Assim que a noite caía apagando a luz do sol, Camólas descia as escadas de madeira antiga, e abria a pesada porta que dava para uma das ruas estreitas daquele bairro cheio de vida pelo dia. Nunca encontrava ninguém nas escadas, mas provavelmente porque todos desciam à mesma velocidade que ele, pelo que nunca apanhava os da frente, e os que lhe precediam também não lhe punham a vista encima.
A doença de pele não lhe permitia receber os raios de sol desde a infância, sob o perigo de o escaldar que nem um chouriço na brasa. Não conhecia o verdadeiro vermelho forte dos carros de bombeiros, o azul brilhante do Atlântico, o amarelo da Carris, o verde da figueira do quintal, nem tão pouco o cor-de-rosa das cuecas rendilhadas da Deolinda, que secavam desfraldadas ao vento, na corda da roupa do prédio em frente, como se fossem um discreto convite para a rambóia. Apenas conhecia estas cores todas desvirtuadas, mortiças e amareladas, pela luz incandescente dos quartos, ou pelos candeeiros de rua que criavam sombras e circunscreviam espaços de claridade.
A sua pele era branquinha como uma folha de papel, e vestia sempre uma gabardine comprida verde que lhe conferia um ar até algo sinistro. Em criança chamavam-lhe o “pacote gresso”, e apenas saia à rua nos eclipses solares ou nas férias de inverno na Islândia, onde o sol estava sempre em baixo.
Aquela noite era como outra noite qualquer, de um qualquer outro dia de todos os mesmos dias. Mas o calor que se fazia sentir era como se convidasse o povo a uma festa de rua, com sardinha assada e vinho a jorro. Por isso dispensou a gabardine, vestiu os calções curtos de padrão florido, que nunca também tinham visto a luz do dia, e enconjuntou-se com uma camisa de alças amarela que tinha pertencido ao famoso ilusionista “Bambolinetti”. Nunca antes tinha tido tantas partes do corpo assim expostas, mas o calor ainda assim era insuportável.
Quando abriu a tal pesada porta da rua, o ar quente sufocou-lhe os pulmões, e obrigou-o a respirar tão fundo de olhos fechados, e com um esgar facial, que um transeunte que passava gritou antecipando o gesto: “Se me espirras encima, levas na tromba!”.
Saiu saudando toda a gente com quem se cruzava: a Rosa da padaria, o Olavo picheleiro, o mecânico Adolfo, a Micas leiteira a até mesmo o mal-amado bófia Azevedo. Todos andavam na rua a aquela hora pois já tinham fechado os seus estabelecimentos. Só a Charlene – puta de profissão – especada a trabalhar naquele horário, na esquina da Rua Samora com a Travessa da Saudade, levou com a habitual palmada no traseiro: “Ó jóia anda cá ao ourives!”, recebendo o Camólas em troca, mimos de índole diversa e não elogiosa, que visavam a maioria das vezes (e ironicamente...) a sua mãe e restante família...
Costas com costas, à casa do padre Aureliano, estava a melhor boîte do bairro, que o Camólas assiduamente frequentava até a hora do fecho, coincidindo com o desabrochar dos primeiros raios de sol.
Nessa noite quente de verão, entrou como sempre pela porta dos clientes habituais, recebendo um cartão de consumo VIP. Significava que a botelha de uísque que tinha pago na semana anterior, ainda estava na mesma prateleira dos habitué, e que a Marlene do bar lhe tinha dado umas borlas...
Nessa noite acabou com a garrafa, o abafado da gorda solteira do 32 da sua rua, a ginjinha que bebeu de penálti após os brindes do aniversário do caniche da Celeste, e ainda dois cocktails inventados segundo a teoria do fole. À medida que o álcool lhe ia empapando as células do corpo, uma a uma, a sua cabeça rodava como o carrossel da feira do Campo da Barca, não conseguindo sequer quase abrir os olhos. Depois de dançar, dançar, e dançar, como se não houvesse noite seguinte, a sonolência e o torpor começaram a invadir-lhe os comandos cerebrais, pelo que foi “convidado” a sair do estabelecimento comercial. Em primeiro pelo seu estado de embriaguez, e em segundo porque eram 6h da manhã e já só restava o caniche da Celeste amarrado ao balcão.
Assim que saiu encostou-se à parede, deixou-se escorregar e sentou-se no passeio, deixando cair a cabeça entre as pernas. Esteve ali uma hora a destilar ao sabor daquele calor da noite que lhe abria ainda mais os poros, até que os primeiros raios de sol despontaram, e lhe tocaram na pele que nunca antes tinha visto raios gama...Sempre lhe tinham dito os doutores que se o sol lhe tocasse, morreria!
Mas não! Abriu os olhos devagarinho, pôs a mão na testa para os olhos lhe sombrear, e começou a inspeccionar os braços e as pernas nus de roupa. Nada acontecia, não tinha falta de ar, não tinha dores, nem convulsões, nem brotoeja, nem bolhas lhe nasciam na pele!!!!! Estes anos todos enganado, a viver na sombra, no escuro, na fuga do astro-rei que o poderia mitigar, e afinal tudo em vão!
Levantou-se de um ápice, fez o caminho inverso para casa, abriu a tal pesada porta de casa, subiu as escadas encontrando em sentido inverso e pela primeira vez os vizinhos que nunca via, pôs a chave no destrinco, e correu a escancarar os tapassóis da varanda. Foi buscar o melhor divã que tinha, tirou a camisa, e sentou-se confortavelmente reclinado, abraçando os primeiros raios manhã, com um ar de felicidade do tamanho do sol!
Camólas estava curado...!!!
OH CAMÓLAS...............
ResponderEliminarE FINALMENTE A TEORIA VAI DE FÉRIAS E CERTAMENTE O FOLE TAMBÉM........ BEM MERECIDAS E DESEJADAS, NÉ ?????????????
BJ