Tudo tem um princípio, um meio e um fim. Sabemos como começa, e até podemos prever quando começa, mas nunca como, e quando acaba. É assim a vida...
E a quem podemos atribuir a gestão
dessa vida? Ao próprio, aos outros? Será que o próprio tem e deve ter o
controlo total da sua vida? Será que não
cabe à sociedade, regular algumas componentes determinantes dessa mesma
vida? De facto já o faz no seu dia-a-dia, mas não estamos a falar de questões
mundanas ou de quotidiano que balizam o nosso traçado.
Enquanto estamos activos e
independentes nas actividades, no escrever do próprio destino, temos
legitimidade e liberdade para estabelecer as nossas fronteiras, os nossos
abusos e excessos. Podemos até ter
atitudes que no extremo destroem a vida, mas conscientes e livres dessa mesma
acção.
A questão pertinente coloca-se nos momentos em que já não
conseguimos controlar a navegação do
nosso rumo. Nos momentos em que a doença nos tolhe os movimentos, em que o
nosso cérebro se apagou irreversivelmente deixando apenas o piloto automático
de alguns órgãos vitais, em que as máquinas nos sustentam esses mesmos órgãos
que cessaram função.
Nesta sociedade de hoje, em que somos
todos jovens, bonitos e eternos para todo o sempre, é difícil aceitar qualquer rasgo de fim de
linha. Como se os comboios fossem alimentados por carvão de queima infinita, e
se o tempo parasse um dia numa qualquer estação sem apeadeiro, como no
faroeste.
Não há lugar ao términos, ao fim, ao
simples acabou-se a que os velhos já se vão habituando. Tudo tem de ser salvo,
todos os animais aliviados da forca, e até o sofrimento das couves evitado. Esta é a mensagem subliminar que
nos vendem a toda a hora e em todos os canais!
Daí a discussão cíclica de um tema
forte e controverso como a eutanásia. Será que é um
direito? Será que é uma opção? Será que contrapõe assim tanto os valores
humanos? Não vou discorrer sobre a terminologia associada à palavra, mas apenas delapidar à visão da teoria do fole, um
diamante que está em bruto em muitas fortalezas mentais.
Assumo-me liberal, e como tal, creio que as liberdades individuais
podem e devem ser respeitadas ao máximo. Fazer o que se quer, como se quer e
quando se quer, desde que isso não
implique lesão de terceiros, pode ser legítimo. Mas assumir um ato
disruptor para com o próprio em plena posse das suas faculdades mentais, é algo que não encaixa completamente na
minha visão. Por duas razões simples: pela valorização fortíssima que tenho da vida humana, e
pela minha condição de médico.
Talvez não conceba de forma clara, como é que existem países em que os médicos fazem eutanásia assistida,
programada e voluntária, a doentes elegíveis por critérios definidos. Este
papel dúbio de médico-salvador
que recupera vidas (literalmente do além) num determinado momento, e que no
minuto seguinte assiste um fim de vida programado, é algo no mínimo bipolar. É certo que perante um doente terminal
e grave, muitas vezes assumimos interpares o não escalonamento terapêutico, a não realização de
manobras invasivas, o desinvestimento pleno, que sabemos terá as consequências de um desfecho fatal. Mas felizmente são casos pontuais em
que a partilha de informação e capacidade de decisão com a família é
determinante na decisão final. Segundo as recomendações do Conselho Nacional de
Ética para as Ciências da Vida, estas atitudes são correctas e devem ser
tomadas num consenso o mais amplo possível.
O sofrimento de alguém que tem uma
doença incurável e terminal é tremendo, e acredito que o próprio tenha
pensamentos de autodestruição, mas isso não legitima a vontade de que lho
façam. Mesmo que chegado a um ponto de não retorno, mesmo que saibamos quando a
vela se apagará, não me sinto confortável em accionar activamente algo que vai
influenciar o tempo do desfecho.
Para mitigar o sofrimento do próprio
e dos familiares, dirão alguns? Minorá-lo com certeza, e de todas as formas
possíveis, especialmente com a valiosa e fundamental intervenção dos Cuidados
Paliativos, mas não ceder à tentação de o desligar só porque nos incomoda e impressiona.
Se este é o factor primordial, então devemos criar condições e o terreno
estrutural para que haja acesso universal a esses mesmos Cuidados Paliativos.
Estou também em perfeito desacordo
quando se diz que perdemos a dignidade com o fim de linha de uma qualquer
doença. A dignidade cria-se através de um historial de vida e de conceitos
criados, que não podem ser distorcionados por uma incapacidade terminal de se
relacionar ou interagir. Talvez concorde que a dignidade mude de forma nestes
casos, mas aquela pessoa mantém a sua dignidade intocável.
Nos doentes terminais há quem veja um
fardo e um ónus de trabalho, mas sabemos de antemão que é destas lutas que
nascem as resistências e as resiliências das nossas vidas. Quer para o doente,
quer para os que o rodeiam, servindo muitas vezes como exemplo de luta e
perseverança. Estupidamente, a perda terá de se transformar em algo superado e
combatido. Assim aprenderemos que na vida não carregamos no interruptor e as
coisas não desaparecem no escuro dum qualquer quarto.
Num país como o nosso, onde se morre
muitas vezes sem familiares, anonimamente num hospital, em sofrimento, sem
dignidade, percebo a advocacia da eutanásia, mas o crivo destas acções tem de
ser ponderado.
Neste caso, defendo empírica, emocional
e profissionalmente que a eutanásia deve estar balizada por uma série de itens
fortes, e decidida em última instância caso-a-caso, por um conselho de
pensadores (profissionais de saúde, juristas, filósofos, religiosos, políticos,
outros), que analisariam e decidiriam da sensatez de um arremesso como este por
parte de um doente.
Recebi há tempos de um amigo, o
convite para escrever sobre este assunto para um jornal. Confesso que não sei
se me incluiria na barricada do sim ou do não, simplesmente porque a
complexidade é tão grande que estaremos sempre em omissão ou em excesso para
muitos.
É um tema que precisa e merece um
debate alargado, independente de lobbys políticos, religiosos ou
sectários, para que as pessoas se esclareçam, se informem e opinem.
Mas sobretudo para que pensem, e
pensem pelas suas próprias cabeças. Não apenas com o coração..
Não será fácil, e é
culturalmente desafiante numa sociedade que cada vez mais, tem dificuldade em
reunir consensos.
Um abraço e vivam a vida!
Magnífico!
ResponderEliminarObrigada. É sempre bom ler a opinião de mais um médico. Pena é que nem todos os médicos pratiquem as recomendações do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida....
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