quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Eutanásia



Tudo tem um princípio, um meio e um fim. Sabemos como começa, e até podemos prever quando começa, mas nunca como, e quando acaba. É assim a vida...


E a quem podemos atribuir a gestão dessa vida? Ao próprio, aos outros? Será que o próprio tem e deve ter o controlo total da sua vida? Será que não cabe à sociedade, regular algumas componentes determinantes dessa mesma vida? De facto já o faz no seu dia-a-dia, mas não estamos a falar de questões mundanas ou de quotidiano que balizam o nosso traçado.


Enquanto estamos activos e independentes nas actividades, no escrever do próprio destino, temos legitimidade e liberdade para estabelecer as nossas fronteiras, os nossos abusos e excessos. Podemos até ter atitudes que no extremo destroem a vida, mas conscientes e livres dessa mesma acção.


A questão pertinente coloca-se nos momentos em que já não conseguimos controlar a navegação do nosso rumo. Nos momentos em que a doença nos tolhe os movimentos, em que o nosso cérebro se apagou irreversivelmente deixando apenas o piloto automático de alguns órgãos vitais, em que as máquinas nos sustentam esses mesmos órgãos que cessaram função.


Nesta sociedade de hoje, em que somos todos jovens, bonitos e eternos para todo o sempre, é difícil aceitar qualquer rasgo de fim de linha. Como se os comboios fossem alimentados por carvão de queima infinita, e se o tempo parasse um dia numa qualquer estação sem apeadeiro, como no faroeste.


Não há lugar ao términos, ao fim, ao simples acabou-se a que os velhos já se vão habituando. Tudo tem de ser salvo, todos os animais aliviados da forca, e até o sofrimento das couves evitado. Esta é a mensagem subliminar que nos vendem a toda a hora e em todos os canais!


Daí a discussão cíclica de um tema forte e controverso como a eutanásia. Será que é um direito? Será que é uma opção? Será que contrapõe assim tanto os valores humanos? Não vou discorrer sobre a terminologia associada à palavra, mas apenas delapidar à visão da teoria do fole, um diamante que está em bruto em muitas fortalezas mentais.


Assumo-me liberal, e como tal, creio que as liberdades individuais podem e devem ser respeitadas ao máximo. Fazer o que se quer, como se quer e quando se quer, desde que isso não implique lesão de terceiros, pode ser legítimo. Mas assumir um ato disruptor para com o próprio em plena posse das suas faculdades mentais, é algo que não encaixa completamente na minha visão. Por duas razões simples: pela valorização fortíssima que tenho da vida humana, e pela minha condição de médico.


Talvez não conceba de forma clara, como é que existem países em que os médicos fazem eutanásia assistida, programada e voluntária, a doentes elegíveis por critérios definidos. Este papel dúbio de médico-salvador que recupera vidas (literalmente do além) num determinado momento, e que no minuto seguinte assiste um fim de vida programado, é algo no mínimo bipolar. É certo que perante um doente terminal e grave, muitas vezes assumimos interpares o não escalonamento terapêutico, a não realização de manobras invasivas, o desinvestimento pleno, que sabemos terá as consequências de um desfecho fatal. Mas felizmente são casos pontuais em que a partilha de informação e capacidade de decisão com a família é determinante na decisão final. Segundo as recomendações do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, estas atitudes são correctas e devem ser tomadas num consenso o mais amplo possível.


O sofrimento de alguém que tem uma doença incurável e terminal é tremendo, e acredito que o próprio tenha pensamentos de autodestruição, mas isso não legitima a vontade de que lho façam. Mesmo que chegado a um ponto de não retorno, mesmo que saibamos quando a vela se apagará, não me sinto confortável em accionar activamente algo que vai influenciar o tempo do desfecho.


Para mitigar o sofrimento do próprio e dos familiares, dirão alguns? Minorá-lo com certeza, e de todas as formas possíveis, especialmente com a valiosa e fundamental intervenção dos Cuidados Paliativos, mas não ceder à tentação de o desligar só porque nos incomoda e impressiona. Se este é o factor primordial, então devemos criar condições e o terreno estrutural para que haja acesso universal a esses mesmos Cuidados Paliativos.


Estou também em perfeito desacordo quando se diz que perdemos a dignidade com o fim de linha de uma qualquer doença. A dignidade cria-se através de um historial de vida e de conceitos criados, que não podem ser distorcionados por uma incapacidade terminal de se relacionar ou interagir. Talvez concorde que a dignidade mude de forma nestes casos, mas aquela pessoa mantém a sua dignidade intocável.


Nos doentes terminais há quem veja um fardo e um ónus de trabalho, mas sabemos de antemão que é destas lutas que nascem as resistências e as resiliências das nossas vidas. Quer para o doente, quer para os que o rodeiam, servindo muitas vezes como exemplo de luta e perseverança. Estupidamente, a perda terá de se transformar em algo superado e combatido. Assim aprenderemos que na vida não carregamos no interruptor e as coisas não desaparecem no escuro dum qualquer quarto.


Num país como o nosso, onde se morre muitas vezes sem familiares, anonimamente num hospital, em sofrimento, sem dignidade, percebo a advocacia da eutanásia, mas o crivo destas acções tem de ser ponderado.


Neste caso, defendo empírica, emocional e profissionalmente que a eutanásia deve estar balizada por uma série de itens fortes, e decidida em última instância caso-a-caso, por um conselho de pensadores (profissionais de saúde, juristas, filósofos, religiosos, políticos, outros), que analisariam e decidiriam da sensatez de um arremesso como este por parte de um doente.


Recebi há tempos de um amigo, o convite para escrever sobre este assunto para um jornal. Confesso que não sei se me incluiria na barricada do sim ou do não, simplesmente porque a complexidade é tão grande que estaremos sempre em omissão ou em excesso para muitos.


É um tema que precisa e merece um debate alargado, independente de lobbys políticos, religiosos ou sectários, para que as pessoas se esclareçam, se informem e opinem.
Mas sobretudo para que pensem, e pensem pelas suas próprias cabeças. Não apenas com o coração..


Não será fácil, e é culturalmente desafiante numa sociedade que cada vez mais, tem dificuldade em reunir consensos.

Um abraço e vivam a vida!