Esperara muitos anos por aquela notícia, mas agora era tarde demais.
Quando era criança brincava muito na rua. Essa
rua que agora tem carros mal estacionados, e onde os cocós dos donos salpicam os passeios já estreitos. Deviam fazê-los mais largos para que
houvesse espaço para todos. Cocós e pessoas.
Também tinha pena de nunca ter tido
um cão. Mas nunca o tendo, pelo
menos o consolo de não ter de lhe apanhar os cocós...
Sempre que vinha da escola, saltava o muro curto do estádio do Atlético e marcava um golo atrás do outro, em fintas imaginárias
e livres direitinhos ao ângulo.
As bandeiras, os cachecóis
e os apitos, rejubilavam com mais uma fantasia de grandeza que o transformava
numa estrela do nada e do ninguém.
Cresceu com a mágoa de nunca ter visto o seu
campo da bola com relva. Assim como quem morre com a mágoa de nunca puder ter visto as suas próprias costas.
Tanta gente que morre com mágoa
e magoada..
Até ele, ali estendido na cama à espera que o chamem pela última
vez.
-Não te zangues que não estou a fazer ronha! A preguiça entranhou-se em mim e agora tenho de esperar pela notícia!
Quando uma vez o Benfica veio jogar, até a erva daninha deixaram crescer no meio campo. Mas foi sol
de pouca dura, porque assim que as águias abalaram, deixando a
maior enchente da história do Atlético e a maior derrota desde a sua fundação com nove golos do pantera negra, a terra continuou a
bater tanto no meio campo, que mirrou a pouca erva ruim que pincelava de verde
o chute inicial.
-Estas dores matam-me de dores!
E eu prá aqui virado, porque o lençol se enrodilhou e não me deixa virar para oeste,
que é onde se põe o sol. Que ironia! Agora que me vão apagar a luz de vez, estou virado a nascente.!-Até me dói de rir!
-Também posso virar a cabeça para Sul que dizem é mais quentinho?
-Espera! Tás com pressa homem?
-Mas afinal quem sofre mais? Tu da pressa da espera ou eu
com dores?-Não percebes que estou esperando só por isto?
Uma vez veio um engenheiro da capital, ver o que se podia
fazer. Tinha de ser muita maquinaria pesada, que os tapetes de relva fofa aos
quadrados custavam uma fortuna, e o presidente da câmara não queria gastar o orçamento do anexo da sua casa para ajudar o clube da aldeia.
Tratou-se então de arranjar o tractor do
Chinguilha para levantar terra, assentar com o rolo compressor, e finalmente
lançar as sementes da relva que
iria germinar nos buraquinhos milimétricos ponteados pelo ancinho.
Mas o Chinguilha ficou de boca à banda e o corpo deixou de lhe obedecer de repente!Primeiro
uma perna bamba, o braço, a boca de lado, sem falar,
mas quando espumou e começou a revirar os olhos já estava arrumado. Disseram que lhe deu uma trombose, ou um avc no entender dos entendidos, pelo que
como ninguém sabia mexer no tractor, a
sementeira foi-se...
-Ai!!! Porra pra isto mais a teoria do fole! Outra puta
doutra guinada!!!"
-Raios partam esta doença
que nos rói os ossos e come a carne por
dentro!-Quando chegar aí acima, vou-te perguntar se fizeste o mesmo ao camarada Juca da sapataria!
Tenho mais de mil artigos e recortes do atlético desde que sou vivo e agora quase morto. Pra que é que será que guardamos tanta
trapalhada inútil? Temos medo que se nos
borre da memória quando envelhecermos e não soubermos nomear um qualquer presidente? Sim, porque
nomear presidentes é uma prova de lucidez para além do patriotismo. Lembrar-se de ninguém que nada fez...
Como os recortes! Não falam, não reclamam. Cristalizam os golos e resultados para todo o
sempre. Será que alguém vai aproveitar aquilo para o museu?
-Caramba! Tardavam em chegar com notícias. Daquelas que eu esperava ouvir!
Uma cama de hospital não tem bonitos adereços onde um se possa entreter..
Uma vez foram à aldeia do meu pai e levaram
também umas notícias. Daquelas que ninguém
quer ouvir. Os telegramas do ministério da guerra vinham buscar os
moços e o seu sangue.
Nos ouvidos
das mulheres ficavam a retumbar aqueles momentos imensos, que duravam a distância do calor de uma terra que diziam ser em África.
Não sei se estão a chegar mas já me sinto cansado nesta
enfermaria que tresanda a éter. Os olhos que pesam
toneladas e um respirar ao acaso, como se me lembrasse vagamente de inspirar
fundo de quando em quando.
Ao esforço do ar a entrar, inversa a
facilidade em sair, e a expectativa da audiência
em ver se havia outra golfada de oxigénio miraculosa por parte do
moribundo paliativo.
-Parece que é desta!
Mas se ainda penso, não foi, não é...?Mas um pensar já vazio, cansado de sofrer, um corpo definhando e um revirar de olhos quase como o Chinguilha. Não aguenta mais. Coitadinho..
A porta abriu-se lentamente num prenúncio.
Arnaldo ofegante e a chorar de alegria, anunciou que o
campo de relva do Atlético tinha finalmente sido
inaugurado e benzido!
O silêncio abateu-se no quarto e os rostos
transfiguraram-se..
A enfermeira abanou pesadamente com a cabeça. Fechou-lhe os olhos.
Plácida e serenamente cobriu-o com um lençol.
Podia ter frio na sua última viagem.
Adeus dores...