Naquela
altura os filmes iam e vinham com uma cadência que não é a de hoje. Nas grandes
cidades podiam-se ver estreias mundiais, mas sempre com um atraso significativo
relativamente ao que já tinha corrido mundo. A indústria americana
encontrava-se no auge da produção mundial de filmes, e Hollywood confirma que é
de facto a fábrica de sonhos.
Enquanto
isso, um pequeno país na pontinha da Europa sobrevivia, acabado de sair de uma
revolução que apesar de pacífica, ainda sofria das reminiscências de um poder
opressor e silenciosamente tentador do controlo total.
Nestes
idos anos 80, Manuel movia-se no mundo das artes e neste caso do cinema, como
peixe dentro de água. Representava várias empresas de distribuição de filmes da
Europa, e conseguia todas as películas em primeira mão que estreavam na metade
sul de Portugal. Um seu outro amigo tinha tacitamente o acordo de representação
para a metade acima do Tejo, pelo que assim, ambos mantinham a hegemonia do
negócio e repartiam o país em dois, tal qual tratado de Tordesilhas em filme.
Para
além de estrear em todas as salas de Lisboa e arredores, Manuel fazia muitas
incursões na sua Renault 4L, que carregava com a máquina de projecção, a tela e
todas as bobines de filmes da altura, para de aldeia em aldeia e de cidade em
cidade, percorrer durante uma semana por mês aquele interior alentejano
esquecido e vermelhíssimo...
Um dia
estava no seu escritório, num primeiro andar da rua dos Fanqueiros, quando
recebe um telefonema de um fiel fornecedor das novidades cinematográficas:
tinha uma nova película que estava a fazer furor na Alemanha! Tratava-se da
nova coqueluche europeia: a actriz ítalo-húngara de filmes pornográficos Ilona
Staller, conhecida artisticamente como Cicciolina, sendo naquele tempo figura
emergente numa Europa que cada vez se tornava mais liberal e libertina. Os seus
filmes esgotavam salas, só para o seu fiel público admirar artes de performance e muitos
malabarismos capazes de surpreender o mais incauto espectador....
Manuel
ficou mesmo entusiasmado pelo furo, e tratou logo de dizer que sim, antes que a
concorrência apanhasse aquela que seria a obra-prima do porno mundial. Não foi
uma negociação fácil, porque o intermediário pretendia sacar um bom dinheiro,
mas não se intimidou e conseguiu no final um preço. Não fosse ele um português
dos quatro costados..
O filme viria
do circuito alemão, mas a entrega teria de ser combinada clandestinamente em
Espanha, onde o correio atravessaria as fronteiras desde a Alemanha para deixar
a encomenda num local seguro.
Naquela
noite de sábado estrelado nem dormira, tal era a excitação! Arrancou na 4L que
já sabia o caminho para o Alentejo, contrariou-lhe a direcção dos caminhos que
já conhecia, cruzando a fronteira espanhola por Vilar Formoso. Chegado à aldeia
de Torrevieja del Pinar, seguiu as setas que indicavam igreja, como assim lhe
tinham dito em Lisboa. Já passava da meia-noite e nem vivalma naquelas pedras
que tinham testemunhos de séculos de intriga e guerras peninsulares.
Encontrou
a porta da casa e bateu suavemente com os nós dos dedos três nervosas pancadas,
abrindo-se uma janela na escuridão da noite, enquanto um corpo se esgueirava
para perguntar num castelhano mal disposto:
- Pero
quién coño llama a estas horas?!!
A voz
não lhe saiu clarinha e fugiu trémula, mas foi suficiente para o convencer:
- Vengo
a por la película....
Logo a
janela se fechou e ouviu passos que desciam a escada, ao mesmo tempo que as
luzes se iam acendendo pelo caminho. O homem era atarracado e rude, e as
parótidas não deixavam mentir os seus hábitos alcoólicos.
Enquanto
esperou por ele na sala, pensava em como iria passar a fronteira de volta com
aquele material que levantava tanta suspeita..
O homem
das parótidas, regressou com duas bobines enormes, que continham o filme do
ano enrolado dentro duma caixa de metal resistente, sob um
autocolante que dizia "Frágil", mas em bom alemão.
Escondeu
uma bobine por baixo da roda suplente, e a outra por baixo do banco dos
passageiros, mas a aquela hora o guarda fronteiriço apenas espreitou para
dentro e lhe pediu um cigarro para a viagem. Ufa! Desta já se tinha livrado!
Chegado
triunfante a Lisboa com o seu pequeno tesouro do momento, tratou de telefonar
ao grande amigo Zeca Palito, para que este o ajudasse na preparação da
montagem. Assim o chamavam porque em todos os cocktails e recepções em que se
infiltrava, apenas comia o pastel de bacalhau e os croquetes com um palito.
Nunca mais se livrou da fama, e ainda hoje traz no seu fato engomadinho um
cartucho de palitos das melhores fábricas do norte. Conhecia as peripécias de
Cicciolina e até tinha em tempos assistido a uma performance em directo da
artista, quando passou pela cidadezinha austríaca de Lipzhagen, pelo que seria
talvez o português com mais intimidade e à vontade com a actriz italiana. À
vontade e à vontadinha...
Quando
chegou à rua dos Fanqueiros, Manuel abriu-lhe a porta, sem sequer o
cumprimentar e rosnou-lhe que viesse ajudar porque era verão e ele já suava de
montar o projector..
Tirou o
boné de imediato e ficou fascinado com as etiquetas que o material detinha. Um
grande escrito à mão com o título do filme para que não restassem dúvidas: La conchiglia dei desideri, dirigido por Riccardo Schicchi (1983), era
o primeiro filme a estrear em todo o Portugal, daquela porno star Europeia...
Sentaram-se
os dois em frente à imagem projectada na parede branca, apagaram as luzes e
apenas ouviam a fita a deslizar com uma luz lateral intermitente sob as suas
caras, enquanto apareciam os primeiros fotogramas. Uma música ambiente de
orquestração barata dava o mote para as primeiras imagens duma pradaria onde
se via uma rústica casa de montanha. A porta abre-se, e um grande plano da
loura branquinha e lábios marcadamente vermelhos, mostra o olhar lascivo e ao
mesmo tempo pueril, que denunciava tudo o que viria a se desenrolar naquele
ambiente de exploração carnal. O decote pronunciado que caiu de repente ao fim
de sete minutos de projecção, seria o fósforo que nunca mais apagaria a
essência da história. O filme estava muitíssimo bem conseguido, quer do ponto
de vista dos arrojados planos cinematográficos obtidos, mas quer também do
enredo e dos personagens criados.
Visualizaram
o filme até ao fim, não sem que lhes entumecessem os opíparos instrumentos em
bastas ocasiões, mas quando surgiu o momento do genérico final, Manuel fixou o
chão e anunciou derrotado:
- Temos
um problema! A porra do filme está todo dobrado em alemão!
Este
género cinematográfico não é dado a muitas falas e os gemidos não necessitam
legendas, mas a verdade é que Palitos costumava traduzir as películas
americanas, e o alemão era uma língua em desuso que ele não dominava. De
imediato não se atrapalhou, e num sorriso triunfante exclamou de forma natural:
- Já
sei! Inventamos os diálogos!
Reviram
o filme segunda vez, mas desta feita com sonoras gargalhadas ao colocarem as
legendas inventadas por eles, para as falas dobradas da estrela italiana que
vociferava um alemão respirado e sensual.
Nunca se
tinham divertido tanto na vida, nem nunca podiam ter imaginado construir uma
história do princípio ao fim, sem perceberem uma palavra daquilo que estavam a
ouvir. Faria roer de inveja a qualquer bom argumentista que se preze!
Não
sendo um filme erudito, e não ficando bem a um distribuidor decente passar este
género particular de cinema na sua zona de conforto, Manuel fez a estreia no
Teatro Sá da Bandeira num tórrido domingo de verão, enquanto cedia os direitos
de emissão ao seu homónimo nortenho para que estreasse no mítico Cinebolso em Lisboa…
Assim se
fez uma parte da história cinéfila num pequeno escritório de Lisboa, onde nunca
ninguém chegou a questionar a veracidade dos diálogos de um filme em que os
diálogos são de facto um acessório.
Ainda
hoje não sabemos o que a actriz precisava quando uma das falas se traduziu num
"Dá-me forte com essa nabiça em forma de baguete rústica!" ou numa
cena de apresentação alguém exclama sedutoramente "Ah, hoje temos
churrasco da catagoria..".
Um
deleite total...
Um grande
abraço ao Sr.Manuel!
PS: história real, ficcionada pela teoria do
fole