Cum raio! Um homem trabalha uma vida inteira,
casa-trabalho-casa e nem sequer a porcaria de um elevador tem quando chega ao
escritório! Olha que isto de subir 58 andares a pé, tem que se lhe diga...
Jonas trabalhava naquela mesma empresa de contabilidade
desde há 27 anos. Raramente tirava férias, e tudo o que amealhava colocava num
porquinho de loiça que a tia lhe tinha oferecido. A mesma tia que fugira com um
marinheiro mexicano que se vestia de toureiro todos os sábados, e lhe tinha
prometido que quando chegassem ao México a coroaria de Miss Tequila. Ainda hoje
lhe manda postais de Jalisco, com meias de renda, fato de variedades e um cão a
tocar maracas.
"O trabalho não aleija", era o seu lema de
vida.
Nesse dia, como tantos iguais a outros, o trabalho mais
uma vez não o tinha aleijado.
Arrumou a sua pastinha de couro, dobrou a manta que usava
por cima das pernas, e apagou a luz do candeeiro de mesa não se notando a falta
da mesma, já que a geral estava ligada.
Restava pouca gente no edifício, e dirigiu-se ao elevador
que hoje parecia diferente e estranho. As luzes estavam todas acesas e uma das
do tecto parecia trémula de frio, parpadeando aos solavancos.
A porta estava aberta e avançou, fechando-se
automaticamente atrás de si com um deslizar invulgar, como se entrasse nas
entranhas de uma criatura pré-histórica e a boca se tivesse fechado...
Não encontrou o botão zero, mas havia um de cor amarela
que presumiu ser um novo botão de saída.
Carregou, e de imediato o elevador começou a descer.
Arrancou devagar, mas ganhou velocidade, não como se estivesse a cair, mas sim
num suave acelerar em sentido descendente. Era impossível já não ter chegado ao
piso térreo, caso contrário já se teria esborrachado contra o solo!
A
descida parecia infinita, cada vez mais depressa, cada vez mais abismal.
Teve de se agarrar ao corrimão, porque iam já a uma
velocidade vertiginosa e alucinante! Sentia tonturas e o sangue a esvair-se
pela cabeça, de tal maneira que desvaneceu sem forças deixando-se levar inerte
para o centro da Terra...
Acordou atordoado e maltratado, sem saber onde estava.
Olhou à volta e para si, guardou a teoria do fole que
entretanto lhe tinha saltado da pastinha de couro, e carregou no botão de
abrir.
Saiu e teve dificuldade em reconhecer que sítio seria
aquele, porque a luz e o calor intenso lhe tolhiam o cérebro.
Mas era um mundo diferente com certeza!
Não conseguia perceber que lugar era, com um mar
de magma, criaturas voadoras meio cabeças de cegonha-meio rabos de mulher, num
céu amarelado com uma espécie de nuvens cantantes, que transportavam bandas de
afro-rock-punk. E que calor! Sufocante!
Tropeçou inadvertidamente num ser de três patas e sorriso
trocista, sentado numa cadeirinha de praia laranja:
- Então..? Demoraste a descer, hãm..?
- Eu..? Ooonde estou...?
- Onde estás? No inferno paradisíaco, onde querias estar?
És o número 57! Anda!
Enquanto corriam, reparou que tinha perdido as suas
calças de fazenda e as cuecas, ficando um pouco mais arejado e liberto de
pressão nas zonas mais baixas. Curiosamente ninguém ligava a isso, e as
criaturas com quem se cruzava sorriam e bamboleavam o dedo em campânula de
sino.
Chegaram a um balcão soturno, misterioso, com muitos
papéis e carimbos sobre a mesa, os utentes sentados em cadeiras enormes,
enterrados e curvados sobre as dívidas morais que tinham para pagar.
Chamaram o meu número e a criatura lá me indicou um
assento de madeira rija, que rangeu num roar ruidoso. Do outro lado estava um
ser com duas cabeças e quatro braços, que freneticamente carimbava papéis de 25
linhas azuis como se marcasse o ritmo com baquetas. Levantou uma das cabeças,
enquanto a outra salivava sobre as folhas, e sorriu por cima dos óculos na
ponta do nariz:
- Jovem Jonas, sabeis a prova a que vos sujeitais...?
- Não sei bem - balbuciei sem saber o que responder...
- Mais um desinformado! Caramba, que lá em cima não sabem
fazer nunca uma triagem certa!
Arregalei os olhos muito admirado e sem perceber, mas ele
lá continuou:
- Bom, chegaste ao fim da linha da tua existência e tens
de passar a última prova para saber se podes entrar no inferno paradisíaco com
aptidão máxima. Para isso tendes de responder e cumprir três tarefas.
Nem queria acreditar em tamanha alucinação! Então eu
faleci e mandaram-me para as trevas em vez de me mandarem para o Céu? Devia
haver um engano qualquer, porque eu ponho o lixo todos os dias no caixote,
ajudo as velhinhas a atravessar a rua, contribuo para todos os cabazes, conforto
sempre as meninas do cabarét, nunca assobio o presidente, enfim um modelo de
pessoa... Será que foi daquela vez que não alimentei os pombos, quando eles
migraram para uma festa no Ginjal? Não....está tudo louco!
O bicéfalo estacou e fitou-me seriamente com os três
olhos:
- A primeira pergunta é: quantos empregados ucranianos há
em Alcochete?
- A segunda é: quantos refegos tem a Lili Caneças?
- A terceira: se eu fosse teu primo, quem poderia ser a
minha mãe...?
Huuuu! A assembleia torceu a cara e abanou a cabeça,
porque temia que eu não conseguisse alcançar as respostas certas...senti uma
tontura que quase me fez cair e vomitar o galão que tinha bebido ao lanche, lá
em cima.
Nessa altura fechei os olhos, respirei fundo e imaginei
toda Alcochete vestida de barrete russo e polaina branca, vi mesmo a Lili
engomando-se os refegos, e pensei na minha família toda até a décima geração de
bosquímanos.
As minhas mãos suavam que nem sovaco de visigodo, a minha
barriga encheu-se de borboletas que queriam desesperadamente sair, e o meu
coração dava pancadas do lado de dentro cada vez mais secas. Mas tinha de
acertar senão estava feito!
Cá vai disto, pensei!
- Eh....acho que são 57 ucranianos (sem contar com o anão
Uchev), 438 refegos (tirando o rego do ass) e a minha mãe poderia ser a
nora da avó da tia que se parece ao primo da filha da empregada adoptada.
No exacto momento em que me saíram as respostas a aquelas
perguntas tão disparatadas, cerrei instintivamente os olhos com força, para não
ver o embate que me teriam reservado depois de tamanha invenção...
Mas o que aconteceu foi deveras miraculoso...Uma estridente
sirene soou, um rotativo cor-de-rosa acendeu-se e pequenos foguetes foram
lançados por um pipeline improvisado,
ao mesmo tempo que a multidão eufórica entoava em cânticos gregorianos:
"já te safaste, já te safasteeee!"
Não sei se desmaiei ou se morri pela segunda vez, mas
digamos que "apaguei"....
Nesse preciso momento, fui sugado por um tubo que fazia
um sistema de vácuo ascendente, e apareci à porta do elevador do meu
escritório, completamente azamboado e ainda a pensar se tudo isto não teria passado
de um pesadelo....
Só quando olhei para o lado e vi as minhas calças e
cuecas penduradas da maçaneta de uma porta enquanto uma fresca brisa me
refrescava as minudências, é que percebi que tinha revivido.
Há quem diga que destes sítios nunca ninguém volta.
Pelo sim ou pelo não, nunca mais desci de elevador...