quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O Avô Francisco


As notícias ouviam-se sempre na BBC, num rádio castanho-escuro, onde o gato se costumava enroscar ao zoar das válvulas quando aqueciam. Emitia um som rouco, com um genérico instrumental e a voz conhecida do locutor, descrevendo o que tinha acontecido nessa semana na guerra. Os alemães continuavam a ganhar terreno e o seu desejo expansionista ainda não era contrariado pelos Aliados, por quem todos torciam nesta zona.

Apesar de tudo, naquela vila perdida no meio do Atlântico, sobrevivia-se às consequências da guerra e a todas as contingências que ela acarretava. Os bens essenciais importados da metrópole, não chegavam sequer para abastecer meio mês de carregamentos do cargueiro “Rovuma”. 

Aproximava-se a época do Natal, e nesta altura a Ribeira Brava engalanava-se com arcos de verdura pelas ruas da baixa, fitas coloridas enroladas nos postes e largos panos brancos com a cruz de Cristo encimada. Pequenas luzes cintilavam durante a noite, distribuídas apenas pelas árvores do átrio da igreja e da rua principal, uma vez que o conflito obrigava a restrições de toda a ordem.

A casa do avô Francisco ficava num dos topos do vale desfrutando de uma vista desafogada da vila que ainda se localiza à beira mar, na desembocadura de uma ribeira que no inverno ganha a fúria da torrente da Serra D’Água. Era proprietário de uma fábrica de pirotecnia, e naquela época o trabalho era muito intenso, uma vez que os festejos de Natal e o Fim do ano aumentavam a procura de barris, estralinhos, ratinhos, vulcões de lava, bombas de garrafa, bengalas douradas e outro material de maior calibre para o fogo a sério. O fabrico artesanal era ainda o habitual, sendo a mescla de explosivos doseada com pesos e medidas muito rigorosas. Apesar desta indústria herdada do seu pai, o avô Francisco trabalhava na alfândega da Ribeira Brava, mandando e desmandando tudo aquilo que era encomenda e produto importado via marítima.

A guerra que grassava na Europa e à qual Portugal estava apartado por um Salazar paternalista, trouxe muitas carências e necessidades, a uma vila afastada de uma capital e duma ilha já de si longe de tudo e mais alguma coisa. Ainda para mais naquela época natalícia, em que o consumo aumentava e as pessoas gostavam de trocar prendas e preparar as iguarias típicas com os melhores ingredientes.

O Natal perspectivava-se magro, apenas com uns bolos de mel e umas broas extra, mais uma ou outra lembrança virada para as crianças. Em casa do avô Francisco, a época era vivida com intensidade e muita preparação, estando inclusive um quarto da casa reservado à construção da lapinha, com a gruta de Belém no centro e uma extensa construção em papel pardo escurecido a imitar a rocha, por onde se espalhavam as figuras dos pastores, as casinhas de cartão mais pequenas no cimo, a aldeia com a igreja e o largo, o riacho em algodão, as prateleiras com as searinhas crescidas do trigo plantado há uma semana. Toda a gente vinha apreciar aquela obra de arte na casa do Sr.Araújo.


A avó Felicidade era funcionária dos Correios Postais da Ribeira Brava, e todos os dias recebia notícias por telegrama, com anunciadas desgraças impostas pelo ameaçador império nazi. Expedita em comunicação morse, muitas mensagens encriptadas enviou, sabe-se lá a quem e com que motivo… O traço, ponto e traço saía-lhe no automático, e recebia os mesmos intervalos, que reescrevia num papel timbrado em letras, pontos e vírgulas. 

Neste entretanto, o império alemão continuava a conquista continental e a sua Armada navegava no Atlântico com um poderoso dispositivo bélico. Os famosos submarinos U-Boolt serviam a Marinha Alemã, na altura designada de Kriegsmarine. Afundavam navios Aliados carregados de munições e abastecimentos, através de um eficaz sistema de submersão e poderosos torpedos lançados da profundidade. Embora não lhes estivesse autorizada a navegação em águas territoriais portuguesas, muitas vezes as atravessavam e nela navegavam sem pudor, pois a Marinha Portuguesa não tinha a tecnologia suficiente ou sequer os meios de os detectar.

Naquela antevéspera do dia de Natal, o avô Francisco saiu a meio da noite disposto a trabalhar para um Natal diferente. Vestiu-se com o uniforme de trabalho, e pé-ante-pé saiu pela porta de casa fechando-a sem o mínimo barulho. Desceu até a vila, e no cais esperavam-no dois homens num bote, com várias caixas de verdura, fruta e meia dúzia de garrafas de vinho Madeira. O mar estava chão, e foi fácil aos dois embarcadeiros afastarem-se noite dentro e mar fora. Já só viam a silhueta assustadora da ilha, quando o avô Francisco conferiu o rumo e fez três sinais de luzes com uma potente lanterna, ao meio do oceano. Tiveram três outros toques luminosos de resposta, ao mesmo tempo que puderam ver à luz do luar, emergir do fundo oceano um imponente submarino alemão, que para seus espantos apenas criou uma pequena ondulação que oscilou o bote. A escotilha abriu-se num escorrer de água, e de lá um graduado aflorou com uma bandeira branca em sinal de paz. Com ele trazia umas caixas, que não eram de fruta ou verdura..O avô Francisco sorriu, e num alemão muito básico cumprimentou o oficial alemão, ao mesmo tempo que se colocavam a bombordo para amarar. A troca de caixotes foi muito rápida, e tão depressa o submarino submergiu no negro das águas assim como tinha emergido, começando os homens a remar felizes rumo a terra.
Ao chegarem a bom porto, ainda de noite, certificaram-se que ninguém estaria espiando e dividiram os conteúdos dos caixotes pelos três. 

O avô Francisco subiu contente a estrada, e antes de entrar em casa descalçou os sapatos, abrindo a porta da sala com o menor ruído possível. Pousou a caixa em cima da mesa e abriu-a com os olhos cintilantes. De lá tirou um sortido de chocolates, amêndoas, patés de beluga, duas garrafas de champanhe austríaco, e um carrinho de bombeiros em miniatura. Apesar de ser pelos Aliados na guerra, aquele negócio de troca com os nazis não o chocava e achava que seria uma permuta justa: bens frescos aos alemães, que retribuiriam com doces e iguarias que de outra forma não encontrariam na ilha naquela época. 

Nessa manhã, acordaram e foram dar com esta inesperada prenda de Natal junto ao presépio! Um cantinho de aconchego num mundo em guerra, onde por um momento se esqueceram das privações e celebraram o simbolismo do Natal!


Boas Festas a todos e muita Saúde! 

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Valente Valentim

Naquela época, todas as dificuldades sabiam a vitórias ultrapassadas, como se no mundo real tudo de mau se esquecesse. Aquela criança não tinha sido programada, nem desejada, nem sequer conscientemente planeada sob a forma razoável de um futuro organizado. Aconteceu porque eram casados e assim tinha de ser, como tinha sido com os seus pais, avós, bisavós e por aí a fora.

Já antes de nascer se mexia e remexia na barriga da mãe. 
Esta criança vai ser um furacão quando sair! Com esta genica logo tão de jovem, isto promete!
Desde bébé que tinha uma energia física muito expressiva e fluente, como quem fala através do movimento. 

Revelava um controlo do corpo como ninguém, aliado a uma sensibilidade para o belo e artístico, que naquela época e naquele Portugal atrasado só poderia ser  visto como excentricidade.
Gostava de rodopiar e sentir o ar fresco na cara, de parafrasear no corpo aquilo que sentia quando ouvia música, de espalhar a sua alma no físico do espaço.
-Sinto uma alegria tão grande quando danço mãe!

À revelia dos pais, tinha aulas de ballet num dos estúdios do Teatro Nacional D.Maria, dadas por um professor anti-regime, que via naquele rapaz uma lufada de sangue inspirador. Deu-lhe técnica, disciplina, espaço criativo e sobretudo deu-lhe a vontade de querer lutar por algo que queria conquistar.

A decisão não foi fácil, mas com 16 anos tinha de escapar de um mundo que o sufocava e lhe tolhia os braços do livre pensamento. Queria ser bailarino, mas a sua homosexualidade não era aceite num Portugal de atrasados e de estreita visão, pelo que fugiu deixando em casa uma carta de desabafo e memórias. 

A Espanha de Franco também não seria mais aberta, e nesse trilho trabalhou em bares, danceterias, cabarets e afins, custeando a sua própria sobrevivência. Esse caminho que procurava sem rumo aparente, mas decididamente pela arte da dança. 
Estalava a sangrenta guerra civil espanhola, e foi preso pela polícia política. Uma rocambolesca fuga e um esconderijo num convento, onde se travestiu de freira, permitiu livrar-se de uma Espanha que entretanto caminharia para um abismo fascista e totalitário. 

Chegaria finalmente à Europa moderna, a Europa que dava cartas naquela época, e que era um exemplo de prosperidade e pensamento livre como ele. Sem saber bem como, desembarcou na Alemanha nazi, onde teve logo emprego no teatro Ópera de Estugarda, entrando nas melhores peças com destaque de solista. Muito ligado ao regime, depressa se tornou uma figura de relevo percorrendo o país em tournés de sucesso, e tendo inclusivé sido condecorado pelo próprio Führer com a medalha de Mérito artístico. Convivia com as altas esferas da elite cultural e estatal, privando por várias vezes com Marlene Dietrich em luxuosas festas dadas em faustosos palácios, amiúde frequentadas por Hitler. Todo um sonho realizado, toda uma vida que saltava agora para os palcos, todo o fulgor das palmas e dos aplausos que lhe reconheciam a arte da dança.

Tudo corria bem e por isso não se sabe porque voltou. Talvez porque fugisse novamente de um conflito..
Quando aterrou nessa Lisboa pacata que detinha a neutralidade da guerra, chegou com todo o glamour e toda a vontade de exuberar o mundo artístico de uma sociedade que gostaria fosse de plumas, lantejoulas e vestidos garridos com personalidade e vida própria.

Naquela altura, a PIDE não perdoava, e depressa os vizinhos se encarregaram de delatar o lindo bailarino da Alemanha que tinha vindo contaminar a tradição conservadora de um país disciplinado e imperial. Prenderam-no, abusaram, torturaram-no só porque não eram capazes de entrar na sua cabeça e assim perceberem que uma mente brilhante não precisa ficar refém do seu corpo, das fronteiras dos outros e muito menos da estreiteza da visão humanista. O que constava da sua ficha de arresto era um motivo único:”homosexualidade”..

Foi internado no Hospital Miguel Bombarda em 1939, e só 40 anos mais tarde viria de lá sair. Os Psiquiatras apodaram-no com vários epítetos diagnósticos, mas nenhum se afigurava como um rótulo digno para tão exuberante personagem.
Certo dia, um médico  perguntou-lhe o que desejava para o futuro.
Respondeu simplesmente que gostaria de nascer de novo em duzentos anos, não sentir uma redoma de vidro permanente, não sentir a prisão do seu pensamento. Ser ele próprio, sem disfarces.

Passou pela cela do isolamento, pela ala dos violentos, pela enfermaria dos esquizofrénicos, e até lhe fizeram uma lobotomia pré-frontal, tão em voga naqueles tempos. Achavam que tirando um pouco do cérebro lhe roubariam a alma.
Um espírito com asas tinha sido manietado da sua própria identidade, do seu próprio eu, aprisionado por uma barreira de uma sociedade arcaica no pensamento e na liberdade.

Vestia-se todos os dias como se fosse debutar, e já se tinha acostumado à vida do hospício. A rotina diária tornava-se fácil, se cumprisse todas as ordens e se não rejeitasse a medicação dada pelos dedicados enfermeiros, alcançando o seu objectivo de não ser muito importunado. Acabou por fazer daquela a sua casa.

Pelos seus dotes de costura e conhecimentos cenográficos, foi mais tarde responsável pelas peças de teatro, das festas de natal, dos saraus e de tudo o que tinha a ver com a própria actividade lúdica da instituição. Fazia os figurinos, ensaiava os malucos, construía os cenários, dava os ensaios, sendo nisso que dedicou grande parte da sua reclusão. 
Dentro de muros, guardou os seus rasgos de genialidade em troca da sobrevivência num local onde pelo menos conseguia ter o seu espaço. Uma vida num cordão de segurança, que o escondia da vergonha de uma sociedade incapaz de gerir as suas próprias pessoas.

Passou mais de uma vida inteira sonegado a uma instituição mental sem nunca perceber o porquê. Sem nunca ter tido oportunidade de se afirmar como era, como se sentia, como desejava, como queria viver a vida. Nunca teve a visita de um familiar, de um amigo, de alguém que pudesse estar ali com ele e testemunhar que também ele era gente. E que não estava errado. Que nunca tinha estado errado.

A 3 de fevereiro de 1986 teve alta com o resultado melhorado
A 3 de fevereiro foi declarado o óbito e foi a enterrar no cemitério de Benfica.

Ainda hoje lhe devemos uma explicação.
Ainda hoje não lhe pedimos desculpa…


In memorium de Valentim de Barros

domingo, 14 de abril de 2019

O Bandeiras


Naquele princípio de século, Machico era uma pacata vila onde viviam apenas 5000 habitantes distribuídos pelo centro e serranias próximas. Aureliano era o comerciante local que assegurava todo o material de cozinha, limpeza, bric-à-brac, utensílios para a agricultura, e até uma pequena farmácia funcionava como retrosaria de largo espectro, onde no fundo tudo se encontrava. Desde o alfinete até aos sacos de cimento.
Semanalmente e por via terrestre, trazia o abastecimento do porto do Funchal, sítio onde descarregavam os verdadeiros cargueiros cheios de material oriundo da longínqua metrópole.
Tinha herdado aquela loja do pai, mas foi por sua iniciativa que desenvolveu esta capacidade de oferecer todo o leque de material que vendia.

Aureliano tinha casado há pouco tempo com Maria das Neves Spínola, numa cerimónia que reuniu as maiores figuras da vila, desde o governador ao padre, o chefe de polícia e a parteira local. Vivia bem, e sem preocupações, com o sonho de constituir prole e construir uma unidade transgeracional que seguisse uma lógica de família tradicional, e ao mesmo tempo empreendedora. 
Ficaram muito felizes quando Maria das Neves soube estar de esperanças! Ele de peito inchado, atendia os clientes com uma alegria e orgulho inusitado, fazendo previsões para aquele filho que sempre desejara e que seria o primeiro de uma descendência com os olhos no futuro:
-Já lhe bilhardei que a minha Maria tá de menino?
A gestação correu sem percalços, e da barriga empinada as experientes parteiras aventavam mais a hipótese de uma menina que um menino, o que não desanimava Aureliano:
-Tem de ser um buzico, que é pra ficar o comandante herdeiro deste império!

Nesse dia as dores eram mais que muitas, e as contracções iam e vinham como se apertos lancinantes lhe esmagassem a barriga. Parece que era a hora! Toalhas limpas, água aquecida, uma cama confortável, e a parteira a chegar da Serra D’Água…
Força, força, força! Sangue, suor, lágrimas e gritos….e lá saiu uma bela criança, roliça e viçosa, mas….sem apêndice macholas! Quando deram a notícia a Aureliano, que esperava cá fora com uma garrafa de Madeira velho e bolo de mel, a sua reacção foi de esbugalhado espanto, mas  depressa se enterneceu num sorriso comovente quando a colheu nos braços.
Os dias passavam e cada vez gostava mais da sua princesinha, que crescia a olhos vistos, só e apenas com o leite materno. Como se aquelas tetas tivessem sido construídas para central energética desde sempre!

Aureliano não desistia, claro, da ideia do menino. Tinham-lhe dito que se fosse numa lua cheia com o grasnar de um pato na altura do clímax, a obra estava encomendada! 
Depressa se deu dia de lua cheia, e Aureliano contratou o Pelicas da barbearia para que este se pusesse à janela nessa noite, a apertar o pato do lago municipal de 15 em 15 minutos. Assim foi que em pleno acto, enquanto Aureliano cumpria a sua missão de espadachim introdutor, de quarto em quarto de hora se ouvia o roaz do bicho emprestado ao lago do município. No final, caiu refastelado de barriga para cima, enquanto a mulher confirmava ainda em fase de calores ruborais, se aquele pato tinha sido contratado para a cronometragem da coisa…

Parece que a técnica tinha dado resultado, porque Maria das Neves estava novamente de esperanças. Aí o júbilo foi redobrado, porque a técnica aplicada tinha tido sucesso, e até o Pelicas andava todo inchado sentindo-se de certa forma parte integrante daquela concepção.

No dia previsto, lá mandaram vir a parteira da cidade, não fosse haver algum azar maior e: 
Força, força, força. Sangue, suor, lágrimas e gritos e…..mais uma menina!!!
Desta vez não esmoreceu e deu-lhe o nome de Candelária, em homenagem a uma turista alemã que havia conhecido fortuitamente numa das incursões à cidade...

Como não havia duas sem três, achou que à terceira era de vez! Comprou uma revista especializada em concepção e fecundação holística, tendo encontrado no capítulo quarto um artigo com o título “How to conceive boys with success!” Na linha 23 descrevia que no momento do ocaso matrimonial, o macho deveria coadunar as palmas em ritmo de tercina com três urras à rainha Vitória da Capadócia. Aureliano achou um pouco estranho, mas tal era o desejo de ter um varão que estava disposto a tudo.
Nessa noite introduziu-se sorrateiramente na cama enquanto Maria das Neves já aquecia os lençóis, começando o ritual de ignição a que a respectiva não se furtou. Enquanto cavalgava garbosamente, Aureliano sentiu também uns calores como quem já está próximo de atingir o expoente máximo. Em refulgente êxtase e de olhos revirados, começou de súbito a bater palminhas em tercina e urrou orgulhoso três vivas à rainha Vitória da Capadócia!
Teve como resposta imediata de Maria das Neves um colérico:
-Quem era essa tal rameira da capadócia!!!?
Mesmo assim a semente germinou e outra vez nove meses depois: Força, força, força! Sangue, suor, lágrimas e gritos e….mais uma! Desta feita Mariana...

Aureliano não desistia e achou que a conjugação de Marte com Saturno, junto com a primeira chuva de setembro resolveria o caso, mas nem o dilúvio que se abateu sobre Machico conseguiu dar força à criação do rapaz, somando então 4 raparigas roliças e bem mantidas.
Força,força, força! Sangue, suor, lágrimas e gritos e….uma Guilhermina!

-Não desanimes compadre! Vais ver que à quinta é que é…
-Nã sei homem…isto parece que se tem de fazer umas rezas…

Lembrou-se que se calhar era melhor uma estocada plena de ânimo, do que uma insistência que pudesse fraquejar o zig zag dos seus soldadinhos. Naquele mês poupou-se dos prazeres da carne, enquanto sentia os seus reservatórios encherem-se dia após dia. No fim já andava de pernas arqueadas, pois o volume lhe molestava os movimentos mais rápidos.
Nessa noite pensou que ia rebentar e Maria das Neves também, mas pelo menos foi eficaz! Era desta!
Mais nove meses de espera e uma barriga cada vez mais proeminente, quando rebentaram as águas de Maria das Neves. A outra parteira que tinha vindo no horário do Funchal só para garantir um bom parto, e que se preparava para acolher o dito rebento, acolheu não um menino, mas sim duas meninas de uma vez só!!! Gravidez gemelar! Que raio de pontaria…

Já somava 7 meninas na sua prole e de tudo tinha feito para cumprir o sonho de ter um varão que comandasse todo o império de loiças e afins.
Mesmo assim não baixou os braços e foi falar com o Pároco Rufino. Pensou que apesar deste não saber nada das coisas do amor, talvez pudesse interceder junto de Deus para que lhe cedesse a graça. Afinal de contas era um bom cristão e frequentador das missas de domingo.
-Diga-me senhor Pároco, apesar de eu saber que o senhor não sabe do que estou a falar fisicamente, como posso ter esta bênção…?
-Olha meu filho, Deus dealba nas linhas do ignómito falciparum tudo o que se revela com a destreza celestial da profícua descendência geracional. Esse desiderato, é concedido por aqueles que ornamentam palacianamente a casa do Senhor, com peças áureas ou partilhas pecuniárias de soberba jactância singular.
Abriu ligeiramente a boca de espanto e respondeu a tão enigmático comentário:
-Mas, mas….é pra ir prá frente ou é para me ir embora…?
-Não meu filho, creio que com uma boa esmola à igreja isso se resolve…

Ficou a pensar nisso e pareceu-lhe que o pároco tinha razão. Talvez Deus estivesse a fazer troça dele e só lhe mandasse filhas. Sabe-se que Deus é caprichoso com as mulheres, e quem sabe tinha uma taxa alfandegária para pôr rapazes cá na terra!
Adormeceu com este pensamento e a meio da noite acordou em sobressalto: levantou-se e fez um desenho daquilo que pretendia. 
De manhã nem tomou o pequeno almoço e correu para a joalharia Esmeralda, com o desenho que tinha feito quase em sonambulismo: um pirilau de ouro, ancorado em dois tomatinhos de prata cravejados a brilhantes!
O joalheiro achou o pedido estranho e pensou para ele que havia brinquedos mais baratos, mas como a encomenda era bem paga, não se ralou.

Uma semana depois, já estava tudo finalizado e a obra podia ser levantada.
Aureliano nem a desembrulhou, meteu-a debaixo do braço pois já a tinha pago-para não haver derrapagem no orçamento-e correu direcção à igreja de encontro ao pároco:
-Aqui tem senhor padre. A minha contribuição para a igreja…
O padre tomou-a nos braços e descascou-lhe o papel…
Apareceu então um marsápio todo em ouro maciço, não em posição de flacidez económica, mas apontando ao céu como já dizia a leitura de São Jorge aos Coríntios de Efésius. A base era constituída por dois tomatinhos de prata túrgida que assentavam numa sólida placa de bronze, com o inscrito “Para uma dádiva de força”.
O padre gaguejou enquanto a sua face se ruborizava:
-Nunca tivemos uma peça tão…tão…tão…rica nesta paróquia…

Aureliano estava duplamente inchado de contente, pois a obra de arte foi acolhida na missa de domingo, exposta durante todo o cerimonial em cima da mesa do altar, sendo cobiçada e atraindo o olhar fixo das beatas de todo o Machico.
Uma vez finda a missa, Aureliano sentia-se confiante e crente de que desta vez iria resultar e todas as rezas que culminaram com tão singular ofertório dariam o fruto mesmo desejado e procurado.
Nessa noite sentia-se feliz e vigoroso, pelo que Maria das Neves ao fim de duas horas o colocou fora do quarto pois precisava de descanso…
Com a primeira falha do ciclo e com o aumento da barriga de novo, Aureliano estava convencido que era desta! 

Nove meses novamente, Força, Força, Força! Sangue, suor, lágrimas e gritos e…..BUM! Finalmente um rapazolas, ainda por cima bem apetrechado!!!
Aureliano, não cabia em si de contente correndo pelas ruas aos gritos:
-É varao!É varao!É varão!!!

Com esta remessa de Deus, Aureliano decidiu que tinha de fazer uma festa e encomendou a fanfarra de Câmara de Lobos, uma espetada monumental, dez pipos de vinho, uma procissão com sete andores, e engalanou Machico com bandeiras de 3 em 3 metros por todas as ruas e ruelas. Nunca se tinha visto tanta bandeira por metro quadrado! Tantas e tantas bandeiras eram, que ainda hoje Aurelianinho é conhecido como o “Aurelianinho das Bandeiras”….!
O povo rezou, cantou, bebeu e comeu durante três folgados dias, rejubilando-se com a vinda do descendente tão ansiosamente aguardado.
Aureliano era um homem feliz e realizado!
A prova de que quem insiste e não desiste, colhe os frutos do amor…

Um abraço..





quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

O Castaño

Funcionaba como un enclave dentro da cidade, un bastión do interior dunha Galicia que hai moito fora esquecida por unha España preocupada co que lle traía riqueza e notoriedade, como se a riqueza non se atopase nas súas xentes, nas súas diversidades, na súa alma. Vigo comezou a  ser un importante porto pesqueiro de Europa nos anos 80, pero ata alí era só unha pequena cidade de provincia con algo de cosmopolita. Un dos seus barrios típicos situábase entre a praia éo centro histórico, algo outsider da Gran Vía, pero só a un paso do seu frenesí. Era case como unha aldea gaulesa dos libros de Astérix, onde os aldeáns se tiñan fixado hai unha ou dúas xeracións. 

Varios personaxes aquí habitaban, como a portuguesa Dona Rosa, viúva moi cedo e con un mal feitio do demo, que puña o coñecido incha-beiços nas uvas que crecían na parreira da casa, descubrindo de inmediato que mozo se tinha aventurado a arrincar os acios pequenos e doces da uva americana. 

O bar do Castaño, tiña xogos de azar tipo ruleta, xeados de xeo corado, gomas elásticas rosa interminables, e servía vasos de viño barato a aqueles que alí moraban e os que estaban de paso para o barrio social da Salgueira. Había tamén o barzito da Ramona, que servía tapas e vasos de cidra, situado na pequena rúa principal. 
O marido traballaba nas obras e tiña dous fillos grandes e gordos, pero cun cerebro que non facía xustiza ao tamaño da superficie corporal. Cos resultados escolares que tiñan, rapidamente deixaron a escola e se entregaron a seguir os pasos do pai. 
A irmá máis vella, sufrira unha anoxia cerebral no peri parto que a deixou vesga, deficiente dun brazo, e por castigo divino ou herdanza xenética, menos afortunada aínda en relación á beleza física. Poldita era boa rapariga e moito trabalhadeira, pero os estudos nunca foron o seu forte, polo que axiña se converteu á lide da casa. 
Pero nestas cousas do amor non hai quen faga previsións que sexan sempre acertadas, e neste caso ata saíu a terminación a Poldita. 
O corentón de alcume Algarrobo tampouco era abonado de beleza, tiña unha barriga de cervexa e adiposidade acumulada, un coeficiente intelectual embebido en etanol, pero morría de amores por Poldita, aínda sendo el máis vello dez anos do que ela. 
Consumía de mañá, pola tarde e ao fin da tarde, pero de cando en cando se lembraba de como chegaba a casa, recordando só a imaxe do lampião de rúa que o viño transformaba en dous.

Ese día estaba empeñado en que ía pedídela en casamento, porque cumprirá xa os 42 anos de idade, xa traballaba e era capaz de soster unha familia. Ainda encima, o seu mellor amigo fuxira cunha colombiana vêr o por do sol debaixo dun coqueiro algures na praia de Fuentenilla en México. 

Entrou decidido pola mañá no bar, viu Poldita, encheu o peito de aire cun chorrilho de palabras, pero o que saíu foi unha dose dobre de Martini. Repetiu a receita ao xantar e durante toda a tarde, pero as palabras nesa hora xa non se articulaban, parecendo máis un discurso de Esperanto arrastrado, que unha declaración de compromiso. Ás seis da tarde o bar fechaba portas, polo que ás cinco para as seis, e vendo xa dúas saídas na súa mira, pechou un dos ollos e comezou a andar moi direitinho levantando as pernas para non tropezar. Tivo mala sorte porque non acertou na porta correcta esmurrando-se a el mesmo, e deu unha pirueta mesmo a tempo de caer amparado nos brazos de Poldita. Cando abriu os ollos, viu-se ao seu colo, sorriu, e de palpebras semicerradas suspirou: 
-Te quieres casar conmigo nena ..? 
Todos quedaron suspensos da resposta, pero cando dixo "si", unha inmensa alegría invadiu os comensais que ergueron os vasos e brindaron nun só amplo sorriso desdentado. Deste xeito só se estragaba unha familia ... 

Tiveron dous fillos xemelgos, lindos e perfectos, o que demostra que a natureza é de unha xenerosidade e xustiza a toda proba. Vivían de forma honesta, traballaban como podían, eo Algarrobo continuaba a servir de vasilhame diario ao viño servido na tasca da Ramona. Chegaba a casa todos os días embriagado, e metía-se debaixo dos sabas no maior silencio que podía, tentando en balde facer desaparecer aquela barriga con proporción de lontra. Poldita sentía o bafo a etanol e dáballe logo unha patada na canela que era a única zona non almofadada que podia aleijar. 

Nun deses días Algarrobo comprou unha cautela do El Gordo, deixouse a na entrada por debaixo dunha imaxe do San Roque a ver se daba sorte, e saíu á tasca. 
Á hora dos números andaren á roda xa a súa cabeza xiraba en sentido contrario pero á mesma velocidade do Albariño que tiña bebido. 
Quizais fose iso, ou do cocido galego que enfardara ao xantar, pero a pronunciada pança comezou a gorgolejar ea facer uns ruídos de mecánica entupidos. Tivo que ir a correr para a latrina, onde unha sinfonía de acordes guturais esvaziavam o home daquelas impurezas. Nin sequera asistiu á transmisión dos números en directo, onde todo o país puña a súas fantasías de gañar un sustento para a vida. 
-El doscientosveinticuatromilnovecientosuuuno
Aínda escoitou a radio de lonxe. Nisto, entra esbaforida Poldita coa cautela na man eo seu ollar vesgo tamén de alegría: 
Gañamos, Gañamos

Apuntaron todos cabisbaixos á latrina onde estaba Algarrobo sentado no trono, pantalóns polos nocellos, sorriso conxelado na cara e cianosado do ataque ás coronarias que se lle entupiram, tamaña era a conmoción. O 092 foi máis rápido que unha bala, e cando chegaron xa estaba o Toñito "Habichuela" facendo compresións no peito da vítima en parada, como vira naquel filme no cine Olimpia. Case morreu da parada, pero o que lle parara hai moito tempo fora o cerebro. 

Despois daquel susto decidiu que era un home novo e coa carteira rechea, comprou sete traxes brancos con zapatos cor marfil a condizer, unha parabólica, un asador que veu de Arxentina, e un piano de parede porque quedaba ben na sala. 
Cambiou o seu pensamento, e xunto con Poldita insistiu en manter a memoria do pasado, asumindo en parella que debían compartir cos outros o que a propia comunidade lles dera. Compraron unha radio á D.Rosa, ofreceron un parque infantil á comunidade, doaron a bancada do Castaño Fútbol Club, e foron nomeados os festeiros da romaría de agosto. 
A vida cambiou e cambiou para sempre. 

Aquel enclave galego daba unha lección ao mundo, unha lección de reparto e de recoñecemento de que somos unha súmula de aquilo que vivimos e con quen convivimos!

Aupa Castaño !!