A azáfama da urgência era caótica desde que tinham fechado
as extensões de saúde dos arredores, e todos os dias toneladas de doentes eram
despejados à pazada na porta daquela que
se dizia a maior, e melhor urgência do país.
Uma pequena entrada dava acesso a um serviço cheio de remendos e acrescentos, com planta de construção datada dos anos cinquenta, e claramente fora de toda a
racionalidade de eficácia e eficiência da era moderna.
Médicos, enfermeiros e
auxiliares eram sempre poucos, as horas de espera ao atendimento revelavam as
dificuldades, e serviam de prova de resistência aos doentes que menos se
queixavam na hora da inscrição.
Se na primeira linha de abordagem, as tosses e febrículas se misturavam com as dores vagas e os entorses; no
internamento, as tromboses, os enfartes e as hemorragias, eram vigiados e
tratados com maior afinco e vigilância.
Às cinco da tarde, dava entrada
uma senhora trazida pelos bombeiros da Musgueira, aparentando uns sessenta e
poucos anos de idade sofridos, já muito difíceis de adivinhar na cor negra de pele e nos sulcos
profundos das rugas da face. A sua atitude era calma, o seu discurso era
imperceptível e ficava fixamente a olhar
para nós respondendo guturejos
cantados.
Foi inscrita com os documentos que aportava, e depois de
muita auscultação e palpação, a D. Adelaide passou a ser conhecida pela maca doze, que
aguardava o raio X à cabeça.
Parecia responder ao nome, mas logo vinha um chorrilho de
palavras esgrouviadas que até nos pareciam insultar, não fosse a entoação suave e atitude serena.
De uma das portas semicerrada, ouvimos o auxiliar de acção médica aos gritos do fundo do
corredor:
-"Ó Juvenal! Traz daí a velha da maca 12 prà TAC!"
E assim foi a Dona Adelaide, que mirrava na cama de
vergonha cada vez que lhe perguntavam o que quer que fosse.
O exame não deu nada e por isso
decidiram interná-la para observação e vigilância, com o pomposo rótulo de acidente
vascular cerebral isquémico. Ficou num corredor, a seguir
à maca 11 com o carimbo de
hemorragia digestiva, e depois da maca 15 com a senha de enfarte do miocárdio. Todos pareciam comunicar menos a D.Adelaide, que
diziam ter afasia e lhe custava a entender-se e explicar-se como deve de ser.
Aquelas noites eram frias, e no corredor sentia-se a brisa
que entrava cada vez que as portas automáticas se abriam para engolir
mais uma série de candidatos a doente,
triados de pulseiras verde, amarela ou laranja, conforme a seriedade da
enfermidade. Com o sono entrecortado, lá descansaram todos um
bocadinho, que o cansaço aperta naquelas horas,
estejamos mais ou menos doentes.
No turno da manhã, grandes jarros de metal
amolgados pelo uso do combate diário, distribuíam o leite em canecas de loiça
barata e tosca, enquanto as carcaças com manteiga eram
repartidas pelos estropiados auto-suficientes, segundo as regras de higiene da
teoria do fole.
Os serviços seguiam-se uns aos outros
por turnos de oito horas cada um, e tanto os médicos
como os enfermeiros registavam nas suas avaliações
e observações consecutivas da D.Adelaide,
coisas como: "doente sem défices motores",
"afasia de compreensão e expressão", "duvidoso desvio da comissura labial",
desconhecendo o povo que tínhamos uma
"comissura" no corpo e ainda para mais na boca!
No dia seguinte entrei ao serviço, e depois de dar uma volta aos doentes debrucei-me sobre
qual seria o destino a dar à D.Adelaide. Uma senhora
daquela idade, apesar de se mexer sem problemas, iria ter com certeza muitos handicaps a ultrapassar nas suas
actividades de vida diária. Temos de convocar a família! Pensei eu.
Como fazia o turno da tarde que coincidia com o horário das visitas, assim que vi alguém ao pé da maca 12, lancei a mira e
fui. Era uma jovem de raça negra, alta e esguia, com traços finos e delicados,
extremamente bem vestida, que facilmente passava por princesa de uma qualquer
tribo africana.
Com muito meu espanto, as duas pareciam falar animadamente,
embora não me conseguisse aperceber do
que é que falavam, porque a confusão das visitas era tal, que não
permitia ouvir com clareza a aquela distância. Curioso como pelo menos
gesticulavam em consonância, parecendo até que estavam em amena cavaqueira...
- Boa tarde!
- Boa tarde, Senhor
doutor! Disse, rasgando um sorriso nuns dentes perfeitamente alinhados como
albas teclas de um piano sedutor!
- A senhora é
familiar da D.Adelaide?-Gaguejei,
perante o impacto!
- Temo dizer-lhe que
a sua avó não
consegue falar nem entender o que diz porque teve uma trombose no cérebro!
Mas neste momento está estável...
- Como diz doutor!!?-
disse levantando o tom de voz e desvanecendo aqueles marfins alinhados.
- Pois...mas pelo
menos anda sozinha e faz a higiene por si própria.. Retorqui, tentando fazer
reaparecer aquele sorriso de novela.
- Sabe que por vezes
estas coisas...
- Mas que disparate
vem a ser este doutor? A minha avó é
cabo-verdiana e chegou a Lisboa há uma semana! Ela
Só
fala e Só percebe
crioulo....!!!!!!! E fala e entende tudo como antes....
Nesse momento percebi que a nossa medicina tinha sido
fintada pelo dialecto africano .....
PS: história real de uma qualquer urgência real deste real país.
Tantas histórias e memórias. Às vezes é importante encontrar humor na tragédia. Exemplo fantástico.
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