De todos os sítios que me lembro com a perfeição que gosto, o manicómio é um deles. Arrumava-se o carro à porta, num pequeno largo que dava acesso à fachada de uma casa que nem parecia aquilo que era. A entrada parecia a de uma casa normal, adaptada à instituição, com quartos e salinhas transformadas em gabinetes e salas de reunião para psicoterapia. Os anexos eram muito maiores, e construídos posteriormente em edifícios contíguos com a traça madeirense antiga, centralizando-se o coração nuns belos jardins cuidados, que atenuavam o fardo das mentes que nele deambulavam.
O meu pai dava consulta dos olhos, todos os sábados de manhã, assistido pela Irmã Almerinda, uma verdadeira máquina a dominar as malucas mais malucas. De uma devoção extrema por Jesus e pelo meu pai, tinha sido de facto abençoada naquilo que fazia, e a sua vida de missionária cumpria-se nestas entregas de saúde e sobretudo de afectos.
Havia de tudo ali; a jovem que ouvia vozes do além; a mulher que insistia em lavar os joelhos 52 vezes por dia; a idosa que em mutismo se abanava em oscilantes desempenhos; a esposa desprezada que numa tristeza maior se tentou acabar por um penhasco abaixo; e até uma maníaca recitava Camões e Pessoa, na perspectiva teológica da teoria do fole, aos pombos que por ali depenicavam.
A ordem de grandeza da loucura, era inversamente proporcional à alocação das insanas, sendo que as malucas violentas estavam encarceradas em salas almofadadas, as “assim-assim” tinham umas horas de liberdade no jardim, as desvairadas inúteis estavam alheias deste mundo e fechadas no seu país das maravilhas, enquanto as lúcidas desmioladas ajudavam na lide diária das freiras.
Certa vez, uma das jovens perguntou ao Sr.Dr. se queria que lhe lavasse o carro de estimação enquanto dava consulta. Erro crasso nesta colaboração, foi assumir que tudo iria correr bem...Ao voltar da consulta, a “Agostinha dos berlindes” lavava com toda a alegria o automóvel do Sr.Dr. com leite de vaca gordo! O velhinho mas reluzente Toyota, teve de apanhar com duas enceradelas para recuperar o sorriso dental...
A nossa visita da praxe era feita por alturas do Natal, e se por um lado eu adorava a recepção das freiras, que preparavam um verdadeiro banquete de bolos, bolinhos e docinhos conventuais; por outro, as personagens que por ali vagueavam ou nos abordavam, causavam-me um medo irracional. Malucas a agarrarem os braços e puxarem com sorrisos desvairados, um miúdo de 10 anos, não era o ideal de tranquilidade. Se me dissessem que aos 18 anos umas malucas me agarrariam e puxariam, creio que iria sonhar com essa miragem, mas ali com certeza que não, e com aquelas malucas, só doido...
Costumávamos fazer a ronda da visita aos vários presépios e lapinhas espalhados pela instituição, não havendo ali lugar para a pagã árvore de Natal. O Menino Jesus tinha sempre lugar de destaque, rodeando-o uma decoração kitch e mensagens de boa-nova, escritas em folhas de papel pintadas com lápis de cor. Nas diferentes salas de convívio singular, as jarras estavam todas enfeitadas com arranjos de antúrios, estrelícias, sapatinhos e orquídeas, trazendo um pouco de vida aos espaços, contrastando com as cinzentas massas cerebrais torradas pelos infortúnios e pela loucura natural daqueles seres.
À aparente normalidade do ambiente, opunha-se o défice de sanidade mental presente, pelo que entrar nesses sítios muitas vezes era como penetrar numa dimensão irreal, em que a deslocação do nosso eu, se alheava do corpo para poder observar de longe tal amálgama de pensamentos dessincronizados.
Todos os anos pela mesma altura, pensava no quão nobre era a missão destas freiras, na devoção, na entrega simples, dedicada e de abnegação na troca, mas também me questionava se algumas daquelas diferenças mentais não teria a sua lucidez própria, o seu mundo particular que por vezes não entendêssemos e que devêssemos cuidar de forma diferente.
Costuma dizer o povo, que "de doutor e de louco todos temos um pouco". Felizmente que de ambos tenho bastante...
O meu pai dava consulta dos olhos, todos os sábados de manhã, assistido pela Irmã Almerinda, uma verdadeira máquina a dominar as malucas mais malucas. De uma devoção extrema por Jesus e pelo meu pai, tinha sido de facto abençoada naquilo que fazia, e a sua vida de missionária cumpria-se nestas entregas de saúde e sobretudo de afectos.
Havia de tudo ali; a jovem que ouvia vozes do além; a mulher que insistia em lavar os joelhos 52 vezes por dia; a idosa que em mutismo se abanava em oscilantes desempenhos; a esposa desprezada que numa tristeza maior se tentou acabar por um penhasco abaixo; e até uma maníaca recitava Camões e Pessoa, na perspectiva teológica da teoria do fole, aos pombos que por ali depenicavam.
A ordem de grandeza da loucura, era inversamente proporcional à alocação das insanas, sendo que as malucas violentas estavam encarceradas em salas almofadadas, as “assim-assim” tinham umas horas de liberdade no jardim, as desvairadas inúteis estavam alheias deste mundo e fechadas no seu país das maravilhas, enquanto as lúcidas desmioladas ajudavam na lide diária das freiras.
Certa vez, uma das jovens perguntou ao Sr.Dr. se queria que lhe lavasse o carro de estimação enquanto dava consulta. Erro crasso nesta colaboração, foi assumir que tudo iria correr bem...Ao voltar da consulta, a “Agostinha dos berlindes” lavava com toda a alegria o automóvel do Sr.Dr. com leite de vaca gordo! O velhinho mas reluzente Toyota, teve de apanhar com duas enceradelas para recuperar o sorriso dental...
A nossa visita da praxe era feita por alturas do Natal, e se por um lado eu adorava a recepção das freiras, que preparavam um verdadeiro banquete de bolos, bolinhos e docinhos conventuais; por outro, as personagens que por ali vagueavam ou nos abordavam, causavam-me um medo irracional. Malucas a agarrarem os braços e puxarem com sorrisos desvairados, um miúdo de 10 anos, não era o ideal de tranquilidade. Se me dissessem que aos 18 anos umas malucas me agarrariam e puxariam, creio que iria sonhar com essa miragem, mas ali com certeza que não, e com aquelas malucas, só doido...
Costumávamos fazer a ronda da visita aos vários presépios e lapinhas espalhados pela instituição, não havendo ali lugar para a pagã árvore de Natal. O Menino Jesus tinha sempre lugar de destaque, rodeando-o uma decoração kitch e mensagens de boa-nova, escritas em folhas de papel pintadas com lápis de cor. Nas diferentes salas de convívio singular, as jarras estavam todas enfeitadas com arranjos de antúrios, estrelícias, sapatinhos e orquídeas, trazendo um pouco de vida aos espaços, contrastando com as cinzentas massas cerebrais torradas pelos infortúnios e pela loucura natural daqueles seres.
À aparente normalidade do ambiente, opunha-se o défice de sanidade mental presente, pelo que entrar nesses sítios muitas vezes era como penetrar numa dimensão irreal, em que a deslocação do nosso eu, se alheava do corpo para poder observar de longe tal amálgama de pensamentos dessincronizados.
Todos os anos pela mesma altura, pensava no quão nobre era a missão destas freiras, na devoção, na entrega simples, dedicada e de abnegação na troca, mas também me questionava se algumas daquelas diferenças mentais não teria a sua lucidez própria, o seu mundo particular que por vezes não entendêssemos e que devêssemos cuidar de forma diferente.
Costuma dizer o povo, que "de doutor e de louco todos temos um pouco". Felizmente que de ambos tenho bastante...
maravilhoso. bjs
ResponderEliminarComo está tão presente!!!
ResponderEliminarAquele quarto transformado em lapinha.....
As freiras, os loucos, o doutor, as crianças.