Com os microfones dispostos em meia-lua,
o som de retorno estava muito baixo, o micro da percussão estava a entrar no
geral, o feedback era frequente, e a captação das vozes não se apanhava.
É esta a utilidade dos check-sounds, porque ao fim de meia hora e muitas
trocas e acertos na mesa de mistura lá no fundo da sala, a equipa técnica
conseguiu equalizar um som harmonioso e equilibrado.
Este espectáculo que íamos
apresentar já levava alguns meses de rodagem, e por isso a maioria de nós se
sentia confortável na execução e interiorização do ritmo e sensibilidade das
músicas. Um espectáculo dedicado ao mar e às suas gentes, que no fundo sempre
foram as nossas gentes. Um hino ao nosso cancioneiro e um projecto que nos
obrigava a ser melhores que a vez anterior.
Mas esta apresentação não teria nada
de especial a não ser pelo facto de ser na metrópole do norte. Não sou de
bairrismos fanáticos, aliás, nem sequer sou de Lisboa, mas todos somos
profundos conhecedores da velha rivalidade entre estas duas capitais. Por isso,
virmos de Lisboa e apresentarmo-nos pela primeira vez no Coliseu do Porto, era
algo que nos dava um nervoso miudinho e nos criava a real expectativa de que
não podíamos falhar.
Durante o resto da tarde conseguimos
ocupar uma das salas de ensaio e passamos ali umas belas horas de afincado
trabalho. Sob a batuta dos obsessivos ensaiadores, repetíamos as partes mais
frágeis, afinávamos detalhes de última hora, sincronizávamos as vozes até à
exaustão, com muita gargalhada e boa disposição à mistura como válvula de escape. Acima de tudo era o
peso da responsabilidade e determinação em fazer boa figura!
Com a voz frágil que tenho, não
arrisquei a beber cerveja durante todo o dia, pois os frios podem estancar a
voz. Sendo um dos solistas, que ainda por cima teria a responsabilidade de
abrir o espectáculo, chegou-me ao ouvido o rumor que um cálice de Brandymel
ajudaria nestas performances. Usei da fama e bebi mais um ou dois, para que o
resultado do remédio fosse maior...
O jantar do dia foi precedido por
uma pausa, aproveitada para beber um café no lindíssimo Majestic. De
facto o Porto sempre me encantou, com os seus segredos, com os seus tesouros
bem conservados, com a sua tradição, mas sobretudo com tudo aquilo que de mais
valor tem: o seu povo! Gente acolhedora, sincera, amiga e com uma natureza que
nos inspira confiança. Gosto sobretudo da verdade que emanam e da integridade a
todos os níveis. Gosto, sim senhor!
As ruas circundantes estavam a ficar
intransitáveis à medida que se aproximava a hora do festival, com lotação
esgotada já há muito tempo. Nestes eventos imbuímo-nos de um espírito de festa
tão abrangente que de forma natural se estende ao sentir vibrante da
cidade, sob a batuta vigilante da teoria do fole.
Com este primor de ensaios, claro
que perdemos o jantar da cantina e acabamos por comer uma francesinha mesmo em
frente ao coliseu, fruindo o movimento e a azáfama natalícia da rua. Soube tão
bem, que rematei com um Brandymel aquecido (a ver se maximizava as suas
propriedades terapêuticas), e de volta aos camarins para um último ensaio antes
de entrar em palco.
Agora sim é que entrava o nervoso
miudinho!
Os semblantes estavam mais sérios, e
mesmo que tentassem disfarçar não conseguiam esconder uma certa preocupação e
tensão.
Tinha sido o intervalo e a tuna que
abria a segunda parte já estava em palco.
Subimos as escadas posicionando-nos
no backstage, para que assim que acabasse o grupo anterior entrássemos
nós. Aquela espera é um momento de ansiedade e concentração, tendo como hábito
andar de um lado para o outro, pedindo repetidamente a uma guitarra ou ao
acordeão que me liberte o tom da música. Isto de entrar "a seco" e
sem rede, pode parecer, mas não é fácil…
Já está! A tuna anterior acabou a
actuação e cruza-se connosco de feição descontraída e aliviada por nos passar o
testemunho, pronta para festejar em grande. Que inveja!
Enquanto o pano está em baixo,
tomamos as nossas posições em frente aos microfones. Quase um por
voz, e um por instrumento. Fico posicionado entre o acordeão e a percussão,
ajustando e alinhando o micro, mas nesta altura já só desejo é entrar em acção!
Cada um traça a sua capa evitando derrubar o sistema de som montado, enquanto
do outro lado da cortina se desenrola um pequeno sketch humorístico,
dando-nos tempo a posicionar correctamente. Falam de um qualquer momento
futebolístico norte-sul...
Bom! Tudo a postos e umas últimas
palavras do psicólogo de serviço: "Sorriam!", "Força pessoal",
"Dicção, e cantem à homem!”, gerando em resposta uma onda de comentários murmurados
e palavrões à mistura..
Oiço então os apresentadores num
coro retumbante:
-"Senhoras e senhores fiquem
então com...A Estudantina Universitária de Lisboa!", ao mesmo tempo que o
pano subia e os holofotes nos iluminavam o rosto esvaindo-se engolidos pelo
negro das batinas.
Nesse preciso instante e num ímpeto
de animosidade, uma chuva de insultos, impropérios e duríssimas palavras que em
nada lisonjeavam as nossas mães ou mulheres, encheram a sala num basqueiro
verdadeiramente ensurdecedor. Como se estivéssemos num estádio de futebol e
entrasse a equipa mais arqui-rival do clube da casa. Afinal a rivalidade
Lisboa-Porto tinha sido transposta para esta arena e teríamos de a enfrentar!
Confesso que estremeci, e ao rodar a
cabeça pude ver vários sorrisos amarelos estampados em caras de pânico! Em
alguns conseguia ler nos olhos e adivinhar entre dentes o pedido "Começa a
cantar car@€;)5&@!0...".
O público continuava a apupar
ruidosamente, mas permanecemos firmes e em muda posição durante uns infindáveis
4-5 minutos! O Coliseu quase que vinha abaixo...
Não podia desatar a cantar a solo
com aquele protesto...
Uma serena calma me invadiu enquanto
seguia pelo canto do olho os tiques nervosos de alguns que eu já conhecia. Não
iria começar sem que se calassem, e a certa altura a tuna ficou mais nervosa
comigo por não começar, do que propriamente com o coro de assobios....
Finalmente as vozes se foram
encolhendo, não sei se pelo cansaço se pela nossa inderrubável afronta, e aí
retomei de confiança. Quando o público se calou, olhei de novo para o lado e
anuí subtilmente com a cabeça como quem diz: "Vamos a isso!".
Fechei os olhos, respirei fundo e
soltei com segurança a primeira estrofe do Infante:
-"Deus quer, o Homem
sonha, a obra nasce"...
Nesta altura o silêncio na sala era
absoluto, e o coro entrou com um corpo tão compacto quão impressionante.
Arrancamos aplausos espontâneos e verdadeiros no fim da música! Estavam
rendidos! Ufa!
Numa apresentação sóbria, completa,
com exímia execução e cheia de alma, fomos música-a-música ganhando o público e
conquistando os seus corações. Boas execuções, força e corpo nas vozes, timings perfeitos e apresentações
sóbrias, engrandeceram músicas originais e arranjos lindíssimos. Tudo isto, fez
com que no fim de cada música os assobios se tivessem transformado em palmas, e os
apupos em bravos! Que reviravolta surpreendente! Que momento!
Quando saímos de palco, os abraços
sentidos aliviaram a tensão acumulada naqueles 40 minutos e entrámos em modo
descompressão com sensação de missão cumprida.
A Estudantina tinha mostrado todo o
seu valor, classe e postura de forma exemplar!
Uma noite memorável!
Um abc
PS: Neste festival arrecadámos os
prémios de melhor solista e 1º lugar…J
Comentários para quê?! Estive lá
ResponderEliminarMemórias...o melhor da vida! O pessoal do Norte... essas alminhas usam palavras fortes com muita frequência num contraste de fúria e meiguice. Bipolares por vezes. Mas gosto de lá ir. Cresci lá numa simplicidade única em que se é feliz com pouco. Parece que acolhem com tudo e por vezes o que têm para oferecer não se pode comprar. Também o melhor da vida.
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