quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A Fuga dos Refugiados


Não é apanágio da teoria do fole andar na vanguarda da notícia e do momento, mas esta crónica foi redigida sobre os acontecimentos, o que só por si já lhe confere algum grau de parcialidade e quiçá menor amadurecimento, mas foi o que saiu...

Falo da questão dos refugiados sírios e iraquianos. Se nos detivermos na imagem do refugiado, ele transporta-nos de imediato a um imaginário distante no tempo e no espaço. Algo que ocorre no quotidiano cíclico de um qualquer país pobre e conturbado, mas que neste momento se encontra nos portões da civilização ocidental, constituindo-se ironicamente como o retorno do boomerang que lançamos às nossas guerras longínquas. 

Não é um problema novo, nem sequer para este velho continente. Basta olharmos para a história, e tudo o que ela nos demonstra, para sabermos que estas migrações por motivos bélicos, políticos, ambientais ou expansionistas irão estar sempre a acontecer.

No entanto, vemos muita indignação, muita raiva, muito sofrimento telepático e muita mobilização até, perante as imagens que todos os dias nos aparecem na televisão.

Causa revolta ver crianças inocentes a chorar, a sofrer pela indefinição do futuro que se estampa naqueles rostos! Causa revolta ver seres humanos acurralados como animais, à espera da esmola de cruzar uma fronteira para um mundo melhor! Causa revolta ver diariamente corpos a boiar e a dar à costa, enquanto jantamos confortavelmente nas nossas casas! Estas pessoas fogem dos horrores da guerra, da morte, da fome, da perseguição, em busca de uma esperança, de uma oportunidade. Apenas uma oportunidade...

Tudo isto causa revolta, mas não causa a revolução necessária!

Não desperta consciências profundas, reflexões ponderadas e uma análise fundamentada sobre um grave problema mundial. Os intelectuais e pensadores recolhem-se numa espécie de autismo selectivo. O jornalismo sensacionalista e bacoco, também não permite que a opinião pública reaja de forma construtiva e pró activa. As redes sociais espalham como uma labareda, tudo quanto é imagem ou "facto" bipolar, extremando cada vez mais facções e alimentando muitos fantasmas desconhecidos e medos acocorados no subconsciente. Os políticos fracos de ideologia e submissos à malha dos barómetros de sondagens, andam à deriva de soluções imediatas e sem plano traçado para um problema que não tem fim. Ainda assim, as instituições são as que respondem de uma forma mais racional e honesta perante tudo, talvez porque tenham menos compromissos de agenda...

A questão síria, iraquiana, líbia, afegã, curda, etc, não apareceu agora! Já existe há muito tempo, e foi despoletada pelo ocidente. 
Pelos nossos governantes, pelos nossos políticos, pelos nossos jornalistas, que teimam em moldar o mundo à sua maneira. Que insistem em brincar aos mapas geopolíticos, como quem mexe peças de um tabuleiro de um jogo de mesa. É dado adquirido que qualquer intervenção por mínima que seja ou qualquer mudança drástica, tem consequências imprevisíveis e causa um efeito bola de neve. As mudanças abruptas nas sociedades têm sempre um risco enorme, sendo potenciais geradoras de desigualdades e conflitos que causam muito sofrimento. 

Condeno evidentemente as ditaduras, mas as tiranias abruptamente cessadas das figuras de Saddam Hussein, de Kadaffi, de Mubarak e mesmo as de Bashar al-Assad(?) terão criado mudanças melhores? Não! Criaram uma tal instabilidade, que culminou numa terra sem lei e sem comando.

Não, também não devemos baixar os braços nem deixar de intervir, mas criativamente tentar estabelecer uma cruzada pacífica e de longo termo para assim gerar rupturas progressivas e adaptativas.

O ser humano é por instinto reactivo, e nunca pró activo, pelo que estas "ondas" de refugiados fazem brotar areias movediças nas relações entre povos. Estamos num perigoso e primitivo caminho de reacender as chamas de xenofobia e discriminação, sendo esta uma batalha que forçosamente tem que ser ganha pelos exemplos positivos que demonstramos.

Dissequemos uma das imagens mais marcantes desta história recente: Alguém se lembra da fotografia do corpo do menino refugiado, inerte na praia? Aylan Kurdi de seu nome. 3 anos de idade...
É uma imagem fortíssima, que não nos deixa palavras nem para a descrever, mas atrevo-me a perguntar: E se a criança não fosse "branca"? E se não tivesse roupas ocidentais como as dos nossos filhos teria o mesmo impacto? E que posição tão frágil, desamparada e de abandono..! E que dizer da simbólica passividade do polícia que não tem o instinto imediato de colher a criança!?E quando a recolhe, não lhe dá "colo", transportando-a como um tabuleiro! E quantos tiveram e continuam a ter o mesmo destino...

É de facto uma foto impactante, marcante, que causa comoção e nos indigna de uma forma incrível pelos sentimentos que gera... Há tantas interpretações e análises subliminares nesta fracção de segundo, que quase já adivinho que seja a foto do ano.

Ninguém pode ficar indiferente a estas tragédias, e acredito que saibamos ser melhores a cada dia que passa e à medida que nos formos apercebendo das necessidades do nosso próximo. É inconcebível que o ocidente não se entenda, que os EUA se mantenham alheados, que os países árabes ricos assobiem para o alto.

Ao mesmo tempo percebo o desnorte e o desespero da Europa! 
Uma Europa que nunca na vida esteve unida, não pode ter a expectativa de se unir em redor de uma causa muito conturbadora. Percebo os medos de receber desconhecidos na nossa casa, mas dêmos-lhes pão e intuiremos dos propósitos. Percebo a incerteza de isto ser aproveitado para um cavalo de Troia, mas temos de monitorar de perto aquele que vem de longe, assim como vigiamos os "nossos". É verdade que os terroristas são uma ameaça real e utilizam-se de qualquer facto ardiloso para lançar a tragédia e o pânico. Percebo a pressão que os sistemas sociais irão ter, mas adequemos a resposta diluindo o problema por todos. Percebo o colapso social e económico a que podemos chegar, se não houver bom senso num acolhimento partilhado e envolvente, em vez de um perigoso acantonamento. Não podemos absorver o mundo inteiro neste espaço, por isso percebo a angústia do desconhecido. São momentos imprevisíveis da história...

Mas como utópico que sou, vejo que a Europa tem agora a oportunidade de envolver o mundo inteiro nesta batalha. A oportunidade de fazer jus à sua designação de "União Europeia", dando um exemplo claro de solidariedade e fraternidade, numa resposta incisiva, rápida e unida no acolhimento. Menos discussão e mais acção!

O segundo enfoque, claramente o mais importante, deve ser feito na origem do problema. Tem de haver uma movimentação no sentido de ajudar a resolver os conflitos e as questões na sua origem, no seu país, na sua zona geográfica. É fundamental ter essa coragem!

O exemplo que sair daqui, terá de servir de jurisprudência a todos os outros conflitos mundiais, e cada foco que surgir deverá ter a mesma resposta. Seja no Médio Oriente, seja em África, seja onde fôr!

Para o bem desta humanidade...


  

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Ginjabol



Nos antigos tempos romanos havia uma aldeia onde o desporto era praticado com afinco, dedicação e muito empenho, mobilizando tudo e todos em torno de uma tradição milenar: o Ginjabol.

Estes embates preparavam-se durante semanas, com estágios parcelares nas melhores adegas do país e idas regulares às missas dos Adventistas para ensaio dos cânticos de claque. Versavam sobre os mais variados temas com títulos sugestivos como “As bolas dum anjo”, “Levado pelo pé, com Jesus eu vou”, “A falta do pecador” e sempre a terminar, o épico “Dia do Apito final”.

No próprio dia do jogo, as forças policiais dispunham-se em bloco em torno das roullotes mais importantes, para permitir a entrada de uma forma ordeira e sóbria no recinto. À polícia montada estava reservado o show erótico, que antigamente era perpetrado pelas manas Romanov e sua caniche da Tasmânia. Toda a festa se montava em redor da praça de touros onde decorria o jogo.

Desde os cuspidores de fogo que eram aproveitados para assar os frangos no espeto, às farturas radioactivas com dupla camada protectora, ao algodão doce com grumos de cevada, às entremeadas de lípidos polinsaturados, e até às bifanas sagradas da porca da Marinela, todos se uniam alegremente ao circo montado. Era curioso constatar que lado a lado conviviam os vendedores de cachecóis, bandeiras, pins, sapatos, verdura, andaimes, chámon e sanitários.

Geralmente era desta aldeia a equipa que defrontava a selecção nacional da Lusália, constituída na altura por jogadores cirróticos e barrigudos com alta agilidade para o jogo mental de cultura védica.

Quando os machos jogadores da selecção entravam em campo com os seus ursinhos de peluche, robe, pijama e rolos no cabelo, eram entusiasticamente recebidos com mousses vegetais, óleos de sebo de girafa, algálias de longa duração, e exfoliantes de casca de tremoço das raras quintas capitalistas e feudais de Corroios.

Dentro do estádio, dum lado do campo posicionavam-se os melhores representantes dos Lusálios, enquanto do outro se colocavam os anões da Beira Baixa. Esta casta conhecida carinhosamente pelos “Beirinhas”, era sempre um adversário aguerrido, famoso pelos seus golpes de cabeça no baixo-ventre quando os ânimos lhes subiam à guelra. Com um centro de gravidade mais baixo, conseguiam muitas vezes passar pelos entrefolhos dos adversários, fintando-os com dribles de ballet ucraniano.

Este jogo original, desenrola-se por tradição numa arena circular com três orifícios na zona central com cerca de 8cm de diâmetro. Cada equipa é constituída por 7 elementos que rotativamente aplicam a sua jogada. Em cada uma destas jogadas se bebe uma ginjinha, seguida de um lançamento do respectivo caroço a partir de vários círculos a diversas distâncias dos tais orifícios centrais, tentando neles acertar. Os círculos mais distantes dos orifícios centrais dão uma maior pontuação, pelo que essas apostas são habitualmente utilizadas pelos jogadores com maior capacidade de sopro, e em alturas onde se pretendem recuperações de desvantagens no marcador.

Há no entanto várias técnicas de arremesso do caroço: uns enchem o peito de ar e cospem com precisão militar o caroço, outros lançam o caroço na vertical e de seguida chutam-no, e outros há ainda que tapam uma narina e fecham a boca, arremessando o mini esférico pela narina oposta. Nestas ocasiões o caroço é envolvido por um ranho verde e viscoso que permite uma aterragem com maior acerto, pois o atrito é maior.

Em extremos diametralmente opostos da arena, coloca-se a equipa técnica de cada uma das selecções, com toda a parafernália necessária ao decorrer do jogo. Uma vez que este se pode prolongar durante horas, a máquina de imperiais é essencial para que se mantenha uma boa hidratação dos jogadores, enquanto o tradicional banco de suplentes é substituído por mesas corridas onde abundam os leitões assados, javalis no espeto, codornizes de Albufeira, salada de frutas e chamuças gigantes. O grupo de assistência técnica é formado por massagistas faciais, ensaiadores de sopro, psicólogos de sábado, quiromantes, cartomantes e especialistas de decoração Feng-Shui.

Neste tipo de provas, a equipa fixa de arbitragem é habitualmente constituída por dez elementos, uma vez que têm de ser regularmente substituídos. Em cada lançamento de cada uma das equipas, o árbitro principal brinda e ingere a ginja e o caroço. Os que têm um maior índice de massa corporal suportam várias jogadas seguidas, mas quando começam a andar de gatas para validar os caroços nos buracos, têm de ser rapidamente substituídos. Há os que suportam e aguentam bem o licorzinho, mas que por vezes se deparam com a tripa tão atafulhada de caroços que têm de desistir por cólicas. Nestas alturas, a bolsa de apostas do mercado negro incide sobre o número de jogadas que cada árbitro irá suportar, sendo excluídos aqueles que recorrem ao uso de doping como suplementos de água del cano.

Nestes míticos jogos, os únicos penaltis que existiam eram os efectuados pelo melhor jogador da equipa da Lusália, conhecido como “Mikas Sarrasqueiro”, que desempenhava os chamados penaltis invertidos, famosos pela arrojada cambalhota e arremesso da pevide ao buraco. Um portentoso jogador era também o “Sanfonas, que de tão rápido que era a engolir a ginja, até tragava o caroço. Outra verdadeira lenda do Ginjabol: o “Hammer”! Uma pontaria certeira, umas trajectórias elípticas, o maior número de jogadas seguidas sem cair em campo. Tornou-se uma verdadeira imagem de marca ter sempre o bacalhau assado e a máquina de imperiais por sua conta...

O jogo podia durar horas a fio, mas mesmo quando se dava por terminada a disputa, que ocorria quando 2/3 dos elementos de uma das equipas ia parar ao Hospital, a vitória era celebrada num qualquer recanto da aldeia com alegria e boa disposição.

Estes torneios e toda a sua envolvência, eram no fundo um dos maiores motores impulsionadores do socialismo.
Toda a parafernália e agitação que mobilizavam, ainda hoje são sede de cruzamentos intergeracionais que constituem a base de toda uma estrutura populacional e que permite consolidar a verdadeira essência dum povo à luz da teoria do fole: a sua alma!

Viva o desporto!






sexta-feira, 3 de julho de 2015

Face up


Desde sempre as redes sociais se organizam da forma como a própria palavra a denomina: socialmente. E socialmente faz-se através do convívio directo, da presença, dos diálogos, da comunhão, do falar, do estar. Tem sido assim desde sempre, que se constroem relações e se constituem fortes laços de cumplicidade e partilha.
Por isso, não sei se deveríamos apelidar de redes sociais estas novas abordagens tecnológicas e instrumentos virtuais.

Assumidamente, concordo plenamente que as redes sociais informáticas são de uma enorme utilidade e constituem-se como um acréscimo que pode potenciar e valorizar as relações humanas. O que acontece é que perversamente se substituem a esse mesmo relacionamento, criando falsos trajectos de afectos.

Não sou habilitado academicamente para me pronunciar sobre esta questão, e com certeza  existem centenas de estudos e reflexões já nesta área, mas em termos sócio-psico-antropológicos isto deve ser um regozijo para os estudiosos da matéria. Não somente nestas perspectivas mas até no campo linguístico, se considerarmos o léxico que introduziram na nossa linguagem comum: post, like, feed, mural, link, click, selfie, etc.

E é de facto um fenómeno impressionante a explosão dos twiters e facebooks por este mundo fora. Será que as pessoas estavam ávidas de relacionamento, ou será que encontraram os seus 5 minutos de fama eterna? Criou-se em pouco tempo um polvo de relações articuladas, que na maioria dos casos exibe o bom, o mau e o assim-assim de cada um. E muitas vezes partindo da iniciativa do próprio! Não consigo perceber que no “face” (chamemos-lhe assim porque já é tão nosso íntimo...), se exponha a vida sem critérios. Todos tentam personalizar o seu perfil ideal e idealizado, mas que obviamente nunca expressará a realidade vivida, sentida e inconscientemente partilhada.

Criam e apregoam-se falsas vidas de alegria, de rejubilação, de permanente festa, que não correspondem minimamente à verdade. Fotos sempre a sorrir, sempre alegres, em que tudo parece impecável e sem defeito, onde não há lugar à imperfeição ou ao feio. Todos ambicionamos isso, mas o problema é que esse mundo não existe, e logo as pessoas se defraudam a elas próprias porque passam a acreditar num imaginário que até foi construído pelas mesmas. Mas a dada altura tropeçam e aí sabemos que a queda é maior...
Para muitos, esta vida faz-de-conta é aquela em que confortavelmente vão construindo o seu edifício de personalidade virtual.

Quase todos fazem intervenção social e questionam várias matérias de cidadania, justiça, direitos e deveres. É um processo tão cómodo e tão à distância de um clique, que na maioria das vezes se esquecem de praticar esse mesmo género que apregoam. Sobretudo aquelas pessoas que estão sempre a postar apelos, solidariedade, doações, indignações para com injustiças, mas depois não praticam esses mesmos gestos no seu dia-a-dia. Coitadinhos dos palestinianos, que injustiça atroz os clandestinos do Mediterrâneo, como me indigno com as crianças que passam fome. Vamos lá, que quantos mais likes, mais se ajuda! Mas no clique seguinte já me esqueci e passei para os vídeos loucos do futebol...
Muita acção no dedo, pouca iniciativa concreta. Como dizia o conhecido: "falam, falam, mas não os vejo a fazer nada!"

O sucesso deste modus, também reside na facilidade e rapidez de difusão da informação. As partilhas instantâneas são o espelho desta fragilidade e isolamento. Porque partilhar naquele momento, aquela situação, aquela fotografia, aquela música, faria se calhar mais sentido num determinado momento, num determinado contexto, com determinadas pessoas. Um amigo, uma mulher, um companheiro, um filho...Se partilhamos tudo muito rápido, perde-se magia e encanto..
A cumplicidade com os outros faz-se através de pequenas sintonias e de pequenas histórias em conjunto. É por isso que quando alguém por exemplo coloca uma música no mural, está a privar-se dessa cumplicidade e desse momento que poderia ser de intimidade, passando rapidamente para um vazio de anunciação desse encontro especial. Que banalização, não...?

Mas também podemos ter outra leitura. A de que estes inputs são-no para chamar a atenção, para dizer estou aqui, para dizer eu existo, falem comigo, façam likes porque assim me sinto vivo! Talvez..

Nesta análise narcísica, o culto do "eu" tem o seu apogeu máximo nas selfies! Eu a pentear-me, eu a conduzir, eu com estas vedetas, eu a acordar, eu com o Zeca, eu a fazer uma careta, eu sempre a arreganhar a taxa! Se isto fosse partilhado com um pequeno núcleo de pessoas ainda dava um desconto, mas assim em canal aberto parece-me um pouco frágil. Já que ninguém me endeusa, eu que me valorize, não é...?

E quando passam para os mais banais retratos do dia-a-dia, torna-se um pouco incómodo de aturar. O paradigma destes desabafos, são os facebookianos que publicam que fizeram cocó às 11h20m, postam uma foto do que lancharam essa tarde, e no fim colocam um pensamento filosófico ao deitar, desejando uma boa noite a todos. E o que não deixa de ser mais surpreendente nisto tudo, são os likes que obtiveram nestes mesmos comentários, provavelmente dos voyeurs profissionais.

E as tertúlias? Ah! Que saudades das tertúlias...
Nesta nova versão, há sempre um candidato a jornalista que pergunta algo do tipo: o que acham da neve sobre o resultado na democracia cristã? E logo desembestam os comentários, e os comentários aos comentários, que terminam infelizmente sem os brindes nem os abraços de despedida das reais tertúlias. Assim se perde a espontaneidade, o desafio, o cara-a-cara e a valentia de assumir os seus pontos de vista perante os olhos dos outros. Muita solidão que anda por aí...?

Do ponto de vista global, tenho a certeza que o face é uma mais-valia imensa deste novo mundo que criamos a cada segundo. Transmite-se informação fácil e rápida, revêem-se e renascem contactos anteriormente perdidos, é um excelente canal de divulgação de projectos e ideias, é ponto de partida para pequenas e grandes teorias do fole, etc, etc e etc.

Mas como tudo na vida, deve ser usado com moderação e bom senso, com educação e respeito, mas sobretudo com rentabilidade, eficácia e eficiência. Quantas horas perdem as pessoas a seguir obsessivamente os posts dos outros, quando as poderiam aproveitar a passar com os filhos, com os amigos, com os seus amores? Este mundo de bytes e gigas não é o centro de tudo. Nós é que devemos ser o centro de tudo.

Para as gerações que nascem agora, será sempre com naturalidade que agirão nestes contextos, mas há que trabalhar para que este tipo de relacionamentos sejam um extra e não o cerne das interacções.

Escravos da ditadura do vício...?
Para alguns sim...

Mas agora vou largar o computador e jogar à bola com os miúdos!

Um abraço cibernético a todos e um até já para alguns....

domingo, 17 de maio de 2015

O Elevador


Cum raio! Um homem trabalha uma vida inteira, casa-trabalho-casa e nem sequer a porcaria de um elevador tem quando chega ao escritório! Olha que isto de subir 58 andares a pé, tem que se lhe diga...

Jonas trabalhava naquela mesma empresa de contabilidade desde há 27 anos. Raramente tirava férias, e tudo o que amealhava colocava num porquinho de loiça que a tia lhe tinha oferecido. A mesma tia que fugira com um marinheiro mexicano que se vestia de toureiro todos os sábados, e lhe tinha prometido que quando chegassem ao México a coroaria de Miss Tequila. Ainda hoje lhe manda postais de Jalisco, com meias de renda, fato de variedades e um cão a tocar maracas.
"O trabalho não aleija", era o seu lema de vida.

Nesse dia, como tantos iguais a outros, o trabalho mais uma vez não o tinha aleijado.
Arrumou a sua pastinha de couro, dobrou a manta que usava por cima das pernas, e apagou a luz do candeeiro de mesa não se notando a falta da mesma, já que a geral estava ligada.

Restava pouca gente no edifício, e dirigiu-se ao elevador que hoje parecia diferente e estranho. As luzes estavam todas acesas e uma das do tecto parecia trémula de frio, parpadeando aos solavancos.
A porta estava aberta e avançou, fechando-se automaticamente atrás de si com um deslizar invulgar, como se entrasse nas entranhas de uma criatura pré-histórica e a boca se tivesse fechado...
Não encontrou o botão zero, mas havia um de cor amarela que presumiu ser um novo botão de saída.

Carregou, e de imediato o elevador começou a descer. Arrancou devagar, mas ganhou velocidade, não como se estivesse a cair, mas sim num suave acelerar em sentido descendente. Era impossível já não ter chegado ao piso térreo, caso contrário já se teria esborrachado contra o solo! 
A descida parecia infinita, cada vez mais depressa, cada vez mais abismal.

Teve de se agarrar ao corrimão, porque iam já a uma velocidade vertiginosa e alucinante! Sentia tonturas e o sangue a esvair-se pela cabeça, de tal maneira que desvaneceu sem forças deixando-se levar inerte para o centro da Terra...

Acordou atordoado e maltratado, sem saber onde estava.
Olhou à volta e para si, guardou a teoria do fole que entretanto lhe tinha saltado da pastinha de couro, e carregou no botão de abrir.
Saiu e teve dificuldade em reconhecer que sítio seria aquele, porque a luz e o calor intenso lhe tolhiam o cérebro.
Mas era um mundo diferente com certeza!

Não conseguia perceber que lugar era, com um mar de magma, criaturas voadoras meio cabeças de cegonha-meio rabos de mulher, num céu amarelado com uma espécie de nuvens cantantes, que transportavam bandas de afro-rock-punk. E que calor! Sufocante!

Tropeçou inadvertidamente num ser de três patas e sorriso trocista, sentado numa cadeirinha de praia laranja:
- Então..? Demoraste a descer, hãm..?
- Eu..? Ooonde estou...?
- Onde estás? No inferno paradisíaco, onde querias estar? És o número 57! Anda!

Enquanto corriam, reparou que tinha perdido as suas calças de fazenda e as cuecas, ficando um pouco mais arejado e liberto de pressão nas zonas mais baixas. Curiosamente ninguém ligava a isso, e as criaturas com quem se cruzava sorriam e bamboleavam o dedo em campânula de sino.

Chegaram a um balcão soturno, misterioso, com muitos papéis e carimbos sobre a mesa, os utentes sentados em cadeiras enormes, enterrados e curvados sobre as dívidas morais que tinham para pagar.

Chamaram o meu número e a criatura lá me indicou um assento de madeira rija, que rangeu num roar ruidoso. Do outro lado estava um ser com duas cabeças e quatro braços, que freneticamente carimbava papéis de 25 linhas azuis como se marcasse o ritmo com baquetas. Levantou uma das cabeças, enquanto a outra salivava sobre as folhas, e sorriu por cima dos óculos na ponta do nariz:
- Jovem Jonas, sabeis a prova a que vos sujeitais...?
- Não sei bem - balbuciei sem saber o que responder...
- Mais um desinformado! Caramba, que lá em cima não sabem fazer nunca uma triagem certa!

Arregalei os olhos muito admirado e sem perceber, mas ele lá continuou:
- Bom, chegaste ao fim da linha da tua existência e tens de passar a última prova para saber se podes entrar no inferno paradisíaco com aptidão máxima. Para isso tendes de responder e cumprir três tarefas.

Nem queria acreditar em tamanha alucinação! Então eu faleci e mandaram-me para as trevas em vez de me mandarem para o Céu? Devia haver um engano qualquer, porque eu ponho o lixo todos os dias no caixote, ajudo as velhinhas a atravessar a rua, contribuo para todos os cabazes, conforto sempre as meninas do cabarét, nunca assobio o presidente, enfim um modelo de pessoa... Será que foi daquela vez que não alimentei os pombos, quando eles migraram para uma festa no Ginjal? Não....está tudo louco!

O bicéfalo estacou e fitou-me seriamente com os três olhos:
- A primeira pergunta é: quantos empregados ucranianos há em Alcochete?
- A segunda é: quantos refegos tem a Lili Caneças?
- A terceira: se eu fosse teu primo, quem poderia ser a minha mãe...?

Huuuu! A assembleia torceu a cara e abanou a cabeça, porque temia que eu não conseguisse alcançar as respostas certas...senti uma tontura que quase me fez cair e vomitar o galão que tinha bebido ao lanche, lá em cima.

Nessa altura fechei os olhos, respirei fundo e imaginei toda Alcochete vestida de barrete russo e polaina branca, vi mesmo a Lili engomando-se os refegos, e pensei na minha família toda até a décima geração de bosquímanos.
As minhas mãos suavam que nem sovaco de visigodo, a minha barriga encheu-se de borboletas que queriam desesperadamente sair, e o meu coração dava pancadas do lado de dentro cada vez mais secas. Mas tinha de acertar senão estava feito!

Cá vai disto, pensei!
- Eh....acho que são 57 ucranianos (sem contar com o anão Uchev), 438 refegos (tirando o rego do ass) e a minha mãe poderia ser a nora da avó da tia que se parece ao primo da filha da empregada adoptada.

No exacto momento em que me saíram as respostas a aquelas perguntas tão disparatadas, cerrei instintivamente os olhos com força, para não ver o embate que me teriam reservado depois de tamanha invenção...

Mas o que aconteceu foi deveras miraculoso...Uma estridente sirene soou, um rotativo cor-de-rosa acendeu-se e pequenos foguetes foram lançados por um pipeline improvisado, ao mesmo tempo que a multidão eufórica entoava em cânticos gregorianos: "já te safaste, já te safasteeee!"
Não sei se desmaiei ou se morri pela segunda vez, mas digamos que "apaguei"....

Nesse preciso momento, fui sugado por um tubo que fazia um sistema de vácuo ascendente, e apareci à porta do elevador do meu escritório, completamente azamboado e ainda a pensar se tudo isto não teria passado de um pesadelo....

Só quando olhei para o lado e vi as minhas calças e cuecas penduradas da maçaneta de uma porta enquanto uma fresca brisa me refrescava as minudências, é que percebi que tinha revivido.

Há quem diga que destes sítios nunca ninguém volta.


Pelo sim ou pelo não, nunca mais desci de elevador...

sexta-feira, 27 de março de 2015

iTunas


Tunas para quê?
Neste conflito de interesses posso ser suspeito para divagar sobre o tema, mas tentarei o afastamento suficiente e a leitura imparcial, para poder discriminar o muito de bom que têm.

Não vou obviamente dissertar sobre praxes, ou caloiros, ou organizações estudantis, ou o que quer que tenha a ver com essas questões. Isso fica quiçá para outra teoria do fole…
Sinceramente não sei se gosto de tunas! Mas posso dizer que gosto de algumas tunas e que gosto de algum tipo de música feito por tunas.

Costumo segmentar um pouco este submundo, dividindo as tunas em duas: aquelas que apostam e mantêm a qualidade musical como o seu desígnio, e aquelas que funcionam apenas como complemento à vida académica curricular. Podemos designá-las de tunas X e tunas Z, sem prejuízo de poder estar a atribuir maior importância a uma do que a outra, sabendo que têm os seus cabimentos lógicos nos meios onde se desenrolam as suas acções.

As tunas Z são aquelas de menor dimensão, constituídas indiscriminadamente por estudantes que tendo um mínimo de aptidão musical integram o grupo, e podem assim expressar a sua vertente artística e participativa. Naturalmente que este facto repercute-se directamente no produto final alcançado! Têm geralmente uma fraca performance musical, sendo por vezes difícil de as ouvir durante muito tempo porque se torna uma tarefa deveras penosa...São por isso olhadas de lado pelos músicos e melómanos, que as condenam de imediato num primeiro contacto.

De facto, a qualidade musical destes grupos é obtusa, mas isso para mim até que nem é o mais negativo. Infelizmente, enfermam de um mal que é comum à maioria das áreas sociais e não se cinge às tunas, que tem a ver com a falta de limites e com o desmembramento de uma série de regras empíricas que nos marcam as fronteiras do bem/mal, do correcto/incorrecto, do abrutalhado/com classe, da postura/desleixo. Podem ficar assim contagiadas pelas atitudes mentecaptas de alguns universitários, que usam e abusam de comportamentos menos próprios e bastas vezes imaturos...

Isto leva a situações quotidianas, em que basta que uma destas tunas tenha uma intervenção ou atitude de um nível diferente, para que logo todas as outras sejam postas injustamente no mesmo patamar. Chama-se popularmente "pagar o justo pelo pecador"! E só porque envergam um uniforme e são universitários, se contamina esta ideia a tudo quanto é tuna!! Não tá certo...Por isso o Herman José e outros humoristas, fazem rábulas a zombarem das tunas. Porque estas dão o flanco...

Mas a isso não deviam ser condenadas, nem tantas vezes ostracizadas. Desempenham um papel fundamental na integração dos vários estudantes da instituição, têm quase todas um espírito de grupo invejável, permitem que muitos alunos tenham contacto com música, com instrumentos, com ensaios, com palcos, com um cancioneiro nacional, e transmitem normalmente alegria, boa disposição e entretenimento. Englobam os elementos como fazendo parte de um conjunto, e sem ser o seu propósito primário, acabam por desenvolver dinâmicas de progressão individual. Com uma série de itens de responsabilidade e comportamento cultural, estas tunas têm iniciativas próprias muito valorosas para as instituições que representam, sendo uma alavanca de crescimento e maturidade para os indivíduos que as integram.

No campo diametralmente oposto a este, as tunas X, quer pela sua natureza, quer pelas suas capacidades próprias e estruturais, têm outros desígnios e objectivos. Independentemente de representarem uma faculdade ou uma universidade, todas têm um propósito essencial: fazer música!
E é aqui que se concentra todo o poder e energia destes grupos! Têm geralmente bons executantes, bons ensaiadores, ensaios produtivos, rigor nas apresentações, um repertório estruturado, muitas criações musicais.

Pelo esforço e dedicação que algumas imprimem, merecem-nos todo o respeito, porque não nos esqueçamos que estas participações são voluntárias e não remuneradas. O profissionalismo e brio destes grupos, não nos podem fazer olvidar que estamos perante amadores que dão o melhor de si para que os espectáculos vão avante.

Muita gente acha que é tempo desperdiçado e mal gasto nestas andanças, mas do meu ponto de vista essa é uma visão completamente errada. Errada, porque há toda uma riqueza que se ganha e se se conquista. É verdade que muitos abdicam das suas vidas pessoais para dedicar tempo aos ensaios, ao conceito do espectáculo, às musicas novas, a discutir novas formas de abordagem musical, a estudar e reinventar o cancioneiro português, a vestir uma nova roupagem melódica a outros cantos, a criar música, letras, canções, a fazer história, a marcar os corações  e almas daqueles para quem cantam. Mas a isto chama-se crescer, construindo, munindo-se simultaneamente de armas que lhes serão úteis ao longo da vida.

A prova disso, são as centenas de elementos das tunas que comprovadamente ocupam hoje lugares de destaque nas suas diversas áreas profissionais. Desde a ciência à arte, do académico ao empresarial, muitos são figuras de renome e com provas dadas de valores, como verdadeiros exemplos de cidadania.

Estas tunas têm esse extraordinário mérito que não encontramos em muitos outros sectores. Trabalham, e bem, de forma genuína e gratuita, pelo simples prazer que lhes dá o fazer e criar música. Este é um bem inestimável, impossível de dimensionar, porque a própria espontaneidade do movimento tunante radica num sentimento aberto de partilha, e numa força de grupo que transpira e se sente quando com elas convivemos.

A sua existência conquista por si só um lugar na história, mas um dos grandes méritos que podemos atribuir às tunas, é o facto de terem recuperado muitos dos instrumentos tradicionais portugueses! Numa época em que o digital, as novas tecnologias e os artificialismos ganham terreno, foi este remodelado universo que recuperou toda a arte e saber dos instrumentos artesanais portugueses. O bandolim foi reavivado, a guitarra portuguesa ganhou novos adeptos, o cavaquinho passou a ser tocado por centenas de jovens, a secção rítmica reconquistou sons antigos, entre tantos outros exemplos reveladores da importância da redinamização de todo este comércio e conhecimento que estava em esquecimento e desaparecimento rápido.

Em termos genéricos e no momento actual, este microcosmos, e muitas vezes considerado submundo, encontra-se numa fase de decisão. Decisão no rumo que quer tomar, e na forma que se quer assumir dentro da sociedade. Este é o momento de dar o salto qualitativo, de se estabelecer como Instituição onde os seus elementos possam encontrar um espaço para continuar a exercer o seu trabalho pró buono, em prol de algo que lhes traga satisfação, mas que tenha impacto no meio onde vivem. As tunas têm de se reinventar e reinventar as suas formas de intervenção. Algumas já começaram a romper com esse status quo, através de espectáculos diferentes, colaborações com orquestras e bandas, parcerias alargadas, registos de produção, acções sustentadas de solidariedade, criação de escolas de música, envolvimento em acções educativas, etc, etc.

No entanto, e a meu ver, a chave do sucesso residirá na capacidade que cada tuna terá, em saber criar laços com o público e alargá-lo, amplificando a sua oferta musical e envolvendo diversos sectores sociais. Para este desiderato, sair do casulo universitário é fulcral. Ao mesmo tempo, a nível interno, a lógica de participação terá de ser alterada para um processo que permita um prolongamento de intervenção das gerações mais velhas, trazendo maturidade e um know-how que constitua solidez, maior coerência e continuidade aos projectos delineados. Existem muitas soluções, muitos caminhos que podem ser tomados, para que toda esta labor e todo este manancial de trabalho produzido possa ser rentabilizado e gerador de novas oportunidades nos diversos setores sociais e culturais.

Digamos que é um mundo sui generis, ao qual lhe será dado o real valor quando as pessoas se aperceberem do real valor de mercado que ele representa...


A ver vamos...

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Ensinemos a ler


Há cerca de dois séculos atrás, houve um médico judeu que criou de raiz um idioma que se propôs a ser estabelecido como língua universalmente falada. Assim se aboliriam os entraves de comunicação entre os vários povos, facilitando a interacção, os cruzamentos e um melhor relacionamento entre sociedades. O Esperanto era uma ideia sem dúvida congregadora! Esta ideia da uniformização e junção de pontos comuns, no entanto, pode resultar negativa no sentido em que a criação e a criatividade, ficam necessariamente truncadas da sua própria essência, limitando um pouco esses horizontes de diversidade.
 
Numa perspectiva de liberdade individual e colectiva, não podemos ter todos o mesmo idioma, vestir todos da mesma maneira, ou ter todos a mesma referência religiosa. O que podemos e devemos, é pregar pela diferença como elemento característico e próprio do Eu.
Estou em crer que o verdadeiro cerne da questão centra-se na essência do Homem!

O Homem como animal racional que é, segue no fundo do seu comportamento um modo de acção que podemos definir de animalesco. Animalesco porque é instintivo, impulsivo, conquistador e com um objectivo básico e primário perpetuador da espécie. Mas o homem evoluiu muito, no sentido em que estas características se atenuaram e se contingenciaram com o advento da modernidade. Modernidade com momentos mais ou menos transformadores, mas que ainda sim podemos balizar num espaço temporal de largas centenas de anos.

Hoje temos os princípios universais de não matarás ou não roubarás, como dados adquiridos neste mundo global. Mas será esta uma verdade universal, ou será que alguém despreza por completo todas estas premissas de respeito e saúde social? E se assim é, como é possível que meia dúzia de malucos desatem a disparar e matem pessoas indiscriminadamente, apenas em nome de um Deus, que nem sabem se existe?

São nestas desculpas religiosas, que a maioria das atrocidades se comete.

É a guerra entre cristãos e muçulmanos na Nigéria, entre judeus e muçulmanos no médio oriente, entre xiitas e sunitas no Iraque, entre budistas e muçulmanos no sul da Tailândia, entre católicos e protestantes na Irlanda, entre ortodoxos, católicos e muçulmanos na ex-Jugoslávia, entre budistas e hindus no Sri-Lanka, entre hindus e muçulmanos em Caxemira, e em muitas outras pequenas escalas por esse mundo fora.

Poderiam dizer que estes conflitos se aproveitam do nível muitas vezes básico populacional, mas isso não é puramente verdade, uma vez que temos exemplos nos cinco continentes e todos com níveis assimétricos de literacia, mas num crescendo de violência que nos faz regressar ao início do texto, em que a parte animal do Homem se revela e se manifesta como alegadamente um último reduto de afirmação.

São autênticas barbáries, são autênticos bárbaros, e é necessária uma reflexão profunda, lata e abrangente de todas as variantes que se imiscuem nesta problemática. Os verdadeiros interesses económicos, imperialistas, e de poder, utilizam-se das fragilidades dos indivíduos de uma sociedade que alimenta seres egoístas e ambiciosos de parecer, mas despreocupados de ser.

Ao mesmo tempo é curioso que os meios de comunicação social se deixem enredar nesta trama fácil de alimentar, e de forma indirecta perpetuar sentimentos de revolta, vingança e falsa moralidade. Falo sobretudo nos atentados episódicos de terrorismo, que geram sempre uma onda de legítima indignação e repulsa, mas que resvalam para uma fácil e simplória acusação de grupos que reivindicam ideologias como argumento para os seus próprios actos. Grupos esses que se utilizam de normalmente um argumento ideológico que lhes possa justificar esses covardes ataques. Na maioria das vezes tomam o um pelo todo, e toca de arrasar uma ou outra religião, um ou outro grupo étnico, um ou outro povo muitas vezes sem qualquer responsabilidade.

Confesso que não sou um conhecedor profundo da génese das religiões, mas não conheço nenhuma religião que apregoe a violência, que apregoe a injustiça, que tenha valores contrários à essência humana. O que existe, são pessoas que interpretam a informação da sua religião para a utilizar de acordo com os seus objectivos menos lícitos e mais ambiciosos.

O que de verdade destrói a imagem de qualquer religião são os seus fundamentalistas! É por eles que se cometem as maiores atrocidades, as maiores injustiças e os maiores assassinatos físicos e intelectuais deste planeta.

Concordo que esta questão é tão ampla e multifactorial que é impossível descolá-la de outros interesses e vontades secundárias. Não podemos ser ingénuos e pensar que os fundamentalistas religiosos são os únicos culpados, porque claro que os jogos económicos, a ambição do poder,  os desejos expansionistas, o lucro desmedido, são os factores que no fundo ditam estes movimentos, os alimentam e os promovem para assim atingirem os seus propósitos. É uma grande trama mundial, onde muitos países lucram com este verdadeiro negócio, independentemente de pertencerem ao clube dos ricos ou dos pobres. Por esta razão,  fico perplexo ao ouvir o descaramento de muitos líderes que em tom angélico se pronunciam sobre atrocidades, quando eles próprios têm atitudes semelhantes na sua essência. Na guerra, atacar não é a melhor estratégia para defender. Não há justificação nenhuma para a violência, ponto!

E se é simples pensar nos problemas, difícil é encontrar soluções adequadas. Se marcarmos um epicentro no conflito, não é aí que o teremos de resolver. Temos de pensar de forma muito mais lata e alcançar a periferia dos círculos em redor desse núcleo. A humanidade é muito mais estratosférica do que meia dúzia de loucos e insanos, mas a humanidade é ainda muito iletrada e consequentemente fácil de influenciar. E esta fragilidade é tão flagrante, que chega a ser constrangedor saber que povos inteiros veneram os seus líderes sem escrúpulos, pelo simples facto de que são facilmente manipuláveis.

Estou em crer que é aqui que teremos de agir e executar. Precisamos de construir massa crítica, de chegar a todos, de maneira a que esta multidão influencie o tal epicentro. Estou certo que estas questões apenas sanarão e se contingenciarão, se todos fizermos parte da solução. Eu, tu, ele, nós, vós, eles!

Estas acções terroristas, a guerra, os conflitos, só desaparecerão quando nos preocuparmos em formar melhores pessoas. Quando nos preocuparmos em olhar para o lado e ajudar quem precisa. Quando dermos a todas as crianças as armas da sabedoria, do pensamento livre, dos valores básicos da vida. Não podemos ser todos ricos, mas temos a obrigação de dar a riqueza dos livros a todos. Esta é a verdadeira arma da construção de uma sociedade mais justa e humana. A literacia é a base da civilização!

E quando tivermos o mundo todo por igual, uniformizado no bem, sem olhar a quem, teremos os Homens a discutir os conteúdos sem olhar à forma, pelo que qualquer teoria do fole servirá para partir a outro patamar.
Mais do que darmos acesso à informação, temos de dar capacitação à interpretação e uso dessa mesma informação!

Aí estará a chave do sucesso da humanidade.
Façamos cada um o seu trabalho.

Eu? Já comecei com os meus...

If I go as a Hindu,
I'll meet a Muslim or a Christian,
If I go as a socialist,
I'll meet a capitalist,
If I go as a black man,
I'll meet black men or white men,
But if I go as a human being,
I'll meet only human beings.
Satish Kumar

Um abraço!

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A Polaca


O dia-a-dia de um hospital pode parecer organizado, linear e completamente programado. Mas é só aparência!! Porque vive em permanência do inesperado e do limítrofe, impedindo-nos de orientar algo coerente e sequencial quando chegamos à enfermaria.

Tinham-me internado o senhor Albino na cama 25, num quarto com vista desafogada para o exterior, enfeitado com as árvores que circundavam o edifício.

Era um homem de 86 anos de idade, olho azul brilhante, sincero, sorriso doce, típico dos dementes que anuem a tudo sem saber porquê.
Prestei a informação básica à esposa, que iria começar o antibiótico, que provavelmente teria alta em breve, e que a situação clínica estava estabilizada. Nada de especial, critérios de gravidade baixos, bom prognóstico nesta intercorrência da já muito longa vida deste valente militar na reforma. Ex-combatente no Ultramar, tinha centenas de histórias para contar da sua vida...

Umas horas depois, tinha de novo a esposa do senhor Albino da cama 25 a pedir para falar comigo.
-Diga-lhe que já lá vou...
Quando saí do gabinete já estava a senhora de plantão, pelo que não pude contornar o assunto.
-Boa tarde, como está? E estendi a mão para a cumprimentar.

Era uma senhora baixa, pele pálida e olho claro, rugas vincadas da face, que completava a sua fisionomia típica de Leste com um barrete russo de pele enfiado na cabeça.
Esticou também ela a mão, e apesar dos seus talvez 80 anos (adivinhava eu), apertou-me a mão com tal firmeza que me pôs logo em sentido.
-Boa tarrde doutorr!

Na sua pronúncia  eslava, carregava nos érres, como se um motor de arranque se intrometesse nas palavras.
-Como se encontrra o meu marrido...?

Mais uma vez lhe expliquei que os critérios de gravidade eram baixos, que as coisas estavam a evoluir bem, e que o prognóstico era positivo.

Da aparente dureza da sua expressão, e com os olhos semi-cerrados, lançou-me com um certeiro:
-Sabe? Eu conheço o doutorr! O doutorr nunca esteve na Polónia...?

Por momentos fiquei suspenso, pensando em que situação me teria cruzado com aquela personagem num país tão longínquo...

Ela prosseguiu no seu sequencial à interrogatório tipo "serviço secreto":
-No ano de 96, o doutorr não esteve en Varrsóvia...?

Um ponto de interrogação deve ter aparecido por cima de mim, porque a senhora semi-cerrou ainda mais os olhos e deve ter pensado para consigo: "puxa pela cabeza, porrque te vais lembrarr!"

Em modo de imitação, também semi-cerrei os olhos, mas depressa os abri de espanto como se um raio me atingisse.
Sim! Tinha-me cruzado com aquela senhora há dezoito anos!!!

No verão de 96, fiz um estágio na Faculdade de Medicina de Cracóvia, ao abrigo de um programa de intercâmbio estudantil.
Comprei o bilhete de avião Lisboa-Varsóvia, que custou aos meus pais uma pequena fortuna, e de repente vi-me transportado para um país pobre, ainda na era pós muro de Berlim e com um aparelho de estado muito dominante.

Mal aterrei, fiquei retido umas horas no aeroporto a perguntarem-me vezes sem conta para onde ia, com quem, e porquê. Apeteceu-me responder ao carrancudo polícia de fronteira: para o bem-bom, com a tua irmã e porque ela tem mais amigas do que tu!
Mas de sorriso amarelo, lá lhe disse a verdade, ao mesmo tempo que idealizava como seria a sua irmã...

Da mesma maneira que me prenderam, assim me libertaram, e assim pude apanhar um autocarro directo do aeroporto para a estação de comboios no centro de Varsóvia. Uma capital sombria e com blocos de Leste, onde se adivinhavam pessoas a comer, a brincar, a conviver, a amar, a discutir, a sobreviver...

Um edifício enorme, que ainda hoje desempenha as mesmas funções, escondia no seu subsolo a estação central ferroviária duma Varsóvia gasta. Uma abóbada impressionante onde seriam as bilheteiras, fez-me sentir insignificante num instante. Não sabia bem para onde me dirigir, e se perguntava algo a alguém, todos encolhiam os ombros num expressivo "não entendo...!"

De repente, ali estava eu perdido, numa estação de comboios onde nem um letreiro em inglês se vislumbrava, onde ninguém falava outro idioma senão o polaco, onde o cinzento imperava e apagava qualquer cor que quisesse emergir…
As pessoas cruzavam-se como autómatos, ninguém parecia feliz e a teoria do fole vendia-se nas bancas, traduzida, e com ilustrações romenas.

Nisto, enquanto pousava a minha mochila, qual a minha surpresa quando dou de caras com um dos caloiros da minha faculdade!
Daquela Lisboa que tinha ficado para trás!
Ali perdidos os dois, nas reminiscências da ex-União Soviética!

-António..? Disse eu baixinho e com uma cara de perfeito espanto!
-Olá. Disse-me calmamente, como se me acabasse de encontrar na sala de alunos.
-Por estas bandas...?

Contou-me que andava a estudar Esperanto, e que nos seus estudos tinha conhecido um casal polaco que o tinha convidado a passar umas férias na Polónia.

Efectivamente, estava a seu lado um casal de meia idade, com um sorriso simpático, olhar franco e directo nos olhos, que me cumprimentou com um aperto de mão que mal adivinhava eu, me reconheceria anos mais tarde.
-Bom dia. Muito gosto!

Tinham sido eles a minha salvação naquele dia de verão escuro, num país que ainda estava sombrio das influências do antigo Bloco deLeste...

Tomamos café e trocamos gestos de mímica, enquanto uma ou outra conversa se traduzia em Esperanto. O casal comprou-me o bilhete por uns escassos zlotys, e levou-me mesmo até ao vagão, com uma afabilidade e uma delicadeza que contrastaram com tudo aquilo que até ali tinha contactado.

Com o passar dos anos, a memória já tinha apagado este encontro do meu baú, e nunca sequer me voltei a cruzar com nenhuma destas personagens.

A Dona Maya ficaria viúva anos mais tarde, e nas voltas que o mundo dá, conheceu um marinheiro português pelo qual se enfeitiçou de amores. Casou de novo, e veio morar para Portugal fazia já 6 anos, tinha aprendido o idioma com muita facilidade, e acompanhava agora a decadente senilidade do marido, com uma devoção e dedicação exemplares.

Eis senão que a casualidade do destino nos proporcionou um novo encontro, anos mais tarde e pondo-me a reflectir o quão pequeno é o mundo, e o quão grande se fazem as relações....

Ainda não tinha recuperado do espanto de tamanho cruzamento de astros!
Não acredito no destino, mas o facto deste encontro completamente inesperado 18(!) anos depois, é algo no mínimo muito esotérico!

Fiquei como médico pessoal de ambos, sentindo que o destino nos tinha reunido por diversos acasos felizes. Teria assim oportunidade de retribuir a amabilidade polaca, dum qualquer verão pós perestroika..

Esta é uma história que recordarei sempre com muito carinho, como mais um retalho da vida de um médico...

Dziękuję Maya!!!