Naquela montanha nua, o vento cortava
o ar como uma fria lâmina atravessando espíritos invisíveis. Uma ou outra
árvore polvilhavam a paisagem de verde, nas rochas escuras que se construíam
sobrepostas em escarpas abruptas e desamparadas.
Apenas uma casa no topo se destacava
pela cintilância e conforto da lareira, que exalava um fumo branco e sereno da
chaminé. Lá dentro, Anne murmurava com pesadelos que variavam de intensidade,
viajando nos trilhos suspensos da loucura imaginada dos sonhos. Frank dormia placidamente
sobre os próprios sonhos que fraca energia lhe sugavam, virando-se devagar na
cama para aliviar o peso constante nas articulações.
Ela começou a acordar antes dele, na
esperança de não encontrar a realidade igual ao sonho. Passou a levantar-se
ainda o sol não existia, e a esgueirar-se da cama como uma luva que se
desencaixa da mão, com a viscosidade de um sabonete a fugir das mãos.
Descalça, apenas com a camisa de
noite branca vestida, brilhava ao luar esmorecido, e assim permitindo que todas
as corujas lhe seguissem o rasto. Deixava a porta encostada porque sabia que ia
sempre voltar, mas mesmo que não voltasse, podia um viajante desguarnecido
esgueirar-se e sentar-se à lareira à sua espera.
Caminhava pelo caminho inóspito sem
olhar para o lado, sem se distrair, sem se entreter com a lama que lhe sujava
os pés nem com o vento que lhe empurrava o cabelo para a cara. Uma teoria do
fole jazia numa vala à espera de dono.
Ele ficou lá atrás, no aconchego da
luva..
Parou na beira do precipício, onde o
mar começava e as ondas por vezes batiam tentando subir e apanhar-lhe as pernas
para a levar.
Atirou uma garrafa e viu que tempo
demorava a estilhaçar-se nas rochas. Contemplou com os seus olhos verdes aquele
efeito de desconstrução, e aquele impacto pulverizado em vários fragmentos de
sons minúsculos.
Lançou uns talheres que caíram muito
rapidamente ao mesmo tempo que davam voltas no ar, numa dança improvisada.
Ficou a apreciar o tlim desvanecendo e a faísca do atrito que provocavam
com as pedras grandes e imutáveis.
Primeiro olhou-se no espelho
penteando a sua imagem antes de a atirar gravada na sua superfície. Demorou a
cair mais tempo que os restantes objectos, talvez porque ao rodopiar no ar,
reflectisse no caminho aquilo que a vida nos dá: flores, pedras, terra, céu e
chão. Vertiginosamente caiu partindo-se em mil bocados estridentes, que por sua
vez reflectiram mil imagens diminutas.
Não deu corda ao relógio, mas
atirou-o com força para que o tempo acelerasse a queda. Despedaçou-se em
parafusos, ponteiros e partes de metal que pensava não existirem, num barulho
rouco de oficina de carros velhos. O tempo daquele, parou ali.
Não precisava do seu urso de peluche,
que guardava desde a infância. Não era ela que o guardava, mas sim ele que lhe
guardava os seus segredos. Respirou fundo, fechou os olhos e lançou-o no abismo
imaginando que som faria ao estatelar-se nas rochas. Caiu de braços abertos
para abraçar o mundo e quando o encontrou fez um ruído amortecido pela espuma
que apenas ela conseguia ouvir.
Assim foi durante o pico da lua, em
que lançava objectos e lhes tentava adivinhar o som que faziam ao esmagar-se no
fundo daquela negritude que não alcançava ver, apenas ouvir. Lançava tudo
aquilo exorcizando os seus medos, ou outros eus, as suas hesitações e
frustrações.
Sempre tinha adivinhado o barulho de
todos os objectos, como se cada um tivesse uma identidade própria e um som
característico e inconfundível. Mas nunca se lançou a si própria. Não imaginava
como seria o seu barulho e que ruído faria.
Fechou os olhos e imaginou a
atirar-se dali como um peso morto, como uma viagem que atravessasse as nuvens
ganhando velocidade na descida. Desamparada mas com uma cheia sensação de
liberdade, como se a liberdade pudesse ser cheia, e medida no tempo de uma
descida. Uma coisa tão lata com limites e fronteiras não existe.
Imaginava como seria o som do seu
corpo a esborrachar-se contra o chão. Um som seco de carne e ossos, que
espalharia sangue e talvez um suspiro exalado de dor em milésimos de segundo. Iriam
os seus olhos abertos ou fechados quando se desse o impacto? Era essa a dúvida
que a atormentava ...
Abriu os olhos e respirou fundo,
engolindo o mundo numa golfada revigorante.
Fez o caminho inverso e empurrou a
porta que deixou entreaberta. Não estava ninguém à lareira e Frank remexeu os
lençóis da cama como se despegasse do sono profundo.
Foi acolhida de novo pela luva
reconfortante, com o espírito mais leve, mais aberto, mais receptivo.
Assim que ele acordou, ela sorria
docemente como se estivesse à espera.
Livre daquela bagagem que lhe pesava
e que jazia no fundo do precipício...
Inspirado na música
"Hyperballad"-Björk