domingo, 23 de setembro de 2012

Campo da bola




Esperara muitos anos por aquela notícia, mas agora era tarde demais.

Quando era criança brincava muito na rua. Essa rua que agora tem carros mal estacionados, e onde os cocós dos donos salpicam os passeios já estreitos. Deviam fazê-los mais largos para que houvesse espaço para todos. Cocós e pessoas.

Também tinha pena de nunca ter tido um cão. Mas nunca o tendo, pelo menos o consolo de não ter de lhe apanhar os cocós...

Sempre que vinha da escola, saltava o muro curto do estádio do Atlético e marcava um golo atrás do outro, em fintas imaginárias e livres direitinhos ao ângulo.
As bandeiras, os cachecóis e os apitos, rejubilavam com mais uma fantasia de grandeza que o transformava numa estrela do nada e do ninguém.

Cresceu com a mágoa de nunca ter visto o seu campo da bola com relva. Assim como quem morre com a mágoa de nunca puder ter visto as suas próprias costas.
Tanta gente que morre com mágoa e magoada..

Até ele, ali estendido na cama à espera que o chamem pela última vez.
-Não te zangues que não estou a fazer ronha! A preguiça entranhou-se em mim e agora tenho de esperar pela notícia!

Quando uma vez o Benfica veio jogar, até a erva daninha deixaram crescer no meio campo. Mas foi sol de pouca dura, porque assim que as águias abalaram, deixando a maior enchente da história do Atlético e a maior derrota desde a sua fundação com nove golos do pantera negra, a terra continuou a bater tanto no meio campo, que mirrou a pouca erva ruim que pincelava de verde o chute inicial.

-Estas dores matam-me de dores!
E eu prá aqui virado, porque o lençol se enrodilhou e não me deixa virar para oeste, que é onde se põe o sol. Que ironia! Agora que me vão apagar a luz de vez, estou virado a nascente.!
-Até me dói de rir!
-Também posso virar a cabeça para Sul que dizem é mais quentinho?

-Espera! Tás com pressa homem?
-Mas afinal quem sofre mais? Tu da pressa da espera ou eu com dores?
-Não percebes que estou esperando só por isto?

Uma vez veio um engenheiro da capital, ver o que se podia fazer. Tinha de ser muita maquinaria pesada, que os tapetes de relva fofa aos quadrados custavam uma fortuna, e o presidente da câmara não queria gastar o orçamento do anexo da sua casa para ajudar o clube da aldeia.

Tratou-se então de arranjar o tractor do Chinguilha para levantar terra, assentar com o rolo compressor, e finalmente lançar as sementes da relva que iria germinar nos buraquinhos milimétricos ponteados pelo ancinho.

Mas o Chinguilha ficou de boca à banda e o corpo deixou de lhe obedecer de repente!Primeiro uma perna bamba, o braço, a boca de lado, sem falar, mas quando espumou e começou a revirar os olhos já estava arrumado. Disseram que lhe deu uma trombose, ou um avc no entender dos entendidos, pelo que como ninguém sabia mexer no tractor, a sementeira foi-se...

-Ai!!! Porra pra isto mais a teoria do fole! Outra puta doutra guinada!!!"
-Raios partam esta doença que nos rói os ossos e come a carne por dentro!
-Quando chegar aí acima, vou-te perguntar se fizeste o mesmo ao camarada Juca da sapataria!

Tenho mais de mil artigos e recortes do atlético desde que sou vivo e agora quase morto. Pra que é que será que guardamos tanta trapalhada inútil? Temos medo que se nos borre da memória quando envelhecermos e não soubermos nomear um qualquer presidente? Sim, porque nomear presidentes é uma prova de lucidez para além do patriotismo. Lembrar-se de ninguém que nada fez...

Como os recortes! Não falam, não reclamam. Cristalizam os golos e resultados para todo o sempre. Será que alguém vai aproveitar aquilo para o museu?

-Caramba! Tardavam em chegar com notícias. Daquelas que eu esperava ouvir!
Uma cama de hospital não tem bonitos adereços onde um se possa entreter..

Uma vez foram à aldeia do meu pai e levaram também umas notícias. Daquelas que ninguém quer ouvir. Os telegramas do ministério da guerra vinham buscar os moços e o seu sangue.
Nos ouvidos das mulheres ficavam a retumbar aqueles momentos imensos, que duravam a distância do calor de uma terra que diziam ser em África.

Não sei se estão a chegar mas já me sinto cansado nesta enfermaria que tresanda a éter. Os olhos que pesam toneladas e um respirar ao acaso, como se me lembrasse vagamente de inspirar fundo de quando em quando.

Ao esforço do ar a entrar, inversa a facilidade em sair, e a expectativa da audiência em ver se havia outra golfada de oxigénio miraculosa por parte do moribundo paliativo.

-Parece que é desta!
Mas se ainda penso, não foi, não é...?
Mas um pensar já vazio, cansado de sofrer, um corpo definhando e um revirar de olhos quase como o Chinguilha. Não aguenta mais. Coitadinho..

A porta abriu-se lentamente num prenúncio.

Arnaldo ofegante e a chorar de alegria, anunciou que o campo de relva do Atlético tinha finalmente sido inaugurado e benzido!

O silêncio abateu-se no quarto e os rostos transfiguraram-se..
A enfermeira abanou pesadamente com a cabeça.
Fechou-lhe os olhos.
Plácida e serenamente cobriu-o com um lençol.

Podia ter frio na sua última viagem.

Adeus dores...

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