A nossa equipa tinha chegado há três dias e mal tínhamos tido tempo de desfazer as malas, os chouriços e os vinhos que aconchegariam os nossos apetites. Uma viagem esquisita, um país estranho, uma incerteza de como seria a guerra. Fomos acolhidos pelo Comandante Machado, um homem alto, bem constituído, completamente careca e com uma voz grave e calma, que geria toda a nossa logística e articulação com o hospital francês onde iríamos integrar as diversas equipas e áreas de intervenção.
Naquela tarde, abordou-me no corredor num tom circunspecto e disse calmamente:
-Doc, amanhã temos de ir a Camp Warehouse receber o Ministro da Defesa Português que está de visita aos contingentes nacionais destacados no Afeganistão. O briefingpré-deslocamento será dentro de uma hora.
O modo grave e pausado da voz, inculcava uma tónica dramática na afirmação, isto porque dois dias antes, tinha havido um ataque suicida a um convoy francês naquela mesma estrada, tendo atingido o médico e enfermeiro que ingloriamente morreram. Como quase tudo na guerra, onde muita coisa morre, e se não morre, renasce e transforma-se.
Uma hora em ponto depois, estávamos os dois com o pelotão de Comandos que iria fazer a deslocação. Todos em meio círculo, de frente para um quadro, onde o Tenente Coronel Batuta explicava as posições de cada um:
-Pereira vais no veículo 3, posição 2. Carvalho vais no veículo 3, posição 4. Doc vais no veículo 4, posição 4.
Discretamente debrucei-me sobre o Major e perguntei-lhe:
-Onde é que eu vou afinal senhor Major…?
-Vai no 4º veículo da coluna, e sentado atrás do lugar do morto!
-Ah, bom…! Senti um arrepio na espinha, mas mantive-me firme!
No dia seguinte, chegámos ao ponto de encontro com o contingente do Exército, já com o colete anti-bala e capacete colocados, e eu acompanhado duma velhinha pistola Walterda segunda guerra mundial que me tinham entregue à chegada a Cabul. Fiquei logo de sobreaviso, porque todos os militares que nos acompanhavam levavam um arsenal de munições enroladas no tronco, pistolas modernas em coldres sofisticados, armas pesadas com mira telescópica e o diabo a quatro. Só em filmes do Rambo!
Os Hummers militares são de uma pesada robustez e literalmente à prova de bala, levando cada um cinco elementos: o condutor e o pendura, dois atrás, e um quinto numa plataforma no meio, de pé, com o tronco e cabeça de fora da abertura no tejadilho do veículo, manobrando a metralhadora para o que desse e viesse. À sua frente tinha um ferro na vertical de um metro e meio, para o proteger dos cabos de aço que muitas vezes os insurgentes colocavam àquela altura, com o objectivo de os degolar em andamento…
A partida estava para as 8h15, e rapidamente nos organizamos pelos veículos num nervoso miudinho que me acelerou a vontade de esvaziar a bexiga. Paciência, não havia tempo para isso.
A coluna arrancou devagar até ao Main Gate, onde vários militares nos saudaram levantando as cancelas e retirando os dispositivos de segurança à nossa passagem. Percebi-os com um ar preocupado e inquieto. Seria misperception…
Mal atravessámos as barreiras, os veículos aceleraram como doidos pelas ruas empoeiradas, e um novo mundo se revelou. O caos urbanístico de periferia de cidade de terceiro mundo, casas inacabadas em tijolo, esgotos que corriam ao ar livre, cavalos que puxavam carroças, talhos com carne pendurada onde o manto de moscas escondia os vestígios comestíveis. Era um mergulho na idade média! Os miúdos brincavam nas bermas como se nada fosse, mas à nossa passagem paravam faiscando ódio. Arrepiou-me um, que tenho a certeza me olhou nos olhos enquanto fazia um sinal de degolar com o polegar. Não teria mais de dez anos… Como poderíamos construir outra imagem nestas infâncias, sendo nós os intrusos?
As burkas azuis circulavam em passo rápido, sempre aos pares ou acompanhadas de um elemento masculino que presumo fosse o marido. Não se atreviam a olhar para nós pela janela de rede (deliberadamente de reduzidas dimensões) dos seus mantos, caso contrário todos saberiam para onde estavam a olhar e podiam ser fortemente censuradas. Censura validada publicamente, e que podia incluir vários tipos de abordagem muito agressiva.
A estrada em que seguíamos -“Violent Road”- tinha esta alcunha porque fazia parte do trajecto inicial de uma estrada que liga Cabul a Jalalabad e detinha na altura o maior número de ataques suicidas do Afeganistão. Naquele troço que percorríamos, tinha sido construído um separador central em cimento, de maneira a impedir que os veículos suicidas no sentido contrário colidissem de frente com a coluna militar. Eu estava sempre atento aos carros e motas, e confesso que quando passávamos por um automóvel estacionado na berma, instintivamente fechava os olhos e pensava: ”É desta que rebentamos..!!”
A nossa coluna avançava célere e sempre com prioridade. Nas rotundas, o primeiro veículo fechava a primeira entrada da direita enquanto os restantes a atravessavam a alta velocidade, adornavam na curva e seguiam em frente, juntando-se o veículo que fez a cobertura, em último. Os homens iam atentos a tudo e davam ordens aos veículos e pessoas que se afastassem. Nesta azáfama e bulício da cidade, muitos eram os peões e carroças que se atravessavam no meio da estrada. O soldado Fonseca, nascido em Paranhos, manobrava a peça de artilharia que sobressaía do tejadilho, gritando aos transeuntes no seu árabe mais universal e genuíno: “Sai-me da frente caral@€:#%”!! A primeira ordem sabia eu era de alerta, a segunda um tiro de aviso, e a terceira um tiro a matar. De vez em quando ele olhava todo contente para baixo e dizia-me tranquilizador: Doc, tá tudo sob controlo!
Numa alteração ao briefing da véspera, iríamos fazer uma paragem pelo caminho, na base militar Camp Phoenix, para “fazer umas comprinhas”… A coluna abrandava porque estávamos próximo, e havia uma série de barreiras que assinalavam a segurança. Parámos, saindo dos veículos para os procedimentos de desarme e o descarregar das munições. Mete em segurança, tira carregador, vê se tem munição, aponta a um canudo saliente do chão, trac trac trac...Optei por fingir que fazia o mesmo com a minha Walter, pois não queria correr o risco de dar um tiro a ninguém sem querer, muito menos a mim próprio, o que seria um pouco humilhante…
Aquela base era americana, e os gringos não brincam em serviço quando assumem uma missão. Nunca se quiseram misturar com a logística da NATO, e assumiram com a sua Operation Enduring Freedom toda a cadeia de esforço, desde o fabrico do pão até ao abastecimento dos caças. O ambiente ali era descontraído, com um MacDonald’s à entrada, um Pizza-Hut mais à frente e uma Shop com toda a espécie de artigos vindos da América. Agora percebo porque tinham querido ali parar…
A calmaria durou pouco e fizemo-nos de novo à estrada com aquele nervoso miudinho, a adrenalina nos píncaros, e a respiração ofegante como quem vê a luz ao fundo do túnel mas não a vê aproximar. Depois de muitos gritos, guinadas, carros atravessados e desta vez nenhum tiro de aviso, chegamos a Camp Warehouse.
Era daqui que Portugal tinha outrora exercido o Comando Regional de Cabul e o que chamava a atenção era o edifício de comando enorme, com o símbolo da república; a messe com talheres de metal e refeições de um compatriota de Salvaterra do Minho e mãe galega; um espaço de jogos, com bilhar, setas e matraquilhos da Anadia; uma igreja improvisada em madeira; e um bar com uma réplica de um eléctrico com vários motivos lisboetas. Um verdadeiro cantinho deste nosso país, onde as forças armadas não descuravam nenhum pormenor para fazer vincar a nossa hospitalidade. Neste caso em terra alheia.
A igreja era espartana, pequena mas acolhedora, com uma cruz onde Cristo figurava em homem sofredor, construído com restos de uma corda de sisal. Não estava ninguém e sentei-me comovido por estar ali. Por pensar que mesmo na guerra, a religião pode trazer-nos paz, tranquilidade e sobretudo a serenidade para criar espaço para o reencontro com nós próprios. No meio do caos e da confusão, é sempre importante ter um tempo para parar e reflectir, para meditar naquilo que verdadeiramente importa na vida.
A recepção ao ministro foi no bar, e nuns breves discursos elogiaram-se as Forças Armadas, os militares e Portugal! Em cada rodada de vinho do Porto se via a descompressão e os olhos cada vez mais brilhantes de todos, de maneira que quando o ministro abalou, já todos cantavam e brindavam como se não houvesse amanhã. O mais real é que poderia não haver amanhã ali, pelo que o melhor seria aproveitar os croquetes, as empadas, o presunto e o vinho do Porto…
A jornada chegava ao fim e confesso que a viagem de regresso foi bem mais tranquila. Os mesmo gritos, a mesma rapidez, mas o etanol que nos corria nas veias dissipava esse medo e essa incerteza. Apreciei com outra calma e com outros olhos aquela Cabul destruída, aquele país sem futuro, aquelas mulheres oprimidas, aquela sujidade entranhada em tudo, aquelas crianças sem infância. Acenei a uma, que desta vez retribuiu com um sorriso complacente, como quem tem pena de nós e do nosso destino…
Chegáramos à nossa base, sãos e salvos.
Missão cumprida!
Cabul, 6 de Julho 2009