O dia-a-dia de um
hospital pode parecer organizado, linear e completamente programado. Mas é só
aparência!! Porque vive em permanência do inesperado e do limítrofe,
impedindo-nos de orientar algo coerente e sequencial quando chegamos à
enfermaria.
Tinham-me internado o
senhor Albino na cama 25, num quarto com vista desafogada para o exterior,
enfeitado com as árvores que circundavam o edifício.
Era um homem de 86
anos de idade, olho azul brilhante, sincero, sorriso doce, típico dos dementes
que anuem a tudo sem saber porquê.
Prestei a informação
básica à esposa, que iria começar o antibiótico, que provavelmente teria alta
em breve, e que a situação clínica estava estabilizada. Nada de especial,
critérios de gravidade baixos, bom prognóstico nesta intercorrência da já muito
longa vida deste valente militar na reforma. Ex-combatente no Ultramar, tinha
centenas de histórias para contar da sua vida...
Umas horas depois,
tinha de novo a esposa do senhor Albino da cama 25 a pedir para falar comigo.
-Diga-lhe que já
lá vou...
Quando saí do
gabinete já estava a senhora de plantão, pelo que não pude contornar o assunto.
-Boa tarde, como
está? E estendi a mão para a cumprimentar.
Era uma senhora
baixa, pele pálida e olho claro, rugas vincadas da face, que completava a sua
fisionomia típica de Leste com um barrete russo de pele enfiado na cabeça.
Esticou também ela a
mão, e apesar dos seus talvez 80 anos (adivinhava eu), apertou-me a mão com tal
firmeza que me pôs logo em sentido.
-Boa tarrde
doutorr!
Na sua pronúncia eslava, carregava nos érres, como se um motor
de arranque se intrometesse nas palavras.
-Como se encontrra
o meu marrido...?
Mais uma vez lhe
expliquei que os critérios de gravidade eram baixos, que as coisas estavam a
evoluir bem, e que o prognóstico era positivo.
Da aparente dureza da
sua expressão, e com os olhos semi-cerrados, lançou-me com um certeiro:
-Sabe? Eu conheço
o doutorr! O doutorr nunca esteve na Polónia...?
Por momentos fiquei
suspenso, pensando em que situação me teria cruzado com aquela personagem num
país tão longínquo...
Ela prosseguiu no seu
sequencial à interrogatório tipo "serviço secreto":
-No ano de 96, o
doutorr não esteve en Varrsóvia...?
Um ponto de
interrogação deve ter aparecido por cima de mim, porque a senhora semi-cerrou
ainda mais os olhos e deve ter pensado para consigo: "puxa pela cabeza,
porrque te vais lembrarr!"
Em modo de imitação,
também semi-cerrei os olhos, mas depressa os abri de espanto como se um raio me
atingisse.
Sim! Tinha-me cruzado
com aquela senhora há dezoito anos!!!
No verão de 96, fiz
um estágio na Faculdade de Medicina de Cracóvia, ao abrigo de um programa de
intercâmbio estudantil.
Comprei o bilhete de
avião Lisboa-Varsóvia, que custou aos meus pais uma pequena fortuna, e de
repente vi-me transportado para um país pobre, ainda na era pós muro de Berlim
e com um aparelho de estado muito dominante.
Mal aterrei, fiquei
retido umas horas no aeroporto a perguntarem-me vezes sem conta para onde ia,
com quem, e porquê. Apeteceu-me responder ao carrancudo polícia de fronteira:
para o bem-bom, com a tua irmã e porque ela tem mais amigas do que tu!
Mas de sorriso
amarelo, lá lhe disse a verdade, ao mesmo tempo que idealizava como seria a sua
irmã...
Da mesma maneira que
me prenderam, assim me libertaram, e assim pude apanhar um autocarro directo do
aeroporto para a estação de comboios no centro de Varsóvia. Uma capital sombria
e com blocos de Leste, onde se adivinhavam pessoas a comer, a brincar, a
conviver, a amar, a discutir, a sobreviver...
Um edifício enorme,
que ainda hoje desempenha as mesmas funções, escondia no seu subsolo a estação
central ferroviária duma Varsóvia gasta. Uma abóbada impressionante onde seriam
as bilheteiras, fez-me sentir insignificante num instante. Não sabia bem para onde
me dirigir, e se perguntava algo a alguém, todos encolhiam os ombros num
expressivo "não entendo...!"
De repente, ali
estava eu perdido, numa estação de comboios onde nem um letreiro em inglês se
vislumbrava, onde ninguém falava outro idioma senão o polaco, onde o cinzento
imperava e apagava qualquer cor que quisesse emergir…
As pessoas
cruzavam-se como autómatos, ninguém parecia feliz e a teoria do fole vendia-se
nas bancas, traduzida, e com ilustrações romenas.
Nisto, enquanto
pousava a minha mochila, qual a minha surpresa quando dou de caras com um dos
caloiros da minha faculdade!
Daquela Lisboa que
tinha ficado para trás!
Ali perdidos os dois,
nas reminiscências da ex-União Soviética!
-António..? Disse eu
baixinho e com uma cara de perfeito espanto!
-Olá. Disse-me calmamente,
como se me acabasse de encontrar na sala de alunos.
-Por estas bandas...?
Contou-me que andava
a estudar Esperanto, e que nos seus estudos tinha conhecido um casal polaco que
o tinha convidado a passar umas férias na Polónia.
Efectivamente, estava
a seu lado um casal de meia idade, com um sorriso simpático, olhar franco e
directo nos olhos, que me cumprimentou com um aperto de mão que mal adivinhava
eu, me reconheceria anos mais tarde.
-Bom dia. Muito
gosto!
Tinham sido eles a
minha salvação naquele dia de verão escuro, num país que ainda estava sombrio
das influências do antigo Bloco deLeste...
Tomamos café e
trocamos gestos de mímica, enquanto uma ou outra conversa se traduzia em
Esperanto. O casal comprou-me o bilhete por uns escassos zlotys, e levou-me
mesmo até ao vagão, com uma afabilidade e uma delicadeza que contrastaram com
tudo aquilo que até ali tinha contactado.
Com o passar dos
anos, a memória já tinha apagado este encontro do meu baú, e nunca sequer me
voltei a cruzar com nenhuma destas personagens.
A Dona Maya ficaria
viúva anos mais tarde, e nas voltas que o mundo dá, conheceu um marinheiro
português pelo qual se enfeitiçou de amores. Casou de novo, e veio morar para
Portugal fazia já 6 anos, tinha aprendido o idioma com muita facilidade, e acompanhava
agora a decadente senilidade do marido, com uma devoção e dedicação exemplares.
Eis senão que a
casualidade do destino nos proporcionou um novo encontro, anos mais tarde e
pondo-me a reflectir o quão pequeno é o mundo, e o quão grande se fazem as
relações....
Ainda não tinha
recuperado do espanto de tamanho cruzamento de astros!
Não acredito no
destino, mas o facto deste encontro completamente inesperado 18(!) anos depois,
é algo no mínimo muito esotérico!
Fiquei como médico
pessoal de ambos, sentindo que o destino nos tinha reunido por diversos acasos
felizes. Teria assim oportunidade de retribuir a amabilidade polaca, dum
qualquer verão pós perestroika..
Esta é uma história que
recordarei sempre com muito carinho, como mais um retalho da vida de um
médico...
Dziękuję Maya!!!