segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A Coronária Voadora


É certo que o casamento formal obriga a uma clássica despedida de solteiro que cursa, na maioria dos casos, em plena desgraça física e atentado à resistência humana. Mas a despedida de solteiro mais exótica terá sido efectivamente a que passei num fim-de-semana em Estocolmo.
O noivo aí reside, e na altura decidimos se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. Isto é, agarramos em nós e aterramos de surpresa em terras suecas.
Descansem os intervenientes que não irei fazer um relato nem detalhado, nem sequer genérico das peripécias (inocentes, diga-se de passagem...), que até caberiam num volume inteiro desta teoria do fole.
 
Como tudo o que é bom acaba, o fim-de-semana fez-nos regressar num voo da Ibéria, com escala em Madrid. No aeroporto de Arlanda embarcavam cerca de 20 farrapos humanos, agastados com a jornada, mas felizes com o coração cheio de convívio e boas lembranças.
 
A classe económica ia cheia que nem um ovo, sem nunca ninguém se ter questionado o porquê da plenitude plena do ovo. Aquele ritual de fazer o check-in, tirar os líquidos, passar o controlo, revistar a bagagem, aguardar na sala de embarque, entrar um-a-um no avião, passinhos curtos no corredor, fez-me pensar o quão chipados já estamos para alguns procedimentos.
 
Dos meus compinchas, poucos foram os que não tiveram uma qualquer graça ou galanteio cavalheiresco para com as hospedeiras. Digamos que estavam numa alegre competição a ver quem sacava o sorriso mais espontâneo!
 
Malas de mão em cima, garrafas de água em baixo e capas atiradas para cima dos bancos, ajudavam na algazarra formada mas enlouqueciam o pessoal de bordo.
Tomamos de assalto os últimos lugares do avião na expectativa de cada um se encostar e tirar um sono reparador de tão noctívago fim-de-semana.
 
Cintos apertados, telemóveis em modo off, e alguns ainda a pedir rodadas de cerveja para aliviar o stress da claustrofobia, fizemo-nos à pista do aeroporto de Estocolmo seguindo em fila indiana um comboio de aviões sem carris.
Levantamos voo cerca de 30 minutos depois, comprovando que os vagões que nos antecediam erguiam-se nos céus, rumo sabe Deus com que destino.
 
Mal o sinal de apertar cintos se apagou, o cansaço deu lugar a um ímpeto de convívio e reunião, em que uns jogavam às cartas, outros pediam comida e bebida, outros metiam conversa com o par de suecas louras que abandonava o país, enquanto dois ou três dormitavam na medida do possível, e do permitido pelos restantes.
 
Levávamos cerca de uma hora de viagem e pelas apostas feitas sobrevoaríamos talvez a Alemanha da temível Merkel. Por instantes encostei a cabeça e reclinei o banco, fechando os olhos num preparativo soporífero.
De súbito uma chamada da chefe de cabina pelo intercomunicador.
-"Atención, atención por favor, se ruega la presencia de algun médico a bordo, de forma urgente en la classe ejecutiva". A voz denotava muita ansiedade e era ofegante como se algo grave se passasse na elitista "ejecutiva"... Demorei uns segundos a abrir os olhos, mas quando os abri já vários dedos apontavam para mim num coro de incentivos vociferais do resto do grupo. Mesmo que quisesse passar despercebido, seria impossível....
 
Levantei-me com calma e dirigi-me ao nariz do avião para cheirar o que lá passava. Afastei a cortina da classe executiva e dou com as hospedeiras num nível de stress e ansiedade enorme, correndo de um lado para o outro com caras de pânico estampadas no rosto.
 
Olho para o lado e vejo um homem enorme, presumivelmente nórdico, pálido, suado, ofegante, meio desfalecido, com a mão em garra sobre os botões da camisa, e num esgar de sofrimento muito grande.
Felizmente ainda falava e pude perceber que lhe doía o peito, como se os sinais clínicos não fossem evidentes o suficiente.
Pedi ao único hospedeiro que vinha a bordo, que me ajudasse a colocar o doente deitado no chão prevendo eu a possibilidade de uma massagem cardíaca iminente.
-"Mira, lo ponemos aqui en la frente".
 
Entre os dois pegamos naquele corpo pesado e meio morto, praguejando eu em português e ele em castelhano pelas hérnias lombares que nos estavam a entortar. Nunca eu me apercebera até então, da similar harmonia do vernáculo dos dois idiomas e o quão parecido éramos como povo. Se lhe tivéssemos acrescentado uns gestos figurativos, seria a comunhão perfeita entre nações. Irra, que o homem pesava mais que uma morsa..
 
De imediato e com autoridade coordenadora pedi aos meus assistentes do momento:
-"Ponle el oxígeno y passarme la maleta de emergência! Rápido!"
A chefe de cabine prontamente me trouxe uma malinha com uma cruz branca estampada e ar de kit de pensos do Toyota do meu pai. Como as aparências por vezes não iludem, assim a sacolinha desiludiu: pensos rápidos (muitos), ligaduras (poucas), álcool (não na quantidade que era ingerida lá trás), aspirina, paracetamol,  hidroxizina, nitroglicerina, e mái nada!
Bom, se o doente tivesse uma paragem era sempre bom saber que podíamos fazer compressões a 8000 m de altitude e pouco mais. Mas que raio de kit era aquele?!
 
No pressuposto óbvio de um claríssimo síndrome coronário agudo, meto-lhe uma nitroglicerina debaixo da língua e desfaço a aspirina de 1000mg, escolhendo dos trinta fragmentos obtidos o bocadinho que mais se assemelhava a um quarto do original, enquanto o doente arfava com dor.
 
O Comandante apareceu e apercebeu-se da situação, abordando-me muito calmamente e de forma muito profissional:
-"Doctor, estamos sobrevolando Zurique. Cree usted mejor desviar el avión?"
Não tive dúvidas e ripostei:
-"Si Comandante!" (Se bem que me apetecia mesmo era levantar, fazer a continência e dizer: "Si mi Capitán!", mas mantive-me ajoelhado...)
Perante a gravidade do caso e a histeria das hospedeiras que continuavam a correr de um lado para o outro sem eu perceber com que objectivo concreto, a decisão do piloto foi a de iniciar a descida.
 
Entretanto a cara do doente demonstrava um claro alívio da dor, a respiração estava mais calma e ele próprio já falava em guturejos eslavos. A coronária parecia estar a dar tréguas ao homem!
Que diferença fazem três coisas aparentemente simples...o oxigénio, a nitroglicerina e o ácido acetilsalicílico! Bom, acrescento a quarta: o médico..
 
Demoramos apenas 20 minutos na descida, e uma ambulância estava na placa esperando o transformado avião. Quando aterramos, já o doente falava, já me contava que tinha tido um enfarto do miocárdio e que uma artéria estava entupida pela cerveja, pelo tabaco e pelas comezainas. Mas sem dor, sem dificuldade respiratória e com um fácies de alívio que me confortava a mim e a todos os restantes.
 
Com a chegada dos paramédicos pude confirmar o diagnóstico electrocardiograficamente, ajudando a colocar o doente na ambulância.
O homem agarrou-me com força na mão, e olhou-me nos olhos como se estes falassem de gratidão: -"Thank you doctor! You saved my life!"
Só lhe consegui apertar a enorme mão com as minhas, e respondi - "Cuide-se.."- saindo da ambulância sem olhar para trás.
Estas são as recompensas que garantem que escolhi a profissão certa!
 
Voltei a entrar no avião e tive outra recompensa das hospedeiras, que claramente aliviadas, me presentearam com dois beijos de agradecimento cada uma. Tiraram uma cópia do meu cartão da ordem dos médicos e tive pena que uma ou outra não me tivesse pedido o número de telefone, que teria dado de bom grado…
Era o momento de descompressão e um ambiente de alegria reinava na cabine! Só faltava abrir o champanhe!
 
O pessoal da primeira classe também estava reconhecido e agradecido, alguns ainda a digerir todo o impacto da situação num silêncio reflexivo e introspectivo.
Convidaram-me a passar o resto da viagem em primeira, mas claro que optei por me reunir ao grupo agradecendo a gentileza.
 
Cruzo a cortina para a classe económica um pouco agastado, e sou prontamente brindado com uma chuva de aplausos tal e qual como um herói que liberta a aldeia do fogo inimigo. Épico!
Ainda assim, pelo canto do olho consegui vislumbrar um ou outro passageiro enfurecido porque tinha perdido uma reunião agendada, e uma ou outra família que tinha perdido o voo de ligação não sei para onde. Enfim, nunca se pode agradar a todos..
 
Assim acabou uma jornada estafante mas bem sucedida!
Desde então, sempre que viajo de avião levo umas aspirinas e uns nitromints…
Pelo sim, pelo não…
Um abraço!

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Eutanásia



Tudo tem um princípio, um meio e um fim. Sabemos como começa, e até podemos prever quando começa, mas nunca como, e quando acaba. É assim a vida...


E a quem podemos atribuir a gestão dessa vida? Ao próprio, aos outros? Será que o próprio tem e deve ter o controlo total da sua vida? Será que não cabe à sociedade, regular algumas componentes determinantes dessa mesma vida? De facto já o faz no seu dia-a-dia, mas não estamos a falar de questões mundanas ou de quotidiano que balizam o nosso traçado.


Enquanto estamos activos e independentes nas actividades, no escrever do próprio destino, temos legitimidade e liberdade para estabelecer as nossas fronteiras, os nossos abusos e excessos. Podemos até ter atitudes que no extremo destroem a vida, mas conscientes e livres dessa mesma acção.


A questão pertinente coloca-se nos momentos em que já não conseguimos controlar a navegação do nosso rumo. Nos momentos em que a doença nos tolhe os movimentos, em que o nosso cérebro se apagou irreversivelmente deixando apenas o piloto automático de alguns órgãos vitais, em que as máquinas nos sustentam esses mesmos órgãos que cessaram função.


Nesta sociedade de hoje, em que somos todos jovens, bonitos e eternos para todo o sempre, é difícil aceitar qualquer rasgo de fim de linha. Como se os comboios fossem alimentados por carvão de queima infinita, e se o tempo parasse um dia numa qualquer estação sem apeadeiro, como no faroeste.


Não há lugar ao términos, ao fim, ao simples acabou-se a que os velhos já se vão habituando. Tudo tem de ser salvo, todos os animais aliviados da forca, e até o sofrimento das couves evitado. Esta é a mensagem subliminar que nos vendem a toda a hora e em todos os canais!


Daí a discussão cíclica de um tema forte e controverso como a eutanásia. Será que é um direito? Será que é uma opção? Será que contrapõe assim tanto os valores humanos? Não vou discorrer sobre a terminologia associada à palavra, mas apenas delapidar à visão da teoria do fole, um diamante que está em bruto em muitas fortalezas mentais.


Assumo-me liberal, e como tal, creio que as liberdades individuais podem e devem ser respeitadas ao máximo. Fazer o que se quer, como se quer e quando se quer, desde que isso não implique lesão de terceiros, pode ser legítimo. Mas assumir um ato disruptor para com o próprio em plena posse das suas faculdades mentais, é algo que não encaixa completamente na minha visão. Por duas razões simples: pela valorização fortíssima que tenho da vida humana, e pela minha condição de médico.


Talvez não conceba de forma clara, como é que existem países em que os médicos fazem eutanásia assistida, programada e voluntária, a doentes elegíveis por critérios definidos. Este papel dúbio de médico-salvador que recupera vidas (literalmente do além) num determinado momento, e que no minuto seguinte assiste um fim de vida programado, é algo no mínimo bipolar. É certo que perante um doente terminal e grave, muitas vezes assumimos interpares o não escalonamento terapêutico, a não realização de manobras invasivas, o desinvestimento pleno, que sabemos terá as consequências de um desfecho fatal. Mas felizmente são casos pontuais em que a partilha de informação e capacidade de decisão com a família é determinante na decisão final. Segundo as recomendações do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, estas atitudes são correctas e devem ser tomadas num consenso o mais amplo possível.


O sofrimento de alguém que tem uma doença incurável e terminal é tremendo, e acredito que o próprio tenha pensamentos de autodestruição, mas isso não legitima a vontade de que lho façam. Mesmo que chegado a um ponto de não retorno, mesmo que saibamos quando a vela se apagará, não me sinto confortável em accionar activamente algo que vai influenciar o tempo do desfecho.


Para mitigar o sofrimento do próprio e dos familiares, dirão alguns? Minorá-lo com certeza, e de todas as formas possíveis, especialmente com a valiosa e fundamental intervenção dos Cuidados Paliativos, mas não ceder à tentação de o desligar só porque nos incomoda e impressiona. Se este é o factor primordial, então devemos criar condições e o terreno estrutural para que haja acesso universal a esses mesmos Cuidados Paliativos.


Estou também em perfeito desacordo quando se diz que perdemos a dignidade com o fim de linha de uma qualquer doença. A dignidade cria-se através de um historial de vida e de conceitos criados, que não podem ser distorcionados por uma incapacidade terminal de se relacionar ou interagir. Talvez concorde que a dignidade mude de forma nestes casos, mas aquela pessoa mantém a sua dignidade intocável.


Nos doentes terminais há quem veja um fardo e um ónus de trabalho, mas sabemos de antemão que é destas lutas que nascem as resistências e as resiliências das nossas vidas. Quer para o doente, quer para os que o rodeiam, servindo muitas vezes como exemplo de luta e perseverança. Estupidamente, a perda terá de se transformar em algo superado e combatido. Assim aprenderemos que na vida não carregamos no interruptor e as coisas não desaparecem no escuro dum qualquer quarto.


Num país como o nosso, onde se morre muitas vezes sem familiares, anonimamente num hospital, em sofrimento, sem dignidade, percebo a advocacia da eutanásia, mas o crivo destas acções tem de ser ponderado.


Neste caso, defendo empírica, emocional e profissionalmente que a eutanásia deve estar balizada por uma série de itens fortes, e decidida em última instância caso-a-caso, por um conselho de pensadores (profissionais de saúde, juristas, filósofos, religiosos, políticos, outros), que analisariam e decidiriam da sensatez de um arremesso como este por parte de um doente.


Recebi há tempos de um amigo, o convite para escrever sobre este assunto para um jornal. Confesso que não sei se me incluiria na barricada do sim ou do não, simplesmente porque a complexidade é tão grande que estaremos sempre em omissão ou em excesso para muitos.


É um tema que precisa e merece um debate alargado, independente de lobbys políticos, religiosos ou sectários, para que as pessoas se esclareçam, se informem e opinem.
Mas sobretudo para que pensem, e pensem pelas suas próprias cabeças. Não apenas com o coração..


Não será fácil, e é culturalmente desafiante numa sociedade que cada vez mais, tem dificuldade em reunir consensos.

Um abraço e vivam a vida!



terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A Conquista!

A primeira vez que pisamos o palco, consegui antever aquela plateia repleta de gente anónima, conhecedora e com os olhos atentos em nós! Confesso que é um pensamento intimidante e perturbador de certa forma. A sala era enorme, e assim em bruto, despida de público que nos avaliasse, pude apreciar as linhas sóbrias e elegantes que lhe suavizavam a imponência.


Com os microfones dispostos em meia-lua, o som de retorno estava muito baixo, o micro da percussão estava a entrar no geral, o feedback era frequente, e a captação das vozes não se apanhava. É esta a utilidade dos check-sounds, porque ao fim de meia hora e muitas trocas e acertos na mesa de mistura lá no fundo da sala, a equipa técnica conseguiu equalizar um som harmonioso e equilibrado.


Este espectáculo que íamos apresentar já levava alguns meses de rodagem, e por isso a maioria de nós se sentia confortável na execução e interiorização do ritmo e sensibilidade das músicas. Um espectáculo dedicado ao mar e às suas gentes, que no fundo sempre foram as nossas gentes. Um hino ao nosso cancioneiro e um projecto que nos obrigava a ser melhores que a vez anterior.


Mas esta apresentação não teria nada de especial a não ser pelo facto de ser na metrópole do norte. Não sou de bairrismos fanáticos, aliás, nem sequer sou de Lisboa, mas todos somos profundos conhecedores da velha rivalidade entre estas duas capitais. Por isso, virmos de Lisboa e apresentarmo-nos pela primeira vez no Coliseu do Porto, era algo que nos dava um nervoso miudinho e nos criava a real expectativa de que não podíamos falhar.


Durante o resto da tarde conseguimos ocupar uma das salas de ensaio e passamos ali umas belas horas de afincado trabalho. Sob a batuta dos obsessivos ensaiadores, repetíamos as partes mais frágeis, afinávamos detalhes de última hora, sincronizávamos as vozes até à exaustão, com muita gargalhada e boa disposição à mistura como válvula de escape. Acima de tudo era o peso da responsabilidade e determinação em fazer boa figura!


Com a voz frágil que tenho, não arrisquei a beber cerveja durante todo o dia, pois os frios podem estancar a voz. Sendo um dos solistas, que ainda por cima teria a responsabilidade de abrir o espectáculo, chegou-me ao ouvido o rumor que um cálice de Brandymel ajudaria nestas performances. Usei da fama e bebi mais um ou dois, para que o resultado do remédio fosse maior...


O jantar do dia foi precedido por uma pausa, aproveitada para beber um café no lindíssimo Majestic. De facto o Porto sempre me encantou, com os seus segredos, com os seus tesouros bem conservados, com a sua tradição, mas sobretudo com tudo aquilo que de mais valor tem: o seu povo! Gente acolhedora, sincera, amiga e com uma natureza que nos inspira confiança. Gosto sobretudo da verdade que emanam e da integridade a todos os níveis. Gosto, sim senhor!


As ruas circundantes estavam a ficar intransitáveis à medida que se aproximava a hora do festival, com lotação esgotada já há muito tempo. Nestes eventos imbuímo-nos de um espírito de festa tão abrangente que de forma natural se estende ao sentir vibrante da cidade, sob a batuta vigilante da teoria do fole.


Com este primor de ensaios, claro que perdemos o jantar da cantina e acabamos por comer uma francesinha mesmo em frente ao coliseu, fruindo o movimento e a azáfama natalícia da rua. Soube tão bem, que rematei com um Brandymel aquecido (a ver se maximizava as suas propriedades terapêuticas), e de volta aos camarins para um último ensaio antes de entrar em palco.


Agora sim é que entrava o nervoso miudinho!
Os semblantes estavam mais sérios, e mesmo que tentassem disfarçar não conseguiam esconder uma certa preocupação e tensão.


Tinha sido o intervalo e a tuna que abria a segunda parte já estava em palco.


Subimos as escadas posicionando-nos no backstage, para que assim que acabasse o grupo anterior entrássemos nós. Aquela espera é um momento de ansiedade e concentração, tendo como hábito andar de um lado para o outro, pedindo repetidamente a uma guitarra ou ao acordeão que me liberte o tom da música. Isto de entrar "a seco" e sem rede, pode parecer, mas não é fácil…


Já está! A tuna anterior acabou a actuação e cruza-se connosco de feição descontraída e aliviada por nos passar o testemunho, pronta para festejar em grande. Que inveja!


Enquanto o pano está em baixo, tomamos as nossas posições em frente aos microfones. Quase um por voz, e um por instrumento. Fico posicionado entre o acordeão e a percussão, ajustando e alinhando o micro, mas nesta altura já só desejo é entrar em acção! Cada um traça a sua capa evitando derrubar o sistema de som montado, enquanto do outro lado da cortina se desenrola um pequeno sketch humorístico, dando-nos tempo a posicionar correctamente. Falam de um qualquer momento futebolístico norte-sul...


Bom! Tudo a postos e umas últimas palavras do psicólogo de serviço: "Sorriam!", "Força pessoal", "Dicção, e cantem à homem!”, gerando em resposta uma onda de comentários murmurados e palavrões à mistura..


Oiço então os apresentadores num coro retumbante:
-"Senhoras e senhores fiquem então com...A Estudantina Universitária de Lisboa!", ao mesmo tempo que o pano subia e os holofotes nos iluminavam o rosto esvaindo-se engolidos pelo negro das batinas.


Nesse preciso instante e num ímpeto de animosidade, uma chuva de insultos, impropérios e duríssimas palavras que em nada lisonjeavam as nossas mães ou mulheres, encheram a sala num basqueiro verdadeiramente ensurdecedor. Como se estivéssemos num estádio de futebol e entrasse a equipa mais arqui-rival do clube da casa. Afinal a rivalidade Lisboa-Porto tinha sido transposta para esta arena e teríamos de a enfrentar!


Confesso que estremeci, e ao rodar a cabeça pude ver vários sorrisos amarelos estampados em caras de pânico! Em alguns conseguia ler nos olhos e adivinhar entre dentes o pedido "Começa a cantar car@€;)5&@!0...".


O público continuava a apupar ruidosamente, mas permanecemos firmes e em muda posição durante uns infindáveis 4-5 minutos! O Coliseu quase que vinha abaixo...


Não podia desatar a cantar a solo com aquele protesto...


Uma serena calma me invadiu enquanto seguia pelo canto do olho os tiques nervosos de alguns que eu já conhecia. Não iria começar sem que se calassem, e a certa altura a tuna ficou mais nervosa comigo por não começar, do que propriamente com o coro de assobios....


Finalmente as vozes se foram encolhendo, não sei se pelo cansaço se pela nossa inderrubável afronta, e aí retomei de confiança. Quando o público se calou, olhei de novo para o lado e anuí subtilmente com a cabeça como quem diz: "Vamos a isso!".


Fechei os olhos, respirei fundo e soltei com segurança a primeira estrofe do Infante:
-"Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce"...


Nesta altura o silêncio na sala era absoluto, e o coro entrou com um corpo tão compacto quão impressionante. Arrancamos aplausos espontâneos e verdadeiros no fim da música! Estavam rendidos! Ufa!


Numa apresentação sóbria, completa, com exímia execução e cheia de alma, fomos música-a-música ganhando o público e conquistando os seus corações. Boas execuções, força e corpo nas vozes, timings perfeitos e apresentações sóbrias, engrandeceram músicas originais e arranjos lindíssimos. Tudo isto, fez com que no fim de cada música os assobios se tivessem transformado em palmas, e os apupos em bravos! Que reviravolta surpreendente! Que momento!


Quando saímos de palco, os abraços sentidos aliviaram a tensão acumulada naqueles 40 minutos e entrámos em modo descompressão com sensação de missão cumprida.
A Estudantina tinha mostrado todo o seu valor, classe e postura de forma exemplar!


Uma noite memorável!
Um abc


PS: Neste festival arrecadámos os prémios de melhor solista e 1º lugar…J



segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A falésia


Naquela montanha nua, o vento cortava o ar como uma fria lâmina atravessando espíritos invisíveis. Uma ou outra árvore polvilhavam a paisagem de verde, nas rochas escuras que se construíam sobrepostas em escarpas abruptas e desamparadas.

Apenas uma casa no topo se destacava pela cintilância e conforto da lareira, que exalava um fumo branco e sereno da chaminé. Lá dentro, Anne murmurava com pesadelos que variavam de intensidade, viajando nos trilhos suspensos da loucura imaginada dos sonhos. Frank dormia placidamente sobre os próprios sonhos que fraca energia lhe sugavam, virando-se devagar na cama para aliviar o peso constante nas articulações.

Ela começou a acordar antes dele, na esperança de não encontrar a realidade igual ao sonho. Passou a levantar-se ainda o sol não existia, e a esgueirar-se da cama como uma luva que se desencaixa da mão, com a viscosidade de um sabonete a fugir das mãos.

Descalça, apenas com a camisa de noite branca vestida, brilhava ao luar esmorecido, e assim permitindo que todas as corujas lhe seguissem o rasto. Deixava a porta encostada porque sabia que ia sempre voltar, mas mesmo que não voltasse, podia um viajante desguarnecido esgueirar-se e sentar-se à lareira à sua espera.
Caminhava pelo caminho inóspito sem olhar para o lado, sem se distrair, sem se entreter com a lama que lhe sujava os pés nem com o vento que lhe empurrava o cabelo para a cara. Uma teoria do fole jazia numa vala à espera de dono.

Ele ficou lá atrás, no aconchego da luva..

Parou na beira do precipício, onde o mar começava e as ondas por vezes batiam tentando subir e apanhar-lhe as pernas para a levar.
Atirou uma garrafa e viu que tempo demorava a estilhaçar-se nas rochas. Contemplou com os seus olhos verdes aquele efeito de desconstrução, e aquele impacto pulverizado em vários fragmentos de sons minúsculos.

Lançou uns talheres que caíram muito rapidamente ao mesmo tempo que davam voltas no ar, numa dança improvisada. Ficou a apreciar o tlim desvanecendo e a faísca do atrito que provocavam com as pedras grandes e imutáveis.

Primeiro olhou-se no espelho penteando a sua imagem antes de a atirar gravada na sua superfície. Demorou a cair mais tempo que os restantes objectos, talvez porque ao rodopiar no ar, reflectisse no caminho aquilo que a vida nos dá: flores, pedras, terra, céu e chão. Vertiginosamente caiu partindo-se em mil bocados estridentes, que por sua vez reflectiram mil imagens diminutas.

Não deu corda ao relógio, mas atirou-o com força para que o tempo acelerasse a queda. Despedaçou-se em parafusos, ponteiros e partes de metal que pensava não existirem, num barulho rouco de oficina de carros velhos. O tempo daquele, parou ali.

Não precisava do seu urso de peluche, que guardava desde a infância. Não era ela que o guardava, mas sim ele que lhe guardava os seus segredos. Respirou fundo, fechou os olhos e lançou-o no abismo imaginando que som faria ao estatelar-se nas rochas. Caiu de braços abertos para abraçar o mundo e quando o encontrou fez um ruído amortecido pela espuma que apenas ela conseguia ouvir.

Assim foi durante o pico da lua, em que lançava objectos e lhes tentava adivinhar o som que faziam ao esmagar-se no fundo daquela negritude que não alcançava ver, apenas ouvir. Lançava tudo aquilo exorcizando os seus medos, ou outros eus, as suas hesitações e frustrações.

Sempre tinha adivinhado o barulho de todos os objectos, como se cada um tivesse uma identidade própria e um som característico e inconfundível. Mas nunca se lançou a si própria. Não imaginava como seria o seu barulho e que ruído faria.
Fechou os olhos e imaginou a atirar-se dali como um peso morto, como uma viagem que atravessasse as nuvens ganhando velocidade na descida. Desamparada mas com uma cheia sensação de liberdade, como se a liberdade pudesse ser cheia, e medida no tempo de uma descida. Uma coisa tão lata com limites e fronteiras não existe.

Imaginava como seria o som do seu corpo a esborrachar-se contra o chão. Um som seco de carne e ossos, que espalharia sangue e talvez um suspiro exalado de dor em milésimos de segundo. Iriam os seus olhos abertos ou fechados quando se desse o impacto? Era essa a dúvida que a atormentava ...

Abriu os olhos e respirou fundo, engolindo o mundo numa golfada revigorante.
Fez o caminho inverso e empurrou a porta que deixou entreaberta. Não estava ninguém à lareira e Frank remexeu os lençóis da cama como se despegasse do sono profundo.
Foi acolhida de novo pela luva reconfortante, com o espírito mais leve, mais aberto, mais receptivo.
Assim que ele acordou, ela sorria docemente como se estivesse à espera.
Livre daquela bagagem que lhe pesava e que jazia no fundo do precipício...


Inspirado na música "Hyperballad"-Björk

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Liberdade



A liberdade é uma dimensão com uma importância espantosa! Uma importância que deveria ser usada e utilizada por todos. Pelo próprio, pelo outro, pela comunidade, pelo povo, pelo mundo. 
Começa por ser um conceito primeiramente individual, e só depois se estende de forma colectiva. Não é para todos, não é fomentada por todos, mas todos a deveriam poder exercer e dela fruir.

Curioso como já de si, algo que não devia possuir amarras, está contido pelos muros da palavra. Se pensarmos numa lógica puramente linguística, sentimos que a palavra liberdade fica truncada e manietada da sua verdadeira abrangência. Se lhe trocarmos as letras ou invertermos a ordem, o significado deixa de existir, a palavra já não existe! Refém da sua existência visual e escrita.

A prisão física é o componente mais ilustrativo da perda de liberdade. O cercearem-nos da liberdade de movimentos, de não podermos extravasar uma zona delimitada é uma condicionante terrível. Como verão o mundo os presidiários, pelas grades de uma janela que os impede de libertar o seu corpo? Esta limitação aos nossos movimentos e a imposição de regras, sem dúvida representa um castigo e uma punição pesada naquelas vidas sentenciadas. Os mesmos muros e as mesmas rotinas que desgastam os corpos, e que por sua vez arrastam as mentes para um caminho de resiliência, mais do que resistência.

Se repararmos nas nossas vidas, reconhecemos que muitas têm a sua liberdade condicionada pelo trabalho, pela família, pelo estado, pela falta de dinheiro, e por muitas outras diversas circunstâncias. Existe na maioria dos casos, uma realidade ou uma conjuntura que nalguma etapa do desenrolar da nossa liberdade, se interpõe e nos obstaculiza o avanço no terreno. Mas a liberdade vai em crescendo, progredindo e somando pequenas liberdades que nos dão até mais autoconfiança. Em última instância e extremando as situações, tudo nos pode condicionar, mas conscientemente não podemos actuar plenamente livres em todas as opções, pois isso nos poderia levar à apologia da anarquia e ao princípio do caos. Estou em crer que todas estas fronteiras que nos condicionam e delimitam a expansão das nossas escolhas, se transformam numa barreira natural ao excesso de liberdade que poderíamos eventualmente tomar. Senão, onde iríamos parar? 
Em crescendo de liberdade corremos o risco de cair na libertinagem...

Haverá algum limite à liberdade, ou ela pode ser infinita...? Em teoria, devíamos sempre reger os nossos princípios por aquilo que pensamos e escolhemos fazer, mas será que isso é o melhor para nós ou para o outro? Será que não colide com nenhum arco de conforto de terceiros?

A verdade é que a liberdade individual e as suas escolhas nunca serão demais, e o verdadeiro limite deve ser aquele que cruza com a independência do outro. Isto é, a minha liberdade de acção é em teoria total quando essa acção não afecta terceiros. Quando não ofende, quando não interfere, quando não influencia negativamente ninguém nem o próprio. Esse deverá ser o limite da nossa liberdade. Deveria ser uma regra básica e para mim constitui-se como um pensamento chave na construção de uma sociedade justa e tolerante. A liberdade é o direito de fazer tudo quanto não prejudique a liberdade dos outros.

Um dos aspectos mais valiosos da liberdade que temos, é a de poder escolher o nosso destino sem condicionalismos, sem interposições, sem preconceitos. Ser livre de traçar o nosso rumo e de fazer as nossas escolhas de vida é de uma riqueza imensa, porque nos faz passar por um exercício importante para a maturidade que é a análise e reflexão. Depois de analisarmos e reflectirmos sobre o que quer que seja, tiramos as nossas conclusões e assumimos os nossos caminhos. Se tivermos a liberdade de poder escolher o melhor, então seremos felizes porque pudemos optar. E a liberdade verdadeira não se compadece de fios ou amarras que lhe tolham o rumo, ou por ventos que a puxem para trás. Mas para termos estas opções temos de estar munidos de instrumentos que nos possam dar a tal liberdade de escolha. A autonomia física, a emocional, a financeira, a laboral, são muito mais determinantes que a independência, porque implicam uma gestão do próprio. Mesmo que dependam de algo ou de alguém, têm implícito um envolvimento e uma aprendizagem em moldes positivos.

No entanto, de nada valeriam todas estas liberdades, se não existisse a mais importante de todas: o pensamento! Aqui a liberdade é infinita, as fronteiras não existem, e a capacidade de produção pode testar os mais diversos modelos e cenários sem qualquer limite. Por isso o pensamento nunca poderá ser preso e será sempre livre de divagar sem paredes invisíveis que lhe borrem o alcance do horizonte. É esse o último reduto do homem. 
Podem prendê-lo atrás de grades, podem tapar-lhe a boca, podem torturá-lo, podem privá-lo de tudo, que o seu pensamento conseguirá gritar mais alto e sobrepor-se a aquilo que lhe querem impor.

Cabe-nos dar o exemplo de uma liberdade sã e contagiante.

Pratiquemos a liberdade e lutemos para que os outros a possam exercer também!

"Find your freedom. Live your life. Free the world" 


Um abraço livre

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A Fuga dos Refugiados


Não é apanágio da teoria do fole andar na vanguarda da notícia e do momento, mas esta crónica foi redigida sobre os acontecimentos, o que só por si já lhe confere algum grau de parcialidade e quiçá menor amadurecimento, mas foi o que saiu...

Falo da questão dos refugiados sírios e iraquianos. Se nos detivermos na imagem do refugiado, ele transporta-nos de imediato a um imaginário distante no tempo e no espaço. Algo que ocorre no quotidiano cíclico de um qualquer país pobre e conturbado, mas que neste momento se encontra nos portões da civilização ocidental, constituindo-se ironicamente como o retorno do boomerang que lançamos às nossas guerras longínquas. 

Não é um problema novo, nem sequer para este velho continente. Basta olharmos para a história, e tudo o que ela nos demonstra, para sabermos que estas migrações por motivos bélicos, políticos, ambientais ou expansionistas irão estar sempre a acontecer.

No entanto, vemos muita indignação, muita raiva, muito sofrimento telepático e muita mobilização até, perante as imagens que todos os dias nos aparecem na televisão.

Causa revolta ver crianças inocentes a chorar, a sofrer pela indefinição do futuro que se estampa naqueles rostos! Causa revolta ver seres humanos acurralados como animais, à espera da esmola de cruzar uma fronteira para um mundo melhor! Causa revolta ver diariamente corpos a boiar e a dar à costa, enquanto jantamos confortavelmente nas nossas casas! Estas pessoas fogem dos horrores da guerra, da morte, da fome, da perseguição, em busca de uma esperança, de uma oportunidade. Apenas uma oportunidade...

Tudo isto causa revolta, mas não causa a revolução necessária!

Não desperta consciências profundas, reflexões ponderadas e uma análise fundamentada sobre um grave problema mundial. Os intelectuais e pensadores recolhem-se numa espécie de autismo selectivo. O jornalismo sensacionalista e bacoco, também não permite que a opinião pública reaja de forma construtiva e pró activa. As redes sociais espalham como uma labareda, tudo quanto é imagem ou "facto" bipolar, extremando cada vez mais facções e alimentando muitos fantasmas desconhecidos e medos acocorados no subconsciente. Os políticos fracos de ideologia e submissos à malha dos barómetros de sondagens, andam à deriva de soluções imediatas e sem plano traçado para um problema que não tem fim. Ainda assim, as instituições são as que respondem de uma forma mais racional e honesta perante tudo, talvez porque tenham menos compromissos de agenda...

A questão síria, iraquiana, líbia, afegã, curda, etc, não apareceu agora! Já existe há muito tempo, e foi despoletada pelo ocidente. 
Pelos nossos governantes, pelos nossos políticos, pelos nossos jornalistas, que teimam em moldar o mundo à sua maneira. Que insistem em brincar aos mapas geopolíticos, como quem mexe peças de um tabuleiro de um jogo de mesa. É dado adquirido que qualquer intervenção por mínima que seja ou qualquer mudança drástica, tem consequências imprevisíveis e causa um efeito bola de neve. As mudanças abruptas nas sociedades têm sempre um risco enorme, sendo potenciais geradoras de desigualdades e conflitos que causam muito sofrimento. 

Condeno evidentemente as ditaduras, mas as tiranias abruptamente cessadas das figuras de Saddam Hussein, de Kadaffi, de Mubarak e mesmo as de Bashar al-Assad(?) terão criado mudanças melhores? Não! Criaram uma tal instabilidade, que culminou numa terra sem lei e sem comando.

Não, também não devemos baixar os braços nem deixar de intervir, mas criativamente tentar estabelecer uma cruzada pacífica e de longo termo para assim gerar rupturas progressivas e adaptativas.

O ser humano é por instinto reactivo, e nunca pró activo, pelo que estas "ondas" de refugiados fazem brotar areias movediças nas relações entre povos. Estamos num perigoso e primitivo caminho de reacender as chamas de xenofobia e discriminação, sendo esta uma batalha que forçosamente tem que ser ganha pelos exemplos positivos que demonstramos.

Dissequemos uma das imagens mais marcantes desta história recente: Alguém se lembra da fotografia do corpo do menino refugiado, inerte na praia? Aylan Kurdi de seu nome. 3 anos de idade...
É uma imagem fortíssima, que não nos deixa palavras nem para a descrever, mas atrevo-me a perguntar: E se a criança não fosse "branca"? E se não tivesse roupas ocidentais como as dos nossos filhos teria o mesmo impacto? E que posição tão frágil, desamparada e de abandono..! E que dizer da simbólica passividade do polícia que não tem o instinto imediato de colher a criança!?E quando a recolhe, não lhe dá "colo", transportando-a como um tabuleiro! E quantos tiveram e continuam a ter o mesmo destino...

É de facto uma foto impactante, marcante, que causa comoção e nos indigna de uma forma incrível pelos sentimentos que gera... Há tantas interpretações e análises subliminares nesta fracção de segundo, que quase já adivinho que seja a foto do ano.

Ninguém pode ficar indiferente a estas tragédias, e acredito que saibamos ser melhores a cada dia que passa e à medida que nos formos apercebendo das necessidades do nosso próximo. É inconcebível que o ocidente não se entenda, que os EUA se mantenham alheados, que os países árabes ricos assobiem para o alto.

Ao mesmo tempo percebo o desnorte e o desespero da Europa! 
Uma Europa que nunca na vida esteve unida, não pode ter a expectativa de se unir em redor de uma causa muito conturbadora. Percebo os medos de receber desconhecidos na nossa casa, mas dêmos-lhes pão e intuiremos dos propósitos. Percebo a incerteza de isto ser aproveitado para um cavalo de Troia, mas temos de monitorar de perto aquele que vem de longe, assim como vigiamos os "nossos". É verdade que os terroristas são uma ameaça real e utilizam-se de qualquer facto ardiloso para lançar a tragédia e o pânico. Percebo a pressão que os sistemas sociais irão ter, mas adequemos a resposta diluindo o problema por todos. Percebo o colapso social e económico a que podemos chegar, se não houver bom senso num acolhimento partilhado e envolvente, em vez de um perigoso acantonamento. Não podemos absorver o mundo inteiro neste espaço, por isso percebo a angústia do desconhecido. São momentos imprevisíveis da história...

Mas como utópico que sou, vejo que a Europa tem agora a oportunidade de envolver o mundo inteiro nesta batalha. A oportunidade de fazer jus à sua designação de "União Europeia", dando um exemplo claro de solidariedade e fraternidade, numa resposta incisiva, rápida e unida no acolhimento. Menos discussão e mais acção!

O segundo enfoque, claramente o mais importante, deve ser feito na origem do problema. Tem de haver uma movimentação no sentido de ajudar a resolver os conflitos e as questões na sua origem, no seu país, na sua zona geográfica. É fundamental ter essa coragem!

O exemplo que sair daqui, terá de servir de jurisprudência a todos os outros conflitos mundiais, e cada foco que surgir deverá ter a mesma resposta. Seja no Médio Oriente, seja em África, seja onde fôr!

Para o bem desta humanidade...


  

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Ginjabol



Nos antigos tempos romanos havia uma aldeia onde o desporto era praticado com afinco, dedicação e muito empenho, mobilizando tudo e todos em torno de uma tradição milenar: o Ginjabol.

Estes embates preparavam-se durante semanas, com estágios parcelares nas melhores adegas do país e idas regulares às missas dos Adventistas para ensaio dos cânticos de claque. Versavam sobre os mais variados temas com títulos sugestivos como “As bolas dum anjo”, “Levado pelo pé, com Jesus eu vou”, “A falta do pecador” e sempre a terminar, o épico “Dia do Apito final”.

No próprio dia do jogo, as forças policiais dispunham-se em bloco em torno das roullotes mais importantes, para permitir a entrada de uma forma ordeira e sóbria no recinto. À polícia montada estava reservado o show erótico, que antigamente era perpetrado pelas manas Romanov e sua caniche da Tasmânia. Toda a festa se montava em redor da praça de touros onde decorria o jogo.

Desde os cuspidores de fogo que eram aproveitados para assar os frangos no espeto, às farturas radioactivas com dupla camada protectora, ao algodão doce com grumos de cevada, às entremeadas de lípidos polinsaturados, e até às bifanas sagradas da porca da Marinela, todos se uniam alegremente ao circo montado. Era curioso constatar que lado a lado conviviam os vendedores de cachecóis, bandeiras, pins, sapatos, verdura, andaimes, chámon e sanitários.

Geralmente era desta aldeia a equipa que defrontava a selecção nacional da Lusália, constituída na altura por jogadores cirróticos e barrigudos com alta agilidade para o jogo mental de cultura védica.

Quando os machos jogadores da selecção entravam em campo com os seus ursinhos de peluche, robe, pijama e rolos no cabelo, eram entusiasticamente recebidos com mousses vegetais, óleos de sebo de girafa, algálias de longa duração, e exfoliantes de casca de tremoço das raras quintas capitalistas e feudais de Corroios.

Dentro do estádio, dum lado do campo posicionavam-se os melhores representantes dos Lusálios, enquanto do outro se colocavam os anões da Beira Baixa. Esta casta conhecida carinhosamente pelos “Beirinhas”, era sempre um adversário aguerrido, famoso pelos seus golpes de cabeça no baixo-ventre quando os ânimos lhes subiam à guelra. Com um centro de gravidade mais baixo, conseguiam muitas vezes passar pelos entrefolhos dos adversários, fintando-os com dribles de ballet ucraniano.

Este jogo original, desenrola-se por tradição numa arena circular com três orifícios na zona central com cerca de 8cm de diâmetro. Cada equipa é constituída por 7 elementos que rotativamente aplicam a sua jogada. Em cada uma destas jogadas se bebe uma ginjinha, seguida de um lançamento do respectivo caroço a partir de vários círculos a diversas distâncias dos tais orifícios centrais, tentando neles acertar. Os círculos mais distantes dos orifícios centrais dão uma maior pontuação, pelo que essas apostas são habitualmente utilizadas pelos jogadores com maior capacidade de sopro, e em alturas onde se pretendem recuperações de desvantagens no marcador.

Há no entanto várias técnicas de arremesso do caroço: uns enchem o peito de ar e cospem com precisão militar o caroço, outros lançam o caroço na vertical e de seguida chutam-no, e outros há ainda que tapam uma narina e fecham a boca, arremessando o mini esférico pela narina oposta. Nestas ocasiões o caroço é envolvido por um ranho verde e viscoso que permite uma aterragem com maior acerto, pois o atrito é maior.

Em extremos diametralmente opostos da arena, coloca-se a equipa técnica de cada uma das selecções, com toda a parafernália necessária ao decorrer do jogo. Uma vez que este se pode prolongar durante horas, a máquina de imperiais é essencial para que se mantenha uma boa hidratação dos jogadores, enquanto o tradicional banco de suplentes é substituído por mesas corridas onde abundam os leitões assados, javalis no espeto, codornizes de Albufeira, salada de frutas e chamuças gigantes. O grupo de assistência técnica é formado por massagistas faciais, ensaiadores de sopro, psicólogos de sábado, quiromantes, cartomantes e especialistas de decoração Feng-Shui.

Neste tipo de provas, a equipa fixa de arbitragem é habitualmente constituída por dez elementos, uma vez que têm de ser regularmente substituídos. Em cada lançamento de cada uma das equipas, o árbitro principal brinda e ingere a ginja e o caroço. Os que têm um maior índice de massa corporal suportam várias jogadas seguidas, mas quando começam a andar de gatas para validar os caroços nos buracos, têm de ser rapidamente substituídos. Há os que suportam e aguentam bem o licorzinho, mas que por vezes se deparam com a tripa tão atafulhada de caroços que têm de desistir por cólicas. Nestas alturas, a bolsa de apostas do mercado negro incide sobre o número de jogadas que cada árbitro irá suportar, sendo excluídos aqueles que recorrem ao uso de doping como suplementos de água del cano.

Nestes míticos jogos, os únicos penaltis que existiam eram os efectuados pelo melhor jogador da equipa da Lusália, conhecido como “Mikas Sarrasqueiro”, que desempenhava os chamados penaltis invertidos, famosos pela arrojada cambalhota e arremesso da pevide ao buraco. Um portentoso jogador era também o “Sanfonas, que de tão rápido que era a engolir a ginja, até tragava o caroço. Outra verdadeira lenda do Ginjabol: o “Hammer”! Uma pontaria certeira, umas trajectórias elípticas, o maior número de jogadas seguidas sem cair em campo. Tornou-se uma verdadeira imagem de marca ter sempre o bacalhau assado e a máquina de imperiais por sua conta...

O jogo podia durar horas a fio, mas mesmo quando se dava por terminada a disputa, que ocorria quando 2/3 dos elementos de uma das equipas ia parar ao Hospital, a vitória era celebrada num qualquer recanto da aldeia com alegria e boa disposição.

Estes torneios e toda a sua envolvência, eram no fundo um dos maiores motores impulsionadores do socialismo.
Toda a parafernália e agitação que mobilizavam, ainda hoje são sede de cruzamentos intergeracionais que constituem a base de toda uma estrutura populacional e que permite consolidar a verdadeira essência dum povo à luz da teoria do fole: a sua alma!

Viva o desporto!