É certo que o casamento formal obriga
a uma clássica despedida de solteiro que cursa, na maioria dos casos, em plena
desgraça física e atentado à resistência humana. Mas a despedida de solteiro
mais exótica terá sido efectivamente a que passei num fim-de-semana em
Estocolmo.
O noivo aí reside, e na altura
decidimos se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. Isto é,
agarramos em nós e aterramos de surpresa em terras suecas.
Descansem os intervenientes que não
irei fazer um relato nem detalhado, nem sequer genérico das peripécias
(inocentes, diga-se de passagem...), que até caberiam num volume inteiro desta
teoria do fole.
Como tudo o que é bom acaba, o fim-de-semana
fez-nos regressar num voo da Ibéria, com escala em Madrid. No aeroporto de
Arlanda embarcavam cerca de 20 farrapos humanos, agastados com a jornada, mas
felizes com o coração cheio de convívio e boas lembranças.
A classe económica ia cheia que nem um
ovo, sem nunca ninguém se ter questionado o porquê da plenitude plena do ovo.
Aquele ritual de fazer o check-in, tirar os líquidos, passar o controlo,
revistar a bagagem, aguardar na sala de embarque, entrar um-a-um no avião,
passinhos curtos no corredor, fez-me pensar o quão chipados já estamos para alguns procedimentos.
Dos meus compinchas, poucos foram os
que não tiveram uma qualquer graça ou galanteio cavalheiresco para com as
hospedeiras. Digamos que estavam numa alegre competição a ver quem sacava o
sorriso mais espontâneo!
Malas de mão em cima, garrafas de água
em baixo e capas atiradas para cima dos bancos, ajudavam na algazarra formada
mas enlouqueciam o pessoal de bordo.
Tomamos de assalto os últimos lugares
do avião na expectativa de cada um se encostar e tirar um sono reparador de tão
noctívago fim-de-semana.
Cintos apertados, telemóveis em modo off, e alguns ainda a pedir rodadas de
cerveja para aliviar o stress da claustrofobia, fizemo-nos à pista do aeroporto
de Estocolmo seguindo em fila indiana um comboio de aviões sem carris.
Levantamos voo cerca de 30 minutos
depois, comprovando que os vagões que nos antecediam erguiam-se nos céus, rumo
sabe Deus com que destino.
Mal o sinal de apertar cintos se
apagou, o cansaço deu lugar a um ímpeto de convívio e reunião, em que uns
jogavam às cartas, outros pediam comida e bebida, outros metiam conversa com o
par de suecas louras que abandonava o país, enquanto dois ou três dormitavam na
medida do possível, e do permitido pelos restantes.
Levávamos cerca de uma hora de viagem
e pelas apostas feitas sobrevoaríamos talvez a Alemanha da temível Merkel. Por
instantes encostei a cabeça e reclinei o banco, fechando os olhos num
preparativo soporífero.
De súbito uma chamada da chefe de
cabina pelo intercomunicador.
-"Atención, atención por favor,
se ruega la presencia de algun médico a bordo, de forma urgente en la classe
ejecutiva". A voz denotava muita ansiedade e era ofegante como se algo
grave se passasse na elitista "ejecutiva"... Demorei uns segundos a
abrir os olhos, mas quando os abri já vários dedos apontavam para mim num coro
de incentivos vociferais do resto do grupo. Mesmo que quisesse passar
despercebido, seria impossível....
Levantei-me com calma e dirigi-me ao
nariz do avião para cheirar o que lá passava. Afastei a cortina da classe executiva
e dou com as hospedeiras num nível de stress e ansiedade enorme, correndo de um
lado para o outro com caras de pânico estampadas no rosto.
Olho para o lado e vejo um homem
enorme, presumivelmente nórdico, pálido, suado, ofegante, meio desfalecido, com a mão em
garra sobre os botões da camisa, e num esgar de sofrimento muito grande.
Felizmente ainda falava e pude
perceber que lhe doía o peito, como se os sinais clínicos não fossem evidentes
o suficiente.
Pedi ao único hospedeiro que vinha a bordo, que me ajudasse a
colocar o doente deitado no chão prevendo eu a possibilidade de uma massagem
cardíaca iminente.
-"Mira, lo ponemos aqui en la
frente".
Entre os dois pegamos naquele corpo
pesado e meio morto, praguejando eu em português e ele em
castelhano pelas hérnias lombares que nos estavam a entortar. Nunca eu me
apercebera até então, da similar harmonia do vernáculo dos dois idiomas e o
quão parecido éramos como povo. Se lhe tivéssemos acrescentado uns gestos
figurativos, seria a comunhão perfeita entre nações. Irra, que o homem pesava
mais que uma morsa..
De imediato e com autoridade
coordenadora pedi aos meus assistentes do momento:
-"Ponle el oxígeno y passarme la
maleta de emergência! Rápido!"
A chefe de cabine prontamente me
trouxe uma malinha com uma cruz branca estampada e ar de kit de pensos do Toyota do meu pai. Como as aparências por vezes
não iludem, assim a sacolinha desiludiu: pensos rápidos (muitos), ligaduras
(poucas), álcool (não na quantidade que era ingerida lá trás), aspirina,
paracetamol, hidroxizina,
nitroglicerina, e mái nada!
Bom, se o doente tivesse uma paragem
era sempre bom saber que podíamos fazer compressões a 8000 m de altitude e
pouco mais. Mas que raio de kit era aquele?!
No pressuposto óbvio de um claríssimo
síndrome coronário agudo, meto-lhe uma nitroglicerina debaixo da língua e
desfaço a aspirina de 1000mg, escolhendo dos trinta fragmentos obtidos o
bocadinho que mais se assemelhava a um quarto do original, enquanto o doente
arfava com dor.
O Comandante apareceu e apercebeu-se
da situação, abordando-me muito calmamente e de forma muito profissional:
-"Doctor, estamos sobrevolando
Zurique. Cree usted mejor desviar el avión?"
Não tive dúvidas e ripostei:
-"Si Comandante!" (Se bem
que me apetecia mesmo era levantar, fazer a continência e dizer: "Si mi
Capitán!", mas mantive-me ajoelhado...)
Perante a gravidade do caso e a
histeria das hospedeiras que continuavam a correr de um lado para o outro sem
eu perceber com que objectivo concreto, a decisão do piloto foi a de iniciar a
descida.
Entretanto a cara do doente
demonstrava um claro alívio da dor, a respiração estava mais calma e ele
próprio já falava em guturejos eslavos. A coronária parecia estar a dar tréguas
ao homem!
Que diferença fazem três coisas
aparentemente simples...o oxigénio, a nitroglicerina e o ácido acetilsalicílico!
Bom, acrescento a quarta: o médico..
Demoramos apenas 20 minutos na
descida, e uma ambulância estava na placa esperando o transformado avião.
Quando aterramos, já o doente falava, já me contava que tinha tido um enfarto
do miocárdio e que uma artéria estava entupida pela cerveja, pelo tabaco e
pelas comezainas. Mas sem dor, sem dificuldade respiratória e com um fácies de
alívio que me confortava a mim e a todos os restantes.
Com a chegada dos paramédicos pude
confirmar o diagnóstico electrocardiograficamente, ajudando a colocar o doente
na ambulância.
O homem agarrou-me com força na mão, e
olhou-me nos olhos como se estes falassem de gratidão: -"Thank you doctor!
You saved my life!"
Só lhe consegui apertar a enorme mão
com as minhas, e respondi - "Cuide-se.."- saindo da ambulância sem
olhar para trás.
Estas são as recompensas que garantem
que escolhi a profissão certa!
Voltei a entrar no avião e tive outra
recompensa das hospedeiras, que claramente aliviadas, me presentearam com dois
beijos de agradecimento cada uma. Tiraram uma cópia do meu cartão da ordem dos
médicos e tive pena que uma ou outra não me tivesse pedido o número de
telefone, que teria dado de bom grado…
Era o momento de descompressão e um
ambiente de alegria reinava na cabine! Só faltava abrir o champanhe!
O pessoal da primeira classe também
estava reconhecido e agradecido, alguns ainda a digerir todo o impacto da
situação num silêncio reflexivo e introspectivo.
Convidaram-me a passar o resto da
viagem em primeira, mas claro que optei por me reunir ao grupo agradecendo a
gentileza.
Cruzo a cortina para a classe económica
um pouco agastado, e sou prontamente brindado com uma chuva de aplausos tal e
qual como um herói que liberta a aldeia do fogo inimigo. Épico!
Ainda assim, pelo canto do olho
consegui vislumbrar um ou outro passageiro enfurecido porque tinha perdido uma
reunião agendada, e uma ou outra família que tinha perdido o voo de ligação não
sei para onde. Enfim, nunca se pode agradar a todos..
Assim acabou uma jornada estafante mas
bem sucedida!
Desde então, sempre que viajo de avião
levo umas aspirinas e uns nitromints…
Pelo sim, pelo não…
Um abraço!