pesada porta que dava para uma das ruas estreitas daquele bairro cheio de vida pelo dia. Nunca encontrava ninguém nas escadas, mas provavelmente porque todos desciam à mesma velocidade que ele, pelo que nunca apanhava os da frente, e os que lhe precediam também não lhe punham a vista encima.

A doença de pele não lhe permitia receber os raios de sol desde a infância, sob o perigo de o escaldar que nem um chouriço na brasa. Não conhecia o verdadeiro vermelho forte dos carros de bombeiros, o azul brilhante do Atlântico, o amarelo da Carris, o verde da figueira do quintal, nem tão pouco o cor-de-rosa das cuecas rendilhadas da Deolinda, que secavam desfraldadas ao vento, na corda da roupa do prédio em frente, como se fossem um discreto convite para a rambóia. Apenas conhecia estas cores todas desvirtuadas, mortiças e amareladas, pela luz incandescente dos quartos, ou pelos candeeiros de rua que criavam sombras e circunscreviam espaços de claridade.

A sua pele era branquinha como uma folha de papel, e vestia sempre uma gabardine comprida verde que lhe conferia um ar até algo sinistro. Em criança chamavam-lhe o “pacote gresso”, e apenas saia à rua nos eclipses solares ou nas férias de inverno na Islândia, onde o sol estava sempre em baixo.

Aquela noite era como outra noite qualquer, de um qualquer outro dia de todos os mesmos dias. Mas o calor que se fazia sentir era como se convidasse o povo a uma festa de rua, com sardinha assada e vinho a jorro. Por isso dispensou a gabardine, vestiu os calções curtos de padrão florido, que nunca também tinham visto a luz do dia, e enconjuntou-se com uma camisa de alças amarela que tinha pertencido ao famoso ilusionista “Bambolinetti”. Nunca antes tinha tido tantas partes do corpo assim expostas, mas o calor ainda assim era insuportável.

Quando abriu a tal pesada porta da rua, o ar quente sufocou-lhe os pulmões, e obrigou-o a respirar tão fundo de olhos fechados, e com um esgar facial, que um transeunte que passava gritou antecipando o gesto: “Se me espirras encima, levas na tromba!”.

Saiu saudando toda a gente com quem se cruzava: a Rosa da padaria, o Olavo picheleiro, o mecânico Adolfo, a Micas leiteira a até mesmo o mal-amado bófia Azevedo. Todos andavam na rua a aquela hora pois já tinham fechado os seus estabelecimentos. Só a Charlene – puta de profissão – especada a trabalhar naquele horário, na esquina da Rua Samora com a Travessa da Saudade, levou com a habitual palmada no traseiro: “Ó jóia anda cá ao ourives!”, recebendo o Camólas em troca, mimos de índole diversa e não elogiosa, que visavam a maioria das vezes (e ironicamente...) a sua mãe e restante família...

Costas com costas, à casa do padre Aureliano, estava a melhor boîte do bairro, que o Camólas assiduamente frequentava até a hora do fecho, coincidindo com o desabrochar dos primeiros raios de sol.
Nessa noite quente de verão, entrou como sempre pela porta dos clientes habituais, recebendo um cartão de consumo VIP. Significava que a botelha de uísque que tinha pago na semana anterior, ainda estava na mesma prateleira dos habitué, e que a Marlene do bar lhe tinha dado umas borlas...

Nessa noite acabou com a garrafa, o abafado da gorda solteira do 32 da sua rua, a ginjinha que bebeu de penálti após os brindes do aniversário do caniche da Celeste, e ainda dois cocktails inventados segundo a teoria do fole. À medida que o álcool lhe ia empapando as células do corpo, uma a uma, a sua cabeça rodava como o carrossel da feira do Campo da Barca, não conseguindo sequer quase abrir os olhos. Depois de dançar, dançar, e dançar, como se não houvesse noite seguinte, a sonolência e o torpor começaram a invadir-lhe os comandos cerebrais, pelo que foi “convidado” a sair do estabelecimento comercial. Em primeiro pelo seu estado de embriaguez, e em segundo porque eram 6h da manhã e já só restava o caniche da Celeste amarrado ao balcão.

Assim que saiu encostou-se à parede, deixou-se escorregar e sentou-se no passeio, deixando cair a cabeça entre as pernas. Esteve ali uma hora a destilar ao sabor daquele calor da noite que lhe abria ainda mais os poros, até que os primeiros raios de sol despontaram, e lhe tocaram na pele que nunca antes tinha visto raios gama...Sempre lhe tinham dito os doutores que se o sol lhe tocasse, morreria!

Mas não! Abriu os olhos devagarinho, pôs a mão na testa para os olhos lhe sombrear, e começou a inspeccionar os braços e as pernas nus de roupa. Nada acontecia, não tinha falta de ar, não tinha dores, nem convulsões, nem brotoeja, nem bolhas lhe nasciam na pele!!!!! Estes anos todos enganado, a viver na sombra, no escuro, na fuga do astro-rei que o poderia mitigar, e afinal tudo em vão!

Levantou-se de um ápice, fez o caminho inverso para casa, abriu a tal pesada porta de casa, subiu as escadas encontrando em sentido inverso e pela primeira vez os vizinhos que nunca via, pôs a chave no destrinco, e correu a escancarar os tapassóis da varanda. Foi buscar o melhor divã que tinha, tirou a camisa, e sentou-se confortavelmente reclinado, abraçando os primeiros raios manhã, com um ar de felicidade do tamanho do sol!
Camólas estava curado...!!!

domingo, 11 de outubro de 2009

As Palavras

Dizem que a matemática é o mais próximo que há de Deus, pois os números são artefactos engenhosos, criados pelo homem e para o homem, sem nunca existirem na natureza. Todas as fórmulas, se adicionam, subtraem e multiplicam em complexos arranjos que justificam a ordem das coisas. E tudo isto se torna mais fantástico e esotérico , quando nos apercebemos que os números não existem mesmo, são imaginários, são uma ilusão que nos tenta contingenciar pela ordem, o nosso mundo macro e microscópico.
Os números são omissos na existência da natureza criada por Deus, não são palpáveis. Nem o “3”, nem o “6”, nem sequer o “623”, o que existe sim, são três árvores, seis peixes, seiscentos e vinte e três pães, mas o número em si não cabe na Criação.
E se a matemática é assim, o que serão das palavras! As palavras que nos aproximam e que nos afastam das pessoas, que são tantas vezes causa de equívocos e zangas, mas também reconciliação, reconhecimento e afecto. Se todas têm um significado diferente, como poderemos baralhá-las para que se nos discorra o pensamento pela lógica dos sons e da sua articulação? Do centro da linguagem, numa qualquer área cinzenta, saem os comandos obedecidos pela emoção, que forçam a complexa musculatura a emitir aquilo que nos vai num sítio todavia mais misterioso: a Alma!

Uns falam e discorrem sem nunca nada dizer, outros usam as palavras para se ouvirem a si próprios, outros há que as poupam e logo as atiram de forma rude, emudecendo muitas vezes quem os ouve. Mas sobretudo não há que mal gastá-las com aqueles que não as merecem, ou que delas se apropriam e as usam como se de um eco se tratasse.
Cada uma representa um pensamento e uma ideia única, que não pode ser replicada nem abusada, sob o perigo de desvirtuarmos a fábrica de sonhos do seu autor: o pensamento. Sempre adorei ouvir, escutar, absorver todas as histórias e estórias que se contam nas reuniões familiares e de amigos. Parte da nossa sabedoria é feita de bocados dos outros...
Para falar não é preciso muito, mas para saber fazer-se entender, demonstrar aquilo que se pretende, exige um talento muitas vezes natural e intrínseco, sempre ao sabor dos ventos da gramática. Admiro imenso os artistas da escrita, porque colocam as palavras mudas num arranjo aparentemente irracional, ganhando a força certa com a cadência da leitura. A maneira como conseguem juntar as letras em palavras, e estas em frases, muitas vezes fazem-me ler a mesma frase duas e três vezes, amiúde na tentativa vã dela me apropriar, mas a maioria das vezes apenas pelo simplório prazer de me voltar a espantar com aquela conjugação! Quantas teorias do fole não se teriam espraiado pelas penas da escrita?
De qualquer das maneiras aprecio muito mais os quedos mudos espaços entre as palavras, ou aquelas palavras que se dizem em silêncio, em olhares, gestos simples ou sorrisos francos. O prazer do silêncio é muito maior do que qualquer retórica adjectiva, é inato e carece de explicação. É puro, simples e sereno.
Haverá algo melhor do que apreciar uma paisagem estonteante em silêncio, degustar um bom vinho no silêncio da noite, ou até mesmo sentar-se numa esplanada num dia de verão a ouvir o barulho da azáfama diária, em silêncio..?
Não devemos gastar as palavras com coisas inúteis, não as devemos cansar, não as devemos incomodar com esta mania de lhes delapidar o sentido quando as evocamos repetidamente e em vão. Um silêncio cúmplice ou um silêncio contemplativo, são um bem precioso que devemos saber apreciar e ao mesmo tempo saber partilhar.
Palavras para quê...?
Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer”
MST in “No teu deserto”

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O cangalheiro

Sempre que alguém se fina, lá vem aquela pergunta sacramental: “Então e agora Sr.Dr., o que é que eu tenho de fazer...?”. A resposta também é sempre a mesma: “Não se preocupe, que a agência funerária trata de tudo, agora só precisa ir descansar”. E realmente este é o único malabarismo a fazer, porque a logística é por vezes complexa e deve ser deixada nas mão de quem sabe. Para além disso, e infelizmente, aos próximos não lhes resta pinga de disposição para sequer pensar em como será a urna...

As funerárias são sempre agentes comerciais míticos e fazem parte do subconsciente de qualquer...mortal. Todos iremos lá ter cabimento! Dizem que quando se passa por um carro funerário, nos devemos agachar para que não nos tirem as medidas! E o melhor é mesmo não arriscar, pelo que recomendo que se encolham sempre que os ultrapassarem ou quando tiverem a má fortuna de se cruzarem com um.

As agências funerárias são um bem precioso à humanidade, porque tratam de uma questão de saúde pública, evitam o espalhanço de doenças, e principalmente ocupam-se de uma logística que muitas vezes é dolorosa aos elos próximos.

Geralmente este é um negócio de herança familiar, com todo um saber e conhecimento transmitidos por gerações, e muitas vezes proporcional aos originais nomes comerciais estampados em arco nas montras: “Agência Funerária Irmãos Cadência”; “Agência Funerária Cá Te Espero Pereira”; “Agência Funerária Caixão D´Oiro”, ou até a mais singela “Agência Funerária Levita”, e mesmo a espanhola “Agência Funerária En-Terra”. A maioria deste negócio concentra-se nas imediações dos hospitais, com pequenas lojas, montras pejadas de santos e santas milagreiras, reclames sóbrios, e frases apelativas do tipo: “Descontos ao par”; “Fazemos leasing e abatemos no IRS”; “Tudo incluído, excepto o finado”; e mesmo a vanguardista no conceito “A trabalhar a terra desde 1921...”.

Eu até acho que quem devia comandar os destinos deste país eram os cangalheiros. São um exemplo de organização, de respeito pelo próximo, de apresentação, educação e sobriedade, que tanto agradecemos naquelas circunstâncias. O cangalheiro é amigo, compincha e solícito. Ajuda o cliente a escolher a madeira exótica do caixão, dá a opção de caixão tuning, caixão barbie, caixão caneca, ou até mini-caixotinhos com divisórias e gavetinhas para a guarda dos seus pertences.

Podemos também afirmar, que a língua portuguesa não foi muito generosa na adequação da gramática e fonética aos cangalheiros. Todos sabemos que o calceteiro calceta, o advogado advoga, o condutor conduz, e o massagista massaja. Imaginando, por exemplo, uma reunião de indivíduos num curso de computador sobre a perspectiva do utilizador, onde todos se apresentam, confabulámos a resposta do cangalheiro: “Boa tarde, o meu nome é Alfredo, tenho 32 anos, venho de corroios, como chouriços, e Cangalho”. Para além disso, se lhe deixarmos cair a letra “n”, fica “cagalho”, o que pode parecer um fanhoso, a feiosamente insultar o próximo, no uso de um vernáculo não muito próprio!

Aqui há uns tempos, houve o décimo segundo Congresso Internacional de Cangalheiros, realizado na Finlândia, e onde se debateram assuntos tão importantes como a introdução de música nos féretros aquando dos cortejos (inspiração baiana?), ou a realização de missas gravadas em vários dialectos africanos. A teoria do fole foi o argumento decisivo para pôr fim a esta contenda, e o Japão foi o único país a aprovar a moção, pois já possuía a tecnologia desde há vários anos.
Foi também aprovada a moção de censura à Índia, que teima em embrulhar os finados num lençol e lançá-los aos rio Ganges, e um voto de louvor a Salvador da Baía, onde se festejam os quinados, com vestes brancas e muita alegria candongueira.
Os américas, conseguiram por sua vez, ganhar o prémio inovação, pelas futuristas alterações ao tradicional papel da pequena agência funerária de bairro. Introduziram os velórios por vídeo-conferência, os caterings pré e pós-evento, a manutenção eterna da página facebook, e ainda promoções ocasionais, como a oferta de funeral completo aos familiares directos, no caso de óbito nas primeiras 24h do acontecimento.
Todos estes pressupostos malucos, servem para exorcizar o fim e dar vivas aos princípios, relativizando aquilo que é vida, e aceitando a sua contingência final com a mesma alegria despreocupada e banal.
Só um médico podia falar com esta ligeireza séria...

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Cumprir

Os aviões não param de partir e de chegar, com uma cadência certa durante o dia, e menos intensa quando o sol se decide a acostar. Trazem de tudo no seu interior: as malas carregadas de memórias a recordar; as fardas de verão e de inverno; os livros que nos exercitam Pessoa; os remédios da malária; a pistola que nos estranha, e nos faz descer do alto dos nossos pensamentos longínquos; mas sobretudo a imensa saudade que já se traz ao chegar.

Enquanto uns sentem a imprevisibilidade da chegada, outros culminam na alegria da partida para o regresso. Sim, porque só voltamos ao sítio de onde somos, e pertencemos a aqueles que nos querem.

Nos entre tantos, a vida escorre pela ampulheta com uma constância que não acelera, nem com um simples abano; umas vezes custando a passar, e outras sendo empurrada como a surpresa dum veloz alazão.

Os movimentos são constantes, a todas as horas e minutos, em boas e más alturas, e por fluxos de homens e mulheres robotizados, equipados e armados, vergados pelo peso do cansaço da viagem, ou quiçá do fardo que lhes pesa na consciência. Enquanto esperamos pela hora da saída que por ora tarda, ocupámo-nos em ocupar o tempo que muitas das vezes nos sobra, imaginando que memórias teriam trazido nas suas bagagens.

Os sorrisos sinceros dos filhos, os consolos e beijos das mulheres, as lágrimas das namoradas, os acenos dos pais, o sexto sentido das mães e os abraços dos irmãos. Podíamos imaginar que uns seriam engenheiros, doutores, mecânicos, calceteiros de chão firme, ou ainda músicos ou bailarinos, mas aquelas personagens têm outra vida paralela e misteriosa, que nunca ninguém irá descobrir. Vêm, guerreiam, convivem para sobreviver, e regressam com mais conteúdo na alma. Ou quiçá com mais buracos ainda por preencher.

Esta é uma verdadeira torre de Babel, onde chegam, partem, ficam, e persistem centenas de pequenas e grandes almas que resistem uniformizadas, sendo uma pequeníssima peça da solução que parece muitas vezes uma miragem. Do norte ou do sul, do frio ou do quente, do moderno e do antigo, são oriundos de todos os confins da terra, e de sítios em que o mundo não tem fim, para finalmente se aperceberem que a finitude muitas vezes é aqui.

Botas engraxadas, atavio regulamentar, galões aos ombros e pistola à cintura, contrastam com os que voltam de missões no exterior. O capacete, o colete, a metralhadora de cartuchos vazios, a fadiga do peso insustentável, e o pó entranhado nos seus absortos pensamentos de mais aquele dia, envolvem-nos com soturnas auréolas denunciando pesados combates. É um extenso submundo invulgar.

As guerras assimétricas, ou se resolvem num ápice, ou se adiam por sucessivos prolongamentos, e esta é com certeza das segundas. Nenhuma teoria do fole resiste a estas manobras de combate, com bombas suicidas, atentados indiscriminados, política de medo e insegurança, acenos de falsas bandeiras de moralidade, e sobretudo pelo desrespeito pela verdadeira verdade humana. Mas também há que contextualizar o sistema, a época, a cultura, e acima de tudo a condição humana local na sua essência.

Pode ser que haja esperança, pode ser que as balas se enterrem de vez, pode ser que as bombas se extingam na paz, pode ser que tudo se possa, mas que pelo menos, estes meninos sintam uma nova pátria.

Eu pelo menos vou cumprindo a minha parte...



sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Eleições no Mercado

A campanha tinha começado às zero horas em ponto, do último dia da Primavera, no Mercado de Corroios. O candidato mais bem posicionado à vitória nestas eleições históricas, tinha sido assassinado na bancada da cozinha de um restaurante elitista (ou etílista, conforme a perspectiva alcoólica...), dos arredores de Lisboa. Foi o maior Repolho da sua espécie nos últimos 50 anos, e chamavam-lhe o “Fenómeno do Entroncamento”, sendo um dos fundadores da Associação de Vegetais e Afins da zona Centro, liderando e fortificando um grande e poderoso lobby no comércio das saladas, sopas e gaspachos.

Eram memoráveis os comícios desta referência histórica no mundo dos vegetais. Falava sobre os problemas da reforma agrária, na lavoura, na desinfestação, na apanha e no transporte, no risco da invasão dos repolhos espanhóis, incitando à criação de um exército de barbas de milho nas fronteiras das plantações, com o objectivo de defender as linhas de cultivo e procriação vegetal, dos ferozes gafanhotos marroquinos. Os seus dotes de oratória política eram conhecidos por todo o mundo, recebendo líderes de outras associações e sindicatos vegetais de renome, como a Couve-de-Bruxelas, o Alho Francês, a Mandioca do Pára, o Tomate Inglês, a Baunilha de Madagáscar, e até representantes do grupo de apoio aos vegetais reclusos nos clepes chineses. Como bom diplomata e relações públicas que era, piscava sempre um olho às outras associações que simbolizavam nichos de mercado em expansão, como o Clube Incrementador das Algas e o grupo extremista “Os Vegetarianos Predestinados”.

A sua morte foi envolta em mistério, mas dizem que após o falecimento, o restaurante organizou uma semana gastronómica, onde se serviram oito dias consecutivos da melhor sopa de repolho e bacalhau no forno de que há memória. Tinha 63 anos de idade, um filho menor de apelido “Repolhão”, e deixou viúva a Batata-Doce, que prontamente se viu assediada pelo Pau de Cabinda.

Apesar disso o processo eleitoral não parou, e nessa altura perfilaram-se dois candidatos possíveis á vitória, que representavam dois grandes grupos no Parlamento da roda dos alimentos: O Tomate do Partido dos Vegetais Unidos, e o Kiwi da União Crescente dos Frutinha.
O primeiro tinha um passado sofrido, sendo um veterano da resistência às fábricas de ketchup na Azambuja, e assistindo à morte de milhares de camaradas, ou esborrachados pelos pneus dos camiões, ou torturados...perdão, triturados e cortados pelas finas lâminas da multinacional estrangeira. Era um socialista de princípios, mas um extremista nas acções de combate político, não olhando a meios nem a recursos para dizimar o adversário. Conta-se que certa vez até contratou umas Anonas assassinas para secretamente aniquilarem o seu mais directo opositor, a Melancia sem pevides.

A União Crescente dos Frutinha, por seu lado, tinha tido a maior ascensão como poderio sectário, na altura dos programas de saúde, onde se recomendava sempre uma peça de fruta a cada refeição, para uma boa e equilibrada alimentação. Houve inclusive o conluio de associações estrangeiras como a Inglesa, que lançaram slogans de campanha como: “one apple a day, keeps the doctor away!”. Na tomada de posse do Kiwi, houve muitas reservas quanto à sua capacidade de liderança, ao seu factor novidade nas saladas de frutas, e sobretudo às suas origens longínquas e antípodas das nossas. Era sempre visto como um emigrante de segunda geração, e ainda por cima nunca desfazia a barba!

A sua corrente ideológica estava mais na linha sindicalista e reivindicativa, com modelos como Lula, Wallesa e Torres Couto, mas ao mesmo tempo unificadora e propulsora das economias de mercado em grande escala, sendo um acérrimo defensor das fruticulturas como cerne de desenvolvimento do país. É verdade que se tivermos uma boa fruta, o crescimento acontece!

O debate derradeiro ocorreu no próprio mercado, onde as bancadas de fruta se acotovelavam com as bancadas da hortaliça e afins, enquanto o peixe e a carne ficavam às moscas. Afirmações provocatórias como “sua cabeça de alho chocho”; “és um ganda nabo”; “a juliana não abana”; e “a beterraba é comuna”, eram prontamente rebatidas com graciosidades da mesma ordem e calibre, do grupo do Tomate: “seu cabeça de melão”, “vou-te á fruta”, “ó ananás vais levar por trás”, “abaixo a macedónia”, e o clássico: “levas um banano, que nem sabes de que terra és...”

Nesse dia o clima estava tenso, o ar estava gordo, e o frigorífico mantinha as alfaces frescas. Mas os candidatos não se pouparam a esforços para digladiarem os seus projectos de intenções, as suas propostas eleitorais diversas, e até houve espaço para o leilão de uma couve roxa albina, uma verdadeira pérola da lavoura. Os especialistas dizem que houve um empate técnico, os comentadores não arriscam comentar, e a Dona Celeste da mercearia diz que os devíamos papar a todos!

Dois dias depois das eleições, e depois da contagem de votos em papel vegetal, o vencedor foi anunciado com surpresa pelo conselho de veteranos da ramagem, o Sr.Galho, com a devida pompa e circunstância:

- Tenho a anunciar meus senhores e minhas senhoras, que o comité regional de eleições suburbanas, segundo as regras da teoria do fole aplicadas à searinha da Camacha, declara como vencedor destas disputadas, ferozes, rasmenatadas e proscíbulas eleições...........a mui ilustre e saborosa Banana da Madeira!!!!!!!!!

domingo, 13 de setembro de 2009

Manicómio

De todos os sítios que me lembro com a perfeição que gosto, o manicómio é um deles. Arrumava-se o carro à porta, num pequeno largo que dava acesso à fachada de uma casa que nem parecia aquilo que era. A entrada parecia a de uma casa normal, adaptada à instituição, com quartos e salinhas transformadas em gabinetes e salas de reunião para psicoterapia. Os anexos eram muito maiores, e construídos posteriormente em edifícios contíguos com a traça madeirense antiga, centralizando-se o coração nuns belos jardins cuidados, que atenuavam o fardo das mentes que nele deambulavam.

O meu pai dava consulta dos olhos, todos os sábados de manhã, assistido pela Irmã Almerinda, uma verdadeira máquina a dominar as malucas mais malucas. De uma devoção extrema por Jesus e pelo meu pai, tinha sido de facto abençoada naquilo que fazia, e a sua vida de missionária cumpria-se nestas entregas de saúde e sobretudo de afectos.

Havia de tudo ali; a jovem que ouvia vozes do além; a mulher que insistia em lavar os joelhos 52 vezes por dia; a idosa que em mutismo se abanava em oscilantes desempenhos; a esposa desprezada que numa tristeza maior se tentou acabar por um penhasco abaixo; e até uma maníaca recitava Camões e Pessoa, na perspectiva teológica da teoria do fole, aos pombos que por ali depenicavam.

A ordem de grandeza da loucura, era inversamente proporcional à alocação das insanas, sendo que as malucas violentas estavam encarceradas em salas almofadadas, as “assim-assim” tinham umas horas de liberdade no jardim, as desvairadas inúteis estavam alheias deste mundo e fechadas no seu país das maravilhas, enquanto as lúcidas desmioladas ajudavam na lide diária das freiras.

Certa vez, uma das jovens perguntou ao Sr.Dr. se queria que lhe lavasse o carro de estimação enquanto dava consulta. Erro crasso nesta colaboração, foi assumir que tudo iria correr bem...Ao voltar da consulta, a “Agostinha dos berlindes” lavava com toda a alegria o automóvel do Sr.Dr. com leite de vaca gordo! O velhinho mas reluzente Toyota, teve de apanhar com duas enceradelas para recuperar o sorriso dental...

A nossa visita da praxe era feita por alturas do Natal, e se por um lado eu adorava a recepção das freiras, que preparavam um verdadeiro banquete de bolos, bolinhos e docinhos conventuais; por outro, as personagens que por ali vagueavam ou nos abordavam, causavam-me um medo irracional. Malucas a agarrarem os braços e puxarem com sorrisos desvairados, um miúdo de 10 anos, não era o ideal de tranquilidade. Se me dissessem que aos 18 anos umas malucas me agarrariam e puxariam, creio que iria sonhar com essa miragem, mas ali com certeza que não, e com aquelas malucas, só doido...

Costumávamos fazer a ronda da visita aos vários presépios e lapinhas espalhados pela instituição, não havendo ali lugar para a pagã árvore de Natal. O Menino Jesus tinha sempre lugar de destaque, rodeando-o uma decoração kitch e mensagens de boa-nova, escritas em folhas de papel pintadas com lápis de cor. Nas diferentes salas de convívio singular, as jarras estavam todas enfeitadas com arranjos de antúrios, estrelícias, sapatinhos e orquídeas, trazendo um pouco de vida aos espaços, contrastando com as cinzentas massas cerebrais torradas pelos infortúnios e pela loucura natural daqueles seres.

À aparente normalidade do ambiente, opunha-se o défice de sanidade mental presente, pelo que entrar nesses sítios muitas vezes era como penetrar numa dimensão irreal, em que a deslocação do nosso eu, se alheava do corpo para poder observar de longe tal amálgama de pensamentos dessincronizados.

Todos os anos pela mesma altura, pensava no quão nobre era a missão destas freiras, na devoção, na entrega simples, dedicada e de abnegação na troca, mas também me questionava se algumas daquelas diferenças mentais não teria a sua lucidez própria, o seu mundo particular que por vezes não entendêssemos e que devêssemos cuidar de forma diferente.

Costuma dizer o povo, que "de doutor e de louco todos temos um pouco". Felizmente que de ambos tenho bastante...