domingo, 14 de abril de 2019

O Bandeiras


Naquele princípio de século, Machico era uma pacata vila onde viviam apenas 5000 habitantes distribuídos pelo centro e serranias próximas. Aureliano era o comerciante local que assegurava todo o material de cozinha, limpeza, bric-à-brac, utensílios para a agricultura, e até uma pequena farmácia funcionava como retrosaria de largo espectro, onde no fundo tudo se encontrava. Desde o alfinete até aos sacos de cimento.
Semanalmente e por via terrestre, trazia o abastecimento do porto do Funchal, sítio onde descarregavam os verdadeiros cargueiros cheios de material oriundo da longínqua metrópole.
Tinha herdado aquela loja do pai, mas foi por sua iniciativa que desenvolveu esta capacidade de oferecer todo o leque de material que vendia.

Aureliano tinha casado há pouco tempo com Maria das Neves Spínola, numa cerimónia que reuniu as maiores figuras da vila, desde o governador ao padre, o chefe de polícia e a parteira local. Vivia bem, e sem preocupações, com o sonho de constituir prole e construir uma unidade transgeracional que seguisse uma lógica de família tradicional, e ao mesmo tempo empreendedora. 
Ficaram muito felizes quando Maria das Neves soube estar de esperanças! Ele de peito inchado, atendia os clientes com uma alegria e orgulho inusitado, fazendo previsões para aquele filho que sempre desejara e que seria o primeiro de uma descendência com os olhos no futuro:
-Já lhe bilhardei que a minha Maria tá de menino?
A gestação correu sem percalços, e da barriga empinada as experientes parteiras aventavam mais a hipótese de uma menina que um menino, o que não desanimava Aureliano:
-Tem de ser um buzico, que é pra ficar o comandante herdeiro deste império!

Nesse dia as dores eram mais que muitas, e as contracções iam e vinham como se apertos lancinantes lhe esmagassem a barriga. Parece que era a hora! Toalhas limpas, água aquecida, uma cama confortável, e a parteira a chegar da Serra D’Água…
Força, força, força! Sangue, suor, lágrimas e gritos….e lá saiu uma bela criança, roliça e viçosa, mas….sem apêndice macholas! Quando deram a notícia a Aureliano, que esperava cá fora com uma garrafa de Madeira velho e bolo de mel, a sua reacção foi de esbugalhado espanto, mas  depressa se enterneceu num sorriso comovente quando a colheu nos braços.
Os dias passavam e cada vez gostava mais da sua princesinha, que crescia a olhos vistos, só e apenas com o leite materno. Como se aquelas tetas tivessem sido construídas para central energética desde sempre!

Aureliano não desistia, claro, da ideia do menino. Tinham-lhe dito que se fosse numa lua cheia com o grasnar de um pato na altura do clímax, a obra estava encomendada! 
Depressa se deu dia de lua cheia, e Aureliano contratou o Pelicas da barbearia para que este se pusesse à janela nessa noite, a apertar o pato do lago municipal de 15 em 15 minutos. Assim foi que em pleno acto, enquanto Aureliano cumpria a sua missão de espadachim introdutor, de quarto em quarto de hora se ouvia o roaz do bicho emprestado ao lago do município. No final, caiu refastelado de barriga para cima, enquanto a mulher confirmava ainda em fase de calores ruborais, se aquele pato tinha sido contratado para a cronometragem da coisa…

Parece que a técnica tinha dado resultado, porque Maria das Neves estava novamente de esperanças. Aí o júbilo foi redobrado, porque a técnica aplicada tinha tido sucesso, e até o Pelicas andava todo inchado sentindo-se de certa forma parte integrante daquela concepção.

No dia previsto, lá mandaram vir a parteira da cidade, não fosse haver algum azar maior e: 
Força, força, força. Sangue, suor, lágrimas e gritos e…..mais uma menina!!!
Desta vez não esmoreceu e deu-lhe o nome de Candelária, em homenagem a uma turista alemã que havia conhecido fortuitamente numa das incursões à cidade...

Como não havia duas sem três, achou que à terceira era de vez! Comprou uma revista especializada em concepção e fecundação holística, tendo encontrado no capítulo quarto um artigo com o título “How to conceive boys with success!” Na linha 23 descrevia que no momento do ocaso matrimonial, o macho deveria coadunar as palmas em ritmo de tercina com três urras à rainha Vitória da Capadócia. Aureliano achou um pouco estranho, mas tal era o desejo de ter um varão que estava disposto a tudo.
Nessa noite introduziu-se sorrateiramente na cama enquanto Maria das Neves já aquecia os lençóis, começando o ritual de ignição a que a respectiva não se furtou. Enquanto cavalgava garbosamente, Aureliano sentiu também uns calores como quem já está próximo de atingir o expoente máximo. Em refulgente êxtase e de olhos revirados, começou de súbito a bater palminhas em tercina e urrou orgulhoso três vivas à rainha Vitória da Capadócia!
Teve como resposta imediata de Maria das Neves um colérico:
-Quem era essa tal rameira da capadócia!!!?
Mesmo assim a semente germinou e outra vez nove meses depois: Força, força, força! Sangue, suor, lágrimas e gritos e….mais uma! Desta feita Mariana...

Aureliano não desistia e achou que a conjugação de Marte com Saturno, junto com a primeira chuva de setembro resolveria o caso, mas nem o dilúvio que se abateu sobre Machico conseguiu dar força à criação do rapaz, somando então 4 raparigas roliças e bem mantidas.
Força,força, força! Sangue, suor, lágrimas e gritos e….uma Guilhermina!

-Não desanimes compadre! Vais ver que à quinta é que é…
-Nã sei homem…isto parece que se tem de fazer umas rezas…

Lembrou-se que se calhar era melhor uma estocada plena de ânimo, do que uma insistência que pudesse fraquejar o zig zag dos seus soldadinhos. Naquele mês poupou-se dos prazeres da carne, enquanto sentia os seus reservatórios encherem-se dia após dia. No fim já andava de pernas arqueadas, pois o volume lhe molestava os movimentos mais rápidos.
Nessa noite pensou que ia rebentar e Maria das Neves também, mas pelo menos foi eficaz! Era desta!
Mais nove meses de espera e uma barriga cada vez mais proeminente, quando rebentaram as águas de Maria das Neves. A outra parteira que tinha vindo no horário do Funchal só para garantir um bom parto, e que se preparava para acolher o dito rebento, acolheu não um menino, mas sim duas meninas de uma vez só!!! Gravidez gemelar! Que raio de pontaria…

Já somava 7 meninas na sua prole e de tudo tinha feito para cumprir o sonho de ter um varão que comandasse todo o império de loiças e afins.
Mesmo assim não baixou os braços e foi falar com o Pároco Rufino. Pensou que apesar deste não saber nada das coisas do amor, talvez pudesse interceder junto de Deus para que lhe cedesse a graça. Afinal de contas era um bom cristão e frequentador das missas de domingo.
-Diga-me senhor Pároco, apesar de eu saber que o senhor não sabe do que estou a falar fisicamente, como posso ter esta bênção…?
-Olha meu filho, Deus dealba nas linhas do ignómito falciparum tudo o que se revela com a destreza celestial da profícua descendência geracional. Esse desiderato, é concedido por aqueles que ornamentam palacianamente a casa do Senhor, com peças áureas ou partilhas pecuniárias de soberba jactância singular.
Abriu ligeiramente a boca de espanto e respondeu a tão enigmático comentário:
-Mas, mas….é pra ir prá frente ou é para me ir embora…?
-Não meu filho, creio que com uma boa esmola à igreja isso se resolve…

Ficou a pensar nisso e pareceu-lhe que o pároco tinha razão. Talvez Deus estivesse a fazer troça dele e só lhe mandasse filhas. Sabe-se que Deus é caprichoso com as mulheres, e quem sabe tinha uma taxa alfandegária para pôr rapazes cá na terra!
Adormeceu com este pensamento e a meio da noite acordou em sobressalto: levantou-se e fez um desenho daquilo que pretendia. 
De manhã nem tomou o pequeno almoço e correu para a joalharia Esmeralda, com o desenho que tinha feito quase em sonambulismo: um pirilau de ouro, ancorado em dois tomatinhos de prata cravejados a brilhantes!
O joalheiro achou o pedido estranho e pensou para ele que havia brinquedos mais baratos, mas como a encomenda era bem paga, não se ralou.

Uma semana depois, já estava tudo finalizado e a obra podia ser levantada.
Aureliano nem a desembrulhou, meteu-a debaixo do braço pois já a tinha pago-para não haver derrapagem no orçamento-e correu direcção à igreja de encontro ao pároco:
-Aqui tem senhor padre. A minha contribuição para a igreja…
O padre tomou-a nos braços e descascou-lhe o papel…
Apareceu então um marsápio todo em ouro maciço, não em posição de flacidez económica, mas apontando ao céu como já dizia a leitura de São Jorge aos Coríntios de Efésius. A base era constituída por dois tomatinhos de prata túrgida que assentavam numa sólida placa de bronze, com o inscrito “Para uma dádiva de força”.
O padre gaguejou enquanto a sua face se ruborizava:
-Nunca tivemos uma peça tão…tão…tão…rica nesta paróquia…

Aureliano estava duplamente inchado de contente, pois a obra de arte foi acolhida na missa de domingo, exposta durante todo o cerimonial em cima da mesa do altar, sendo cobiçada e atraindo o olhar fixo das beatas de todo o Machico.
Uma vez finda a missa, Aureliano sentia-se confiante e crente de que desta vez iria resultar e todas as rezas que culminaram com tão singular ofertório dariam o fruto mesmo desejado e procurado.
Nessa noite sentia-se feliz e vigoroso, pelo que Maria das Neves ao fim de duas horas o colocou fora do quarto pois precisava de descanso…
Com a primeira falha do ciclo e com o aumento da barriga de novo, Aureliano estava convencido que era desta! 

Nove meses novamente, Força, Força, Força! Sangue, suor, lágrimas e gritos e…..BUM! Finalmente um rapazolas, ainda por cima bem apetrechado!!!
Aureliano, não cabia em si de contente correndo pelas ruas aos gritos:
-É varao!É varao!É varão!!!

Com esta remessa de Deus, Aureliano decidiu que tinha de fazer uma festa e encomendou a fanfarra de Câmara de Lobos, uma espetada monumental, dez pipos de vinho, uma procissão com sete andores, e engalanou Machico com bandeiras de 3 em 3 metros por todas as ruas e ruelas. Nunca se tinha visto tanta bandeira por metro quadrado! Tantas e tantas bandeiras eram, que ainda hoje Aurelianinho é conhecido como o “Aurelianinho das Bandeiras”….!
O povo rezou, cantou, bebeu e comeu durante três folgados dias, rejubilando-se com a vinda do descendente tão ansiosamente aguardado.
Aureliano era um homem feliz e realizado!
A prova de que quem insiste e não desiste, colhe os frutos do amor…

Um abraço..





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