quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Lado a Lado

 
As rotinas criam-se ao longo dos tempos. Umas vezes assim, outras assado, umas impostas pelos filhos pequenos, outras pelos filhos já crescidos, outras ainda pela crise. Os homens adaptam-se ao destino que lhes é imposto pelo próprio destino. Esse sim, traça linhas rectas sem curvar por pedido.

Casados há 50 anos, eram mais um que dois. Ela enérgica, bem-disposta, irradiando e distribuindo alegria. Ele calado, reservado, sempre com um sorriso plácido e contemplativo da sua eterna paixão.
Flores nos aniversários, passeios no parque, bilhetes escritos em pedaços de papel, pequenas cumplicidades mudas com alcance de léguas e léguas.
Complementavam-se como uma teoria do fole perfeita.

Recém-casados, a vida corria como se sempre fosse verão e as coisas simples tinham um valor de coisas caras. Passear à beira-rio, ir ao cinema, tomar um café, oferecer uma rosa, ir à praia de mota significavam uma partilha permanente em grande placidez de espírito. Não eram necessários grandes restaurantes, nem compras chiques, nem viagens longínquas e exóticas. Aliás, o sítio mais longe onde até aí tinham ido, foi uma viagem na mítica vespa à Estremadura espanhola, para que os pais do noivo conhecessem a prometida. Toda uma aventura para a época. Uma travessia a dois, de um caminho que saberiam longo.

O primeiro revés foi logo o serviço militar em Ceuta. Estava-se em Espanha, mas numa Espanha estranha, onde apesar do domínio de Castela, se respira árabe e mais árabe. Cortês, educado e cumpridor, rapidamente deu por terminado o seu tempo obrigatório, num meio que nada tinha a ver consigo.
As tropas são sempre limitativas das liberdades individuais e muitas vezes castradoras do pensamento livre. Não há sobressaltos, tudo é regulado, tudo é previsível e controlado, por isso satura e cansa. O que seria de nós se não saíssemos do quadrado, se não nos excedêssemos, se em vez do caminho certo não atalhássemos pela aventura e pela descoberta...
Mas não se excedeu a si próprio, e voltou com a mesma paixão de quem foi ali tomar um café ao virar da esquina e veio.
Três filhos geraram, como uma continuação das suas próprias vidas. Tudo o que sabem lhes dão, tudo o que fazem lhes serve de exemplo. Mas a década era de recessão, e como tantos outros que lhes precederam, largaram a vida profunda para tentar maior sorte lá longe.

Por incrível que pareça, hoje já não há longe, tudo está perto, o mar já não separa. Quando se quer, quando nos apetece, à distância de um botão. A saudade esbate-se numa figura de voz e imagem, que antes a carta ocupava. Já ninguém escreve cartas aos parentes, aos amigos, às namoradas. Cartas de amor, de desabafo, de protesto, cartas em papel de linha azul. Levezinhas. Assim acabam com os selos!

Atravessaram oceano para um país de língua semelhante, mas com um calor que nem lembraria ao diabo. Em Caracas, a mesma loja de tecidos da terra tinha aberto uma filial para os vestidos e cortinados de tudo quanto era família abastada. Confiaram-lhe a missão, e como esta família não se separa nunca, foram todos viver uma nova vida, com novas sementes, novas paisagens e novos corações abertos para o sonho de vingar.

Assim como foram juntos, assim voltaram juntos alguns anos depois. O sonho não tinha acabado, mas sentiram que não valia a pena abdicar das pessoas, dos próximos, quando estes estão tão longe. Só se vive uma vez, e a selva venezuelana foi um apeadeiro para tomar o comboio de volta.

Viver junto é diferente de viver com. Viver com, tem o pressuposto de duas partes que convivem, mas que sobrevivem uma sem a outra. Têm vidas separadas que trocam experiências.
Viver junto, significa que os dois são a parte de um maior. Um, que não se dissocia do outro, mas que respira ao mesmo tempo que ele, que partilha o mesmo sentir.
Andar de mão dada, braço pelo ombro, beijos e abraços, não eram necessários para estarem juntos. O simples existir um com o outro, é de um significado tão forte que se adivinham os pensamentos e vontades de ambos.
-Estou aqui ao teu lado, dizia-lhe.
A idade avança e o mundo gira, mesmo que andemos para trás. Podemos enganá-lo e correr em sentido contrário, mas de nada serve, porque ao pararmos ele leva-nos para onde ele decide que se vá.

Nesse tempo vieram os netos. Disseram que nunca os veriam fazer a primeira comunhão, porque já cá não estariam. Disseram que nunca os veriam acabar o liceu, porque já cá não estariam. Disseram lado a lado, como sempre, que nunca os veriam acabar a faculdade, porque já cá não estariam. Disseram que nunca os veriam casar, porque já cá não estariam. E por aqui não disseram mais nada, esperando que o inevitável chegasse, sem imposição de tempo.

Tinham envelhecido mas os perfis estavam lá. Ela positiva, enérgica e cuidadora. Ele calado, sereno, um gentleman em todas as poses e ocasiões.
A perda de eficácia das células é inevitável com o decorrer do tempo. Ganham ferrugem, os músculos atrofiam-se, as cartilagens fazem atrito, os ossos ficam ralos, a pele ganha vincos como a terra ao secar, o coração dilata, e pior que tudo, o pensamento transvia-se, engana-se e baralha-se com facilidade.
Flagrante o escrever, o ditar, o ler, a confusão das letras que se percebem, e que também queremos escrever mas...não sai.

Nos últimos tempos a memória já lhe falhava, e não conseguia por vezes articular o pensamento como o raciocínio deveria. O jornal já não o lia bem, e a escrever, as palavras saiam-lhe tortas e em formato infantil. Queria dizer-lhe que estava bonita como sempre. Que a sua luz irradiava felicidade. Que o seu dia se enchia de ar puro. Que fosse sempre feliz que ele a veria.

Vezes sem conta tinha tentado escrever uma frase simples, mas já a fita era inteligível. O esforço da caligrafia era em vão. Sabia o que queria deixar na folha para todo o sempre, mas a caneta não obedecia ao comando fino da letra.
Naquele dia pediu um papel. Alisou-o com a mão trémula, e traço a traço, firme, desenhou a sua última escrita, desta vez com uma perfeição imaculada:
-Te quiero Lolita....
Isto sim, era o que queria que perdurasse.
E confirmo que ainda perdura


2 comentários:

  1. :)

    E perdurou. Absolutamente fã da teoria em todas as suas vertentes.
    Abraço forte
    ( uma maçã por dia e nem sabe o bem que lhe fazia )
    .

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  2. Viver junto será suficiente para que a simplicidade da vida nos complete. Quando li este texto percebi como nunca antes o tinha imaginado. Como almas gémeas... 'como o nosso melhor amigo e mais, a pessoa que melhor nos conhece, que acredita em nós primeiro que todos e mesmo antes de nós próprios, que nos incentiva a brilhar mesmo quando estamos perdidos num banco de jardim, tornando-nos melhores pessoas naturalmente, não pelo outro, mas porque assim o sentimos'.

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