quarta-feira, 28 de maio de 2014

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Através do vidro conseguia abraçar com a vista, aquela imensa cidade que se estendia como um tapete de luzes cintilantes. Enquanto tomava o seu almoço em forma de comprimido amarelo, não conseguia distinguir os humanos dos andróides que circulavam na monovia intergaláctica.

Desde o ano 2231, que a empresa "Humanóides - Inc" tinha melhorado o seu andróide humano XP30. Hoje em dia, passados cem anos, é impossível distinguir um destes de qualquer ser humano. Eram todos construídos com peças de carbono, ligadas com rudimentares articulações de parafusos e porcas, funcionando a partir duma central electrónica localizada ao tronco, que por sua vez comandava todo o processo físico e intelectual. Análogos de tecido humano davam a consistência a estes robôs, e era possível ver andróides gordos, feios, bonitos, magricelas, vesgos, mancos e tóninhas.

Uma empresa estatal controlava os milhões de andróides da galáxia Zurca, e estabelecia quem levava com o sinal de nascença.

A única maneira de distinguir os humanos, era porque estes não tinham o interruptor no topo da nuca como os andróides, e porque os humanos vomitavam, o que a tecnologia ainda não permitia a estes genéricos de pessoas.

O vómito sempre foi uma característica nojenta e degradante da condição humana. Aquele barulho gutural que parece arrancar as vísceras por dentro é inimitável...

Nesta sociedade, as famílias modernas eram sempre constituídas por um misto de humanos e andróides. O pai andróide, a mãe humana os filhos humanos. O pai andróide, a mãe andróide, os filhos humanos. O pai humano, a mãe andróide, os filhos andróides. E por aí fora. A tecnologia ainda não tinha sido desenvolvida para que as mães andróides dessem à luz, mas em compensação, os pirilaus andróides podiam relacionar-se não só com congéneres autómatos, mas também com a carne propriamente dita.

A mistura era grande, todos tinham papéis iguais, todos tinham os mesmos direitos e deveres, e até a legislação foi mudada de modo a regular as possíveis discrepâncias.

Era neste mundo do futuro, inimaginável desde o tempo de Jesus Cristo, que homens e criações do arco-da-velha, conviviam com alma e empenho…

Mas como em todos os mundos pintados de cor-de-rosa, havia sempre alguns nichos de excluídos e marginalizados. Neste caso, tratava-se da tribo minoritária chamada Ilítris. Eram descendentes do primeiro rei zarolho, de um pequeno país situado naquela que denominavam antigamente de península ibérica. Uma península próspera e recheada de gente bem-disposta, que foi acometida por uma doença vulgar e comum naquelas paragens, a que se pensa terem chamado de "Dívida soberana", doença essa não completamente caracterizada por falta de registos, devastados aquando do piquenique de uma empresa de nome "Continentus".

Os Ilítrianos eram normalmente postos de parte nas questões geopolíticas e estratégicas do espaço sideral, porque tinham uma baixa cota de andróides nas funções de jardinagem, sendo relegados para importância de segunda, por não cumprirem as directivas ecológicas e ambientais que obrigam ao rácio de um jardineiro para 53 repolhos e dois gengibres.

Várias vezes a Humanóides-Inc, na pessoa do seu presidente, Ralitus Tiluana, tentara fornecer remessas de andróides a estas paragens tão longínquas de tudo. Mas sempre lhe boicotavam a acção, utilizando simples artimanhas de guerrilha, uma vez que os robôs não estavam preparados para ordens tão sui generis como: "agora tocas com o teu cotovelo esquerdo na tua nádega direita", ou "penteia-te, andróide careca!" ou o fulminante "desliga-te na nuca!". Esta última ordem gerava um tal conflito emocional no andróide, que este entrava em curto-circuito, revirava os olhos e libertava fumo azul pelas orelhas, desintegrando-se em várias peças não reutilizáveis.

Tiluana porém, não desistia facilmente do desafio de conquista e implementação da sua estratégia imperialista de povoar os confins e sem-fins da galáxia. Usou das mais variadas artes para introduzir os andróides na península ibérica: levados por cegonhas, oferecidos em cabazes de fruta, vendidos em fascículos, escondidos nos púcaros das caldas, e até no fundo dos cartuchos da castanha assada. Nenhuma destas brilhantes ideias foi capaz de vingar.

Como última tentativa e golpada de génio, lembrou-se de organizar um chá dançante onde os andróides teriam a oportunidade de mostrar os seus mais variados dotes humanos: a confraternizar, a seduzir, a socializar, a dançar, a contar anedotas, a cantar, entre outras coisas esquisitas como estas habilidades da alma.

Da mesma janela que contemplava a cidade, e com um sorriso maquiavélico, imaginava-se a conquistar o último reduto humano como um triunfador que joga a sua última batalha da guerra final!

O seu receio era apenas um: que os humanos desatassem a gritar ao ouvido dos humanóides a temível ordem "Desliga-te na nuca", pois ele sabia que isso destruiria a sua legião de soldados invasores. Por isso de imediato ordenou que todos os humanóides implicados nesta missão colocassem tampões nos ouvidos, não podendo receber ordens autofágicas.

A sétima feira do último dia do quarto minguante, foi a data escolhida para o mega evento que iria promover o encontro entre humanóides e humanos, sob a escusa guarda-chuva de "I Encontro Universal dos Teseus Ameliados". Ninguém desconfiava de um argumento tão forte, pelo simples facto de ser um argumento inexistente e banal.

O marketing de promoção do evento estava tão determinado, que distribuiu panfletos desde a galáxia vizinha até ao monte do Ti João, passando pela serra dos Machundungos como quem vai para a antiga vila de Quarteira. Os anúncios sucediam-se na rádio, televisão, nas ondas zit, e até nos implantes cocleares, pelo que o sucesso estava quase garantido. De sorriso malvado pintado nos lábios, Tiluana esfregava as mãos de satisfação....

Naquele dia, humanos e humanóides faziam fila para entrar no mega-pavilhão, sendo que a comitiva do humano governador ibérico - Ramiro Ramirez, o descendente de Afonso Henriques - já se encontrava no seu interior.

O baile foi inaugurado pelos anfitriões, ao som de uma mega banda electrónica com músicos oriundos dos planetas mais exóticos e epifânicos, que interpretavam as belas sinfonias da teoria do fole.

A pista dançante movia-se ao som dos graves mais baixos, aerossóis de baunilha eram pulverizados para o ar, líquidos fumegantes passavam em bandejas para refresco dos mais sequiosos, e pequenas bolas de berlim rolavam no sistema suspenso para alimentar as bocas de açúcar. O clima era de euforia, e todos suavam, humanos e humanóides...

A humanidade estava prestes a perder o seu último reduto, incólume das investidas colonizadoras desde os primórdios da miscelânea com os robôt-pessoa. Os humanos da península ibérica, o último bastião da genética pura, parecia que ia cair na armadilha fatal da Humanóides-Inc.

Parecia, mas apenas parecia. Isto porque Ramiro tinha também preparado um contra-golpe de mestre. Acompanhava a ofensiva, com formigas radiotransmissoras, que enviavam reports actualizados de todas as movimentações e ordens de Tiluana.

Eram cinco prá meia-noite e os humanos disfarçadamente se afastavam dos seus genéricos de pessoas, a música insistia numa batida mais lenta e hipnotizadora, com rezas budistas milenares a enebriarem o subconsciente.

Doze badaladas soaram de um cuco gigante, instalado na parede junto à entrada.

Nesse preciso momento, numa acção concertada ao milésimo de segundo, todas as rádios do universo, todas as televisões do universo, todos os implantes de cabelo do universo e todos os megafones e afins do universo, deram a temível ordem de voz em uníssono, em três tons dissonantes:

"Desliguem-se na nuca!"
"Desliguem-se na nuca!"
"Desliguem-se na nuca!"

Os andróides do universo pararam de repente, puxaram a mão atrás e puseram-se em off, caindo-lhes os braços ao longo do corpo e curvando o tronco para a frente sem cair., como se a bateria acabasse. Um monte de peças e parafusos, alguns a deitar fumaça pelo pescoço, um exército de clones parados, espalhados pelas quatro partidas da galáxia!

Os momentos seguintes foram de silêncio, os humanos olharam uns pró outros e reconheceram-se olhos nos olhos, pele na pele, respiração com coração, e gritaram em júbilo:

"Livres da tirania tecnológica, para todo o sempre!"

A humanidade tinha vencido a sua própria invenção....

Fim!

PS: quando conhecerem alguém, confiram-lhe a nuca, sff…

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