sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Cumprir

Os aviões não param de partir e de chegar, com uma cadência certa durante o dia, e menos intensa quando o sol se decide a acostar. Trazem de tudo no seu interior: as malas carregadas de memórias a recordar; as fardas de verão e de inverno; os livros que nos exercitam Pessoa; os remédios da malária; a pistola que nos estranha, e nos faz descer do alto dos nossos pensamentos longínquos; mas sobretudo a imensa saudade que já se traz ao chegar.

Enquanto uns sentem a imprevisibilidade da chegada, outros culminam na alegria da partida para o regresso. Sim, porque só voltamos ao sítio de onde somos, e pertencemos a aqueles que nos querem.

Nos entre tantos, a vida escorre pela ampulheta com uma constância que não acelera, nem com um simples abano; umas vezes custando a passar, e outras sendo empurrada como a surpresa dum veloz alazão.

Os movimentos são constantes, a todas as horas e minutos, em boas e más alturas, e por fluxos de homens e mulheres robotizados, equipados e armados, vergados pelo peso do cansaço da viagem, ou quiçá do fardo que lhes pesa na consciência. Enquanto esperamos pela hora da saída que por ora tarda, ocupámo-nos em ocupar o tempo que muitas das vezes nos sobra, imaginando que memórias teriam trazido nas suas bagagens.

Os sorrisos sinceros dos filhos, os consolos e beijos das mulheres, as lágrimas das namoradas, os acenos dos pais, o sexto sentido das mães e os abraços dos irmãos. Podíamos imaginar que uns seriam engenheiros, doutores, mecânicos, calceteiros de chão firme, ou ainda músicos ou bailarinos, mas aquelas personagens têm outra vida paralela e misteriosa, que nunca ninguém irá descobrir. Vêm, guerreiam, convivem para sobreviver, e regressam com mais conteúdo na alma. Ou quiçá com mais buracos ainda por preencher.

Esta é uma verdadeira torre de Babel, onde chegam, partem, ficam, e persistem centenas de pequenas e grandes almas que resistem uniformizadas, sendo uma pequeníssima peça da solução que parece muitas vezes uma miragem. Do norte ou do sul, do frio ou do quente, do moderno e do antigo, são oriundos de todos os confins da terra, e de sítios em que o mundo não tem fim, para finalmente se aperceberem que a finitude muitas vezes é aqui.

Botas engraxadas, atavio regulamentar, galões aos ombros e pistola à cintura, contrastam com os que voltam de missões no exterior. O capacete, o colete, a metralhadora de cartuchos vazios, a fadiga do peso insustentável, e o pó entranhado nos seus absortos pensamentos de mais aquele dia, envolvem-nos com soturnas auréolas denunciando pesados combates. É um extenso submundo invulgar.

As guerras assimétricas, ou se resolvem num ápice, ou se adiam por sucessivos prolongamentos, e esta é com certeza das segundas. Nenhuma teoria do fole resiste a estas manobras de combate, com bombas suicidas, atentados indiscriminados, política de medo e insegurança, acenos de falsas bandeiras de moralidade, e sobretudo pelo desrespeito pela verdadeira verdade humana. Mas também há que contextualizar o sistema, a época, a cultura, e acima de tudo a condição humana local na sua essência.

Pode ser que haja esperança, pode ser que as balas se enterrem de vez, pode ser que as bombas se extingam na paz, pode ser que tudo se possa, mas que pelo menos, estes meninos sintam uma nova pátria.

Eu pelo menos vou cumprindo a minha parte...



4 comentários:

  1. Olá caro amigo Alípio...gostei do teu texto. Retrata exactamente o que se vê, o que se sente quando estamos num local como o Afeganistão. Relembra-nos a partida, a imagem dos nossos entes queridos que deixámos na nossa terra mãe...cheios de esperança que regressemos sãos e salvos. O sentido do dever e a certeza do dever cumprido na missão que nos compete dá-nos força e fé de que realmente esse país longínquo volte a ser a Pátria desses meninos. "A esperança é a última coisa a morrer". Stay safe my friend.

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  2. caro amigo Ali,

    É sempre bom ler o que escreves. Estamos num corre corre deste lado do mundo e as vezes esqueçemos que existe vida e em condições bem piores que as nossas...

    Volta rapido, estas perdoado.
    Filipe

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  3. Oh meu Amor!!!
    Sei que se dependesse de ti essa pátria já seria dessses meninos há quase três meses atrás...
    Continua firme a cumprir a tua parte pois será isso que trarás na tua pesada bagagem...
    Por cá faço por cumprir a minha parte deste "nosso" acordo...
    Fazes-me falta!
    Num ápice estarás onde deves estar... até lá, continua a cumprir a tua missão!
    Beijos doces.
    Eu.

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  4. Obrigado por partilhares comigo. Só te conheci há uma semana mas parece que a nossa amizade é de sempre. Não me enganaste. A tua escrita revela em pleno a primeira impressão que me causaste. Que os nossos destinos se voltem a cruzar... mesmo que seja na UTITA (ou lá como aquilo se chama).
    RAD DOC

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