A festa começa no primeiro de Dezembro, quando as luzinhas dão cor e brilho à cidade, e o cheiro do Natal chega a todos os cantinhos do Funchal. Aqui, a fobia da época não se mede pelas montras vistosas, nem pela profusão de rechonchudos pais Natal, nem pelo número de gadgets inúteis postos à venda, nem sequer pela idiotice de ter um hipopótamo como figura Natalícia.
O sentido é o da verdadeira festa da família, dos amigos, do convívio, da partilha, da solidariedade, destes e daqueles muitas vezes olvidados, tudo em redor da celebração do nascimento do Menino Jesus. As missas do parto, que se iniciam nove dias antes do Natal, e que se celebram às seis da manhã, são a prova de que o religioso se mistura com o pagão. Ainda nos acordam temprano, os grupos de populares que munidos de instrumentos vários como o acordeão, a braguinha, a rabeca, a harmónica, o rajão, as castanholas, o reco-reco, as pinhas, a gaita, o brinquinho, nos brindam à saída da missa, celebrando o momento da Festa do Menino.
Os preparativos começam cedo, e recordo com alegria o dia em que subíamos a montanha para ir buscar o pinheiro de Natal! O Sr.Engenheiro do governo regional, disponibilizava sempre uns salvo-condutos para que, chegados ao posto de controlo florestal do Poiso, com um frio de rachar, o vigia se embrenhasse na floresta, vindo de lá com um frondoso abeto que recebia em casa os mais variados comentários: “É um bocado esgalhado!”; “Este ano saiu um pedacinho desconsolado!”;”Ah, este é muito maneirinho!”. O pote de mármore servia de recipiente, as rochas entalavam e fixavam o tronco na base impedindo-o de tombar, e sob o comando do meu Pai, púnhamos a gambiarra dispersa uniformemente, as bolas maiores na base e as mais pequenas no topo, enquanto a estrela coroava o nosso esforço no final, brilhando na pontinha daquela árvore, que parecia o maior pinheiro do mundo, e o nosso orgulho do Natal.
Mas este orgulho não destronava outro mais importante: a lapinha! A do meu avô ocupava uma parede inteira de uma das divisões da casa, mas a nossa era mais comedida. Passávamos horas a construir casinhas aproveitando o cartão duro das embalagens de medicamentos, a recolher o musgo do cemitério inglês, e a preparar a plantação do trigo nos pequenos cântaros para que as searas despontassem a embelezar o cenário. Neste teatro, a gambiarra branca foi destituída da sua função, a partir do momento em que quase me ia matando de electrocussão, deixando impressas umas marcas de queimadura nas mãos, que ainda hoje persistem.
A primeira coisa a definir era o local da gruta do Menino Jesus, e depois era só encaixar os Reis Magos, o Arcanjo, a aldeia, o rio de algodão, e todos os pastorinhos, casinhas, ovelhinhas e todas as “inhas” do cenário. A maioria das figuras já encarnava uma personagem conhecida e caricaturada em profundas gargalhadas: “Vamos pôr o Sr.João da barraca, aqui ao lado do bar!”; “Ó homem, põe o Padre Rafael ao pé da Igreja, e tira-o da tasca!”, entre outras que aqui não posso revelar...
O cheiro a bolos, margaridas, broas de mel, beijinhos, sonhos, e outras iguarias muito conventuais e pouco convencionais, era uma constante, e todos os dias alguém aparecia para uma visita de Natal, havendo logo lugar a jantar ou almoço. Muitos reconhecidos doentes vinham entregar uma prenda ao senhor doutor, e o peru por vezes era tão grande que tinha de ir a assar no forno da padaria, três números abaixo na mesma rua.
O movimento na cidade era ensurdecedor, e as gentes do campo aproximavam-se da cidade para as visitas de família, e para as compras de última hora. Dão-se muitas lembranças e poucas prendas, porque afinal o Natal é isso mesmo, lembrar-nos de todos sem excepção, não esquecendo nunca as tias, as primas, as madrinhas, e afins! Adorava aquele dia 24, quando a minha mãe enchia diferentes cestos de anonas, peras abacate, bananas, bolos de mel, doces, uma garrafa de uísque, junto com um que outro embrulho, e os homens da casa saíam para distribuir o Natal pela prima Guiomar, Madrinha Natália e Madrinha Henriqueta (que ainda hoje me lembro de ter uma barba rasteirinha..); as primas Lurdes e Cecília (que tinham um presépio com a figura de um Padre a apalpar uma mulher da vida..); e já no fim do recorrido, as eternas meninas do Quebra-Costas: a Igia e a Amélia, cuja cozinha parecia de brinquedo, e onde tudo era pequenino e mimoso. Em todos estes apeadeiros, acontecia sempre o ritual de visitar a lapinha erguida no mesmo local e com o mesmo arranjo, de comer aqueles doces caseiros divinais, de empanturrar-nos com o bolo-de-mel delicioso, e provar os diferentes licores de maracujá, cereja ou frutos secos, que nos iam empapando o sangue na mesma proporção que nos aqueciam os corações. Às minhas Tias da Ribeira Brava era reservado outro dia, com uma cesta reforçada, e quase sempre uns sapatos ou uma saia lhes calhava na rifa, sendo certo e sabido que chegar na hora da missa, era ter que esperar que esta acabasse, e que as bilhardices do adro se actualizassem.
O Natal era isto e muito mais. Um sem-fim de recordações, de vivências, de cores, de cheiros, de aromas, de experiências, de eternas e repetidas fotografias da vida. Lembro e relembro com alegria as tardes do circo, os carrinhos de choque do campo da barca, o algodão doce da feira, os presentes do consultório, as noites do mercado, a missa do galo ouvida sempre no adro, a excitação das entregas do pai Natal, as luzes grandes e coloridas nas árvores, o calhamaço do Diário de Notícias da Madeira no dia 25, as flores “manhãs de páscoa”, as bombas de estalo que eram a banda sonora da época: ratinhos, beijinhos, de garrafa, de barril..; e até os jogos do Marítimo que nessa altura pareciam diferentes, fazendo-se a festa quer houvesse vitória ou derrota.
Milhares de outras simples recordações estão armazenadas em mim, indo e vindo como flashes de uma época, que como outra não há!
É esta a magia do Natal madeirense, único e ímpar, global e acolhedor, mas sobretudo muito familiar, imutável nas suas tradições e festividades. Se me perguntarem o que peço para esta época, respondo-vos:
- Um Natal como o meu!
- Um Natal como o meu!
E porque ainda é Natal na Teoria do Fole: Boas Festas!
Também sempre gostei muito do Natal. Quando era pequena, passava horas ao frio (em modo Rena Rodolfo com o nariz vermelho) a apanhar musgo verdinho e a escolher uma árvore para o cantinho da casa dedicado ao Natal. Adorava todos os preparativos até chegar o dia. Lembro-me da excitação de estarmos todos à mesa com o calor da lareira e de contar os minutos para abrir os presentes mas só guardo na memória um único presente de Natal: um robe muito quentinho que uso até hoje e que me dá uma sensação única de aconchego. Curiosamente, só me lembro de coisas boas e aprendi que há sempre alegria quando as pessoas se juntam e que é a nossa rede de suporte (muitas vezes os nossos amigos) que torna os problemas mais leves e a vida mais feliz e completa.
ResponderEliminarGuardar momentos e sorrir com o coração!