Mas foi mesmo no pico do verão que tal façanha se deu. Primeiro uma humidadezinha que apenas empapava, depois um fiozinho tímido de água, para ao fim de três dias jorrar uma fonte tão pura e cristalina quanto se dizia a mulher de Aníbal. A fonte "Bruta Seca" como lhe chamavam, decidiu abrir de novo as goelas da terra, e lançar a água mais perfeita e milagrosa do mundo.
Logo o manco decidiu bebê-la e andou. A cega molhou a cara e começou a vislumbrar a sua na poça que restava. O maluco declamou Pessoa em verso e prosa, e até o leproso suas chagas curou com uns pingos que lá caíram. Só milagre não reconhecido foi o da mulher de Aníbal, que dizia ter emprenhado ao lavar-se entre partes, com a dita água da fonte.
A notícia espalhou-se como um caminho de peças de dominó, e toda a gente das aldeias vizinhas se encaminhava em romaria para ver tamanha obra de Deus. Ou da Terra..
Depressa longas filas de espera se formaram para encher bilhas, vasilhas e tudo o que pudesse arrecadar aquele líquido abençoado, para depois o usar, vender ou negociar em terras daquém e dalém.
A carrinha da câmara fartava-se de colher amostras para comprovar a sua salubridade, mas quem atestou a pureza do produto foram uns americanos que por lá apareceram. Vieram em três jipes de vidros fumados, saindo de dentro com uns fatos assépticos brancos e umas sofisticadas malas que abriam com um código cifrado. Os óculos escuros não permitiam vislumbrar para onde dirigiam o olhar, mas de porte altivo seguiam em frente sem respeitar filas.
-"Filhos da p*%#, dos gringos, acham quisto é deles!"
A água era mesmo boa e podia usar-se para qualquer princípio, meio e fim.
O caudal da fonte aumentava a cada jorna, servindo de rega e utilização comum para todos os habitantes em redor.
As peregrinações de gente que acorriam ao local para ver a primeira fonte santa do país, redundavam num negócio florescente de frasquinhos de amostras benzidas, de réplicas da fonte bruta seca, para além dos habituais relógios, esferográficas, lenços, guarda-chuvas, t-shirts, cachecóis, atoalhados, todos com a imagem do Papa a benzer a dita fonte.
Em poucos meses, uma tal dinâmica se gerou em volta da fonte, ao ponto de transformar uma aldeia que outrora albergava uma vintena de famílias remediadas, numa amplificação da sua existência para uma autêntica urbe com cerca de meio milhão de almas. A parafernália instalada, sugava e explorava todas as vertentes possíveis e imagináveis relacionadas com a água...
Assim, os prados verdejavam a cada gota, as colheitas eram às meias dúzias por ano, e até frutas tropicais cresciam naquele interior tipicamente beirão.
A vida corria com prosperidade, e no tempo em que as cegonhas vêm e vão, coisas muito estranhas começaram a acontecer...
Tudo o que lhe era relativo, redundava em abundância e progresso, mas quem começou a notar nos poderes absolutos foi a mulher de Aníbal...
Costumava ir de madrugada cedo, ainda a fonte parecia adormecida mas sempre a jorrar. Os animais aproveitavam a altura de calmaria humana para saciarem a sede, e a mulher de Aníbal pôde constatar o quão transtornados ficavam ao beberem da dita santa fonte.
Os cães passavam a miar, as vacas assobiavam como passarinhos, o porco da tia Matilde recitava de cor Pessoa, as rolas vendiam a teoria do fole, e até os mochos contavam anedotas às formigas. Estes efeitos duravam apenas alguns minutos, mas foram suficientes para que a mulher de Aníbal pensasse que a água também lhe estaria a afectar os joelhos artrósicos.
Correu assustada e começou a reparar na população local. Afinal não eram os seus olhos, mas o merceeiro tinha mesmo escamas, a Julieta pregava aos sinais de trânsito, o cedro da praça em vez de folhas dava plumas, o pároco fazia ballet no coreto, e até o jumento de Maria fazia bostas da altura de um adulto!
Ainda bem que naquele dia não tomara água...
De repente a aldeia tinha-se transformado numa fantasia, talvez saída de um mundo de Alice.
A insanidade continuou assim, dias a fio, com a aldeia num tropel incessante de loucuras e personagens transformadas, desde o alucinante ao burlesco.
Rádios e jornais de todo o mundo colocavam a agora macro-aldeia no centro do foco internacional, centenas de jornalistas acorriam para relatar o feito mais mirabolante ou a personagem mais bizarra em que se tinham transformado os habitantes locais.
Médicos, físicos, químicos, cientistas, agências de segurança! Todos instalaram laboratórios de pesquisa e intervenção, na tentativa de perceber o sucedido.
Andar nestas ruas era como passear numa qualquer cidade do cinema, com dragões, fantasmas ou cowboys à mistura.
Mas o ritmo dos acontecimentos sucedia-se como uma descida de montanha russa, e quando a aldeia já estava cercada pelos militares, com controlos de entradas e saídas rigoroso e totalitário, eis que algo de surpreendente de novo acontece...
O grande jorro de água encolhia e encolhia a olhos vistos. As pessoas inquietavam-se e aproveitavam cada gota expelida pela rocha dura, como se a última fosse. Mas o sinal estava dado, e irremediavelmente a fonte estava a mirrar. Em poucas horas transformou-se num fiozinho de água, reduzida apenas a uma porção do seu esplendor, ficou intermitente, e por fim quando já todos se acotovelavam para sugar o resto, uma humidadezinha foi o que sobrou durante duas luas.
Findos dois dias a fonte ficou tão seca como folha em outono frio!
Como num de repente, os aldeões e mulheres voltaram à normalidade, os bichos comportavam-se como tal, o circo mediático montado desapareceu, os noticiários já abriam com uma qualquer guerra de homens, e em poucos dias a rotina voltava ao meio rural.
Nunca ninguém explicaria o fenómeno da fonte "Bruta Seca", nem tão pouco os livros de escola se lembrariam sequer que aquela aldeia alguma vez tivesse existido...
Tudo parecia bem de novo, e até Aníbal regressou aos braços da mulher...
Acho que já bebi dessa água... @ #€&% O.o mas o efeito parece estar a passar :D
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