segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A Polaca


O dia-a-dia de um hospital pode parecer organizado, linear e completamente programado. Mas é só aparência!! Porque vive em permanência do inesperado e do limítrofe, impedindo-nos de orientar algo coerente e sequencial quando chegamos à enfermaria.

Tinham-me internado o senhor Albino na cama 25, num quarto com vista desafogada para o exterior, enfeitado com as árvores que circundavam o edifício.

Era um homem de 86 anos de idade, olho azul brilhante, sincero, sorriso doce, típico dos dementes que anuem a tudo sem saber porquê.
Prestei a informação básica à esposa, que iria começar o antibiótico, que provavelmente teria alta em breve, e que a situação clínica estava estabilizada. Nada de especial, critérios de gravidade baixos, bom prognóstico nesta intercorrência da já muito longa vida deste valente militar na reforma. Ex-combatente no Ultramar, tinha centenas de histórias para contar da sua vida...

Umas horas depois, tinha de novo a esposa do senhor Albino da cama 25 a pedir para falar comigo.
-Diga-lhe que já lá vou...
Quando saí do gabinete já estava a senhora de plantão, pelo que não pude contornar o assunto.
-Boa tarde, como está? E estendi a mão para a cumprimentar.

Era uma senhora baixa, pele pálida e olho claro, rugas vincadas da face, que completava a sua fisionomia típica de Leste com um barrete russo de pele enfiado na cabeça.
Esticou também ela a mão, e apesar dos seus talvez 80 anos (adivinhava eu), apertou-me a mão com tal firmeza que me pôs logo em sentido.
-Boa tarrde doutorr!

Na sua pronúncia  eslava, carregava nos érres, como se um motor de arranque se intrometesse nas palavras.
-Como se encontrra o meu marrido...?

Mais uma vez lhe expliquei que os critérios de gravidade eram baixos, que as coisas estavam a evoluir bem, e que o prognóstico era positivo.

Da aparente dureza da sua expressão, e com os olhos semi-cerrados, lançou-me com um certeiro:
-Sabe? Eu conheço o doutorr! O doutorr nunca esteve na Polónia...?

Por momentos fiquei suspenso, pensando em que situação me teria cruzado com aquela personagem num país tão longínquo...

Ela prosseguiu no seu sequencial à interrogatório tipo "serviço secreto":
-No ano de 96, o doutorr não esteve en Varrsóvia...?

Um ponto de interrogação deve ter aparecido por cima de mim, porque a senhora semi-cerrou ainda mais os olhos e deve ter pensado para consigo: "puxa pela cabeza, porrque te vais lembrarr!"

Em modo de imitação, também semi-cerrei os olhos, mas depressa os abri de espanto como se um raio me atingisse.
Sim! Tinha-me cruzado com aquela senhora há dezoito anos!!!

No verão de 96, fiz um estágio na Faculdade de Medicina de Cracóvia, ao abrigo de um programa de intercâmbio estudantil.
Comprei o bilhete de avião Lisboa-Varsóvia, que custou aos meus pais uma pequena fortuna, e de repente vi-me transportado para um país pobre, ainda na era pós muro de Berlim e com um aparelho de estado muito dominante.

Mal aterrei, fiquei retido umas horas no aeroporto a perguntarem-me vezes sem conta para onde ia, com quem, e porquê. Apeteceu-me responder ao carrancudo polícia de fronteira: para o bem-bom, com a tua irmã e porque ela tem mais amigas do que tu!
Mas de sorriso amarelo, lá lhe disse a verdade, ao mesmo tempo que idealizava como seria a sua irmã...

Da mesma maneira que me prenderam, assim me libertaram, e assim pude apanhar um autocarro directo do aeroporto para a estação de comboios no centro de Varsóvia. Uma capital sombria e com blocos de Leste, onde se adivinhavam pessoas a comer, a brincar, a conviver, a amar, a discutir, a sobreviver...

Um edifício enorme, que ainda hoje desempenha as mesmas funções, escondia no seu subsolo a estação central ferroviária duma Varsóvia gasta. Uma abóbada impressionante onde seriam as bilheteiras, fez-me sentir insignificante num instante. Não sabia bem para onde me dirigir, e se perguntava algo a alguém, todos encolhiam os ombros num expressivo "não entendo...!"

De repente, ali estava eu perdido, numa estação de comboios onde nem um letreiro em inglês se vislumbrava, onde ninguém falava outro idioma senão o polaco, onde o cinzento imperava e apagava qualquer cor que quisesse emergir…
As pessoas cruzavam-se como autómatos, ninguém parecia feliz e a teoria do fole vendia-se nas bancas, traduzida, e com ilustrações romenas.

Nisto, enquanto pousava a minha mochila, qual a minha surpresa quando dou de caras com um dos caloiros da minha faculdade!
Daquela Lisboa que tinha ficado para trás!
Ali perdidos os dois, nas reminiscências da ex-União Soviética!

-António..? Disse eu baixinho e com uma cara de perfeito espanto!
-Olá. Disse-me calmamente, como se me acabasse de encontrar na sala de alunos.
-Por estas bandas...?

Contou-me que andava a estudar Esperanto, e que nos seus estudos tinha conhecido um casal polaco que o tinha convidado a passar umas férias na Polónia.

Efectivamente, estava a seu lado um casal de meia idade, com um sorriso simpático, olhar franco e directo nos olhos, que me cumprimentou com um aperto de mão que mal adivinhava eu, me reconheceria anos mais tarde.
-Bom dia. Muito gosto!

Tinham sido eles a minha salvação naquele dia de verão escuro, num país que ainda estava sombrio das influências do antigo Bloco deLeste...

Tomamos café e trocamos gestos de mímica, enquanto uma ou outra conversa se traduzia em Esperanto. O casal comprou-me o bilhete por uns escassos zlotys, e levou-me mesmo até ao vagão, com uma afabilidade e uma delicadeza que contrastaram com tudo aquilo que até ali tinha contactado.

Com o passar dos anos, a memória já tinha apagado este encontro do meu baú, e nunca sequer me voltei a cruzar com nenhuma destas personagens.

A Dona Maya ficaria viúva anos mais tarde, e nas voltas que o mundo dá, conheceu um marinheiro português pelo qual se enfeitiçou de amores. Casou de novo, e veio morar para Portugal fazia já 6 anos, tinha aprendido o idioma com muita facilidade, e acompanhava agora a decadente senilidade do marido, com uma devoção e dedicação exemplares.

Eis senão que a casualidade do destino nos proporcionou um novo encontro, anos mais tarde e pondo-me a reflectir o quão pequeno é o mundo, e o quão grande se fazem as relações....

Ainda não tinha recuperado do espanto de tamanho cruzamento de astros!
Não acredito no destino, mas o facto deste encontro completamente inesperado 18(!) anos depois, é algo no mínimo muito esotérico!

Fiquei como médico pessoal de ambos, sentindo que o destino nos tinha reunido por diversos acasos felizes. Teria assim oportunidade de retribuir a amabilidade polaca, dum qualquer verão pós perestroika..

Esta é uma história que recordarei sempre com muito carinho, como mais um retalho da vida de um médico...

Dziękuję Maya!!!


domingo, 2 de novembro de 2014

A queda


A notícia era abertura dos telejornais do mundo inteiro. Ninguém sabia como podia aquilo ter acontecido, que estranhas forças poderiam estar por detrás de tão invulgar fenómeno. Neste caso poderíamos até chamar de falta de forças, uma vez que ele não se susteve lá em cima...

Foi tão abrupto como um raio, e quase tão chocante como uma cena de pânico.

Batiam as 12 horas e quinze minutos do dia 19 de Agosto de 2014, quando a vida decorria tão normal como poderia decorrer, naquele mundo igual a tantos outros.
O sol brilhava lá em cima tão intenso, que alguns até lhe rogavam pragas para que se apagasse...
E não é que às 12 horas e dezasseis minutos do dia 19 de Agosto de 2014, as forças deram acção aos pensamentos, e o sol....caiu?

Sim, caiu tão a pique como a pique brilhava no minuto anterior. Como se estivesse pendurado por um fio imaginário e alguém o tivesse cortado. Caiu em silêncio, sem estrondo, sem estoiro ou explosão hollywoodesca, desaparecendo na linha do horizonte e fechando o pano da sua actuação.

O sol tinha caído e mergulhado a terra na negritude total!

Toda a gente foi apanhada de surpresa: os carros chocaram uns com os outros baralhados, o rapaz que descia a escada a correr ficou sem luz e espatifou-se contra a parede dum meio-piso, e alguém não conseguiu ler a teoria do fole enquanto sentado na retrete se aliviava dos restos do dia anterior...

O pânico gerou-se de imediato nas populações, e todos acharam que vinha aí o fim do mundo! O apocalipse traria os quatro cavaleiros ceifando tudo e todos, as pragas desceriam à terra, os ventos soprariam rugindo, e o fogo brotaria da terra engolindo os homens. Mas nada disso aconteceu... Apenas a noite tinha caído para sempre no planisfério.

Os animais calaram-se num silêncio ruidoso e inquietante, mas rapidamente retomaram as suas rotinas de caça ao gato e ao rato, passado o susto inicial...

O dia transformado noite de forma tão pacífica, tinha gerado uma adaptação das luzes e iluminação àquele horário esquisito.

Todos, atónitos, saiam à rua olhando o céu tentando vislumbrar o outrora astro-rei. Mas nada...

Jornalistas, comentadores, astrólogos e até bispos, venderam a sua teoria em troca de uns segundos de fama num qualquer canal televisivo.

Cedo as tentativas de respostas se centraram na comunidade científica. Teorias de translação, da conjugação do ropirininau com o pátátús, de energias inversas, de sustentação do ozono, e até da atração-repulsa dos corpos celestes.

Com o sol caído para lá do horizonte, como fariam para o recuperar? Quando algo cai, alguém se agacha para o apanhar, mas neste caso a situação era bastante mais complexa, porque quem é que pega numa bola em brasa e a coloca outra vez no céu? Como iria a ciência resolver este imbróglio astronáutico?

Pôs-se em marcha a maior operação mundial de todos os tempos, e encontrar uma solução concertada para pôr o seu, no seu sítio. As agências espaciais trabalhavam noite após noite para que uma rápida solução fosse achada. Porque o mundo simplesmente não podia viver à luz permanente do halogénio!

As plantas ficavam raquíticas, os fungos floresciam, a visão ficava escurecida, os níveis de cortisol e melanina baralhavam-se, os painéis solares dormiam em permanência, o galo não cantava, e nem as sunset partys tinham a parte "pela noite dentro".

Enquanto isso, todos lançavam palpites de como repor a luz! Uns com ideias de focos gigantes de holofotes reguláveis, outros a imaginar o desvio de estrelas da galáxia mais próxima, e os russos a maquinarem a tentativa de intersecção de feixes nucleares que criassem um novo sol... Todas as ideias eram válidas, mas pouco exequíveis na prática...

Surpreendentemente, a resposta viria de um menino de 7 anos de idade!
Na sua simplicidade, apenas pensou em voz alta: se o sol caiu lá por trás e agora está lá em baixo, o que temos a fazer é descer a terra para um sítio mais abaixo do sol...

Solução brilhante, afirmaram os cientistas! Mas como iriam deslocar uma massa de triliões de peso, pelo espaço, para que esta adoptasse uma localização diferente daquela em estava desde a sua existência...? A terra não se mexe assim como assim...

Nesse entretanto, todas as cidades viam o seu funcionamento habitual afectado por este fenómeno quase paranormal. As rotinas eram controladas apenas pelos relógios, mas nunca batiam certo com a lógica do ciclo dia-noite, ao mesmo tempo que as reservas de energia se iam consumindo rapidamente, uma vez que tudo o que era luz artificial tinha de ser mantida acesa 24 sobre 24h. Para além disso, a serotonina e os ritmos circadianos alterados, faziam com que a irritabilidade das pessoas fosse em crescendo, notando-se já alguns distúrbios sociais e focos de tensão em bairros urbanos mais desfavorecidos onde a energia falhava amiúde.

Enquanto se remexiam soluções e mais soluções, já se tinham passado 42 dias do fatídico  apagão...

Curiosamente, a mesma criança que alvitrou a solução, também pensou na resposta: então e se saltássemos todos ao mesmo tempo e afundássemos a terra para um plano inferior?

Todos clamaram aleluias que a solução do problema estava à vista, que iriam resolver o assunto em menos de nada, mas ninguém se lembrou de como executar um plano deste tipo.

Como iriam pôr a saltar 7 mil milhões de almas ao mesmo tempo, de maneira a que a força fosse toda feita ao mesmo tempo, e o impacto fosse ao segundo? E a sincronização desta gente toda? Daríamos uma alerta mundial via rádio, tipo "3, 2, 1, agora?.", e o mundo todo dava um salto sincronizado? Corresponderia a uma força de 3,2 joules por pessoa o que com as agulhas bem afinadas daria um impacto total de 21 biliões de joules. Seria suficiente para deslocar a terra para baixo? Os cientistas quando se interrogaram sobre isto, baixaram os ombros e levaram as mãos à cabeça desanimados...

Mas houve um que se levantou de repente, de olhos muito esbugalhados e completamente despenteado como um porco-espinho.
Fitando o horizonte, sorriu misteriosamente e murmurou entre dentes: já sei!

Melhor que dispersar a ordem de saltar em uníssono, a força teria de ser aplicada num determinado ponto que servisse de fulcro, e para isso apenas necessitariam de meia dúzia de indivíduos com índice de massa corporal superior a 51. Isso, e um ponto algures na terra, resolviam a equação...

As notícias desdobraram-se e os noticiários faziam saber que o COSARPLATE (Comité de Salvação do Astro Rei e do Planeta Terra), procurava basicamente gordos e muuuito gordos para o salvamento da Terra. Ou do sol, conforme a perspectiva...

Os americanos foram os primeiros a responder com um eunuco de 32 anos e 522 quilos, os alemães ofereceram duas mamalhudas com 381 quilos, os albaneses lançaram um exemplar de porte baixo e redondo com 403 quilos, a polinésia francesa com um indivíduo quase aparentado de javali com 381 quilos, e os portugueses com o redondo do Carlinhos de Alfama, cujo fígado pesava uns impressionantes 183 quilos!

Foram apresentados nos noticiários como os peso-pesados da estratosfera, posando em tanga e exibindo todas as suas flácidas gorduras pendentes, com um orgulho descontraído.

Depois de muitos cálculos e equações rigorosas, decidiu-se que o epicentro que iria fazer estremecer a terra e abatê-la uns bons metros, estaria no terreno da Teresinha dos rissóis, em pleno centro de Massamá!

Ali se montou a maior tenda de telecomunicações do mundo, em que cientistas, investigadores, engenheiros e cartomantes beirãs, estudavam o ponto exacto em que o grupo dos gordos teria de saltar.
Para esse fim, construíram cinco torres em volta de um determinado ponto marcado com uma cruz amarela, em que os peso-pesados teriam de acertar.

O dia chegou em grande azáfama, com os presidentes das grandes potências mundiais a marcar presença no local, rodeados de um fortíssimo aparato de segurança. Havia quem não gostasse de chamar-lhe "o dia", uma vez que a terra estava imersa num escuro breu desde há quase 223 dias, mas para o caso pouco importa.

Os gordos estavam tão concentrados e focados na sua missão, que nem repararam que tinham rejeitado uns pratos de tripas com favas e uma francesinha de sobremesa. Começaram a subir as torres, ajudados por uma grua que lhes poupava o esforço dos pequenos músculos, tolhidos pela gordura que pendia flácida e luzidia de tudo quanto era recanto e prega do coirato humano. Ao chegarem lá cima, olharam concentrados para o X onde teriam de aterrar, sabendo que da precisão e pontaria dependiam milhões de almas fotosintéticas.

A contagem decrescente foi dada a nível mundial e todos a acompanhavam pela televisão, como se da extracção da lotaria do Natal fosse.

Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, e......atiraram-se no vazio em câmara lenta num movimento artístico que os fez cair todos no mesmo exacto segundo, enquanto a assistência sustinha a respiração de ansiedade...

Puuuuumba!!!! Um estrondo imenso abalou as estruturas mundiais, numa escala de richter enormíssima e de tal maneira, que a Terra foi mesmo impulsionada para baixo e o sol ganhou a sua posição lá no alto! Tal e qual como tinha previsto o rapaz!!!

Assim como desapareceu, assim recuperou o sol o seu lugar lá no cimo. Brilhava de novo tão intenso e quente como se dali nunca tivesse saído.

Foram sete dias de festejos e de folia, que devolveram a esta gente uma alegria e uma jovialidade nunca antes sentida na Terra...

Assim se fechava um período negro da história do planeta.

Assim os homens demonstraram que basta unir-se para que o sol brilhe para todos...

Assim nos unamos para que o bem comum aconteça...

Assim, seja...