quinta-feira, 17 de maio de 2012

Ops!



A azáfama da urgência era caótica desde que tinham fechado as extensões de saúde dos arredores, e todos os dias toneladas de doentes eram despejados à pazada na porta daquela que se dizia a maior, e melhor urgência do país.

Uma pequena entrada dava acesso a um serviço cheio de remendos e acrescentos, com planta de construção datada dos anos cinquenta, e claramente fora de toda a racionalidade de eficácia e eficiência da era moderna.

Médicos, enfermeiros e auxiliares eram sempre poucos, as horas de espera ao atendimento revelavam as dificuldades, e serviam de prova de resistência aos doentes que menos se queixavam na hora da inscrição.

Se na primeira linha de abordagem, as tosses e febrículas se misturavam com as dores vagas e os entorses; no internamento, as tromboses, os enfartes e as hemorragias, eram vigiados e tratados com maior afinco e vigilância.

Às cinco da tarde, dava entrada uma senhora trazida pelos bombeiros da Musgueira, aparentando uns sessenta e poucos anos de idade sofridos, já muito difíceis de adivinhar na cor negra de pele e nos sulcos profundos das rugas da face. A sua atitude era calma, o seu discurso era imperceptível e ficava fixamente a olhar para nós respondendo guturejos cantados.

Foi inscrita com os documentos que aportava, e depois de muita auscultação e palpação, a D. Adelaide passou a ser conhecida pela maca doze, que aguardava o raio X à cabeça.

Parecia responder ao nome, mas logo vinha um chorrilho de palavras esgrouviadas que até nos pareciam insultar, não fosse a entoação suave e atitude serena.

De uma das portas semicerrada, ouvimos o auxiliar de acção médica aos gritos do fundo do corredor:

-"Ó Juvenal! Traz daí a velha da maca 12 prà TAC!"

E assim foi a Dona Adelaide, que mirrava na cama de vergonha cada vez que lhe perguntavam o que quer que fosse.

O exame não deu nada e por isso decidiram interná-la para observação e vigilância, com o pomposo rótulo de acidente vascular cerebral isquémico. Ficou num corredor, a seguir à maca 11 com o carimbo de hemorragia digestiva, e depois da maca 15 com a senha de enfarte do miocárdio. Todos pareciam comunicar menos a D.Adelaide, que diziam ter afasia e lhe custava a entender-se e explicar-se como deve de ser.

Aquelas noites eram frias, e no corredor sentia-se a brisa que entrava cada vez que as portas automáticas se abriam para engolir mais uma série de candidatos a doente, triados de pulseiras verde, amarela ou laranja, conforme a seriedade da enfermidade. Com o sono entrecortado, lá descansaram todos um bocadinho, que o cansaço aperta naquelas horas, estejamos mais ou menos doentes.

No turno da manhã, grandes jarros de metal amolgados pelo uso do combate diário, distribuíam o leite em canecas de loiça barata e tosca, enquanto as carcaças com manteiga eram repartidas pelos estropiados auto-suficientes, segundo as regras de higiene da teoria do fole.

Os serviços seguiam-se uns aos outros por turnos de oito horas cada um, e tanto os médicos como os enfermeiros registavam nas suas avaliações e observações consecutivas da D.Adelaide, coisas como: "doente sem défices motores", "afasia de compreensão e expressão", "duvidoso desvio da comissura labial", desconhecendo o povo que tínhamos uma "comissura" no corpo e ainda para mais na boca!

No dia seguinte entrei ao serviço, e depois de dar uma volta aos doentes debrucei-me sobre qual seria o destino a dar à D.Adelaide. Uma senhora daquela idade, apesar de se mexer sem problemas, iria ter com certeza muitos handicaps a ultrapassar nas suas actividades de vida diária. Temos de convocar a família! Pensei eu.

Como fazia o turno da tarde que coincidia com o horário das visitas, assim que vi alguém ao pé da maca 12, lancei a mira e fui. Era uma jovem de raça negra, alta e esguia,  com traços finos e delicados, extremamente bem vestida, que facilmente passava por princesa de uma qualquer tribo africana.

Com muito meu espanto, as duas pareciam falar animadamente, embora não me conseguisse aperceber do que é que falavam, porque a confusão das visitas era tal, que não permitia ouvir com clareza a aquela distância. Curioso como pelo menos gesticulavam em consonância, parecendo até que estavam em amena cavaqueira...

- Boa tarde!

- Boa tarde, Senhor doutor! Disse, rasgando um sorriso nuns dentes perfeitamente alinhados como albas teclas de um piano sedutor!

- A senhora é familiar da D.Adelaide?-Gaguejei, perante o impacto!

- Temo dizer-lhe que a sua avó não consegue falar nem entender o que diz porque teve uma trombose no cérebro! Mas neste momento está estável...

- Como diz doutor!!?- disse levantando o tom de voz e desvanecendo aqueles marfins alinhados.

- Pois...mas pelo menos anda sozinha e faz a higiene por si própria.. Retorqui, tentando fazer reaparecer aquele sorriso de novela.

- Sabe que por vezes estas coisas...

- Mas que disparate vem a ser este doutor? A minha avó é cabo-verdiana e chegou a Lisboa há uma semana! Ela Só fala e Só percebe crioulo....!!!!!!! E fala e entende tudo como antes....

Nesse momento percebi que a nossa medicina tinha sido fintada pelo dialecto africano .....

PS: história real de uma qualquer urgência real deste real país.



1 comentário:

  1. Tantas histórias e memórias. Às vezes é importante encontrar humor na tragédia. Exemplo fantástico.

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