As
rotinas que detinham cumpriam-nas com rigor e pontualidade. Saíam os
dois para o trabalho à mesma hora, encontravam-se para almoçar de
marmita sempre no mesmo sítio, e voltavam os dois para casa no 37
que acabava a noite a resfolegar do esforço, na última paragem da
Musgueira norte. Nunca tinham ido jantar fora, o cinema era para eles
teatro barato, e as únicas loucuras que se permitiam era passear nas
barquinhas do lago da cidade, ou ir ao circo no Natal.
Num
destes episódios repetidos da vida, e no trajecto tortuoso para
casa, calcorreando avenidas largas que alternam com becos de estreita
manobra, chegaram ao cruzamento da avenida Pôncio de Loyola com a
Mestra Lufanica.
No
preciso bico da esquina, encontrava-se um duende dos países baixos
da Lapónia, que comia uma arrufada de gengibre. Este era um sinal
que ambos tinham de parar, e declamar a bem sucedida teoria do fole!
Assim
o fizeram, e prontamente se dispunham a continuar quando da voz do
anão verde saiu um fininho mas decidido:"Alto!"
Abrandaram
em passo lento, estacando a um palmo da criatura verde e verrugosa.
Ele
tinha decidido que Alfredo teria de fazer o percurso da rua do
Turragulho até a Praça de Paquita Sonajera, para assim chegar a
casa.
Toda
a gente sabia a fama daquele percurso, e Alfredo teria de abandonar a
cara-metade para seguir rumo, na esperança de chegar são e salvo.
Nestas
alturas, havia sempre cabines públicas dispersas pela cidade,
apetrechadas dos necessários fatos e restante indumentária para
esta aventura.
Vestiu os ténis supersónicos, as cuecas de lã
caprina, e o fato-macaco cosido com retalhos de panos de cozinha.
Deste inglesíssimo outfit,
fazia também parte uma saia de tule cor de
rosinha, e um taco fofo de basebol.
Beijou
a testa da dita - e apenas isso da cuja - desatando a correr pela
avenida que desembocava na Gran Vía, fugindo dos quadrados rosa da
calçada, que salpicavam o chão como se ali tivessem aterrado de
emergência.
Cruzou-se
com vários missionários que corriam à mesma velocidade, e lhe
gritavam conselhos como: "roda a mangueira para oeste";
"arrefinfa-lhe uma marretada ao anão da dízima"; "grita:
culélé! bulúlu! muluku! no jardim".
Com
estas dicas talvez se safasse...
A
Gran Vía estreitava-se ao longo do percurso, teimosamente avessa ao
nome que detinha, acabando numa rotunda calcetada, onde o leite
derramado pelo leitoduto amaciava a entrada dos corredores. Parou e
avaliou a situação, reparando que a mangueira do leitoduto estava
apontada para nascente. Rapidamente saltou a dominá-la como quem faz
uma cernelha, virando-a para oeste e alagando as entradas dos
afluentes viários da rotunda Maior. Esta manobra permitiu que os
leiteiros se deslocassem, deixando caminho livre para Alfredo. Toca a
correr!
A
saída que pretendia, dava para um jardim colorido de massas
fettuccine
e farfalle. Embrenhou-se naquele bosque como um
desvairado, abanando as suas folhas e frutos que caíam no chão,
prontos a serem colhidos para uma tomatada de pasta
al dente. O barulho fazia com que os passarinhos de
pés de ornitorrinco e corpo de minhoca, acordassem do seu letargo,
gritando coisas como:"bilele"; "ramimi";
"gudúra", que Alfredo sabia serem o sinal de alerta para
os faisões assassinos da cantina italiana.
Não podia deixar que
estes estúpidos pássaros arruinassem a sua performance, de maneira
que começou também ele a gritar: culélé! bulúlu! muluku!, na
expectativa de baralhar os faisões e acordar as mulas do reino da
candonga. Estes seres tinham a forma de um saca-rolhas, deslocando-se
em parafuso e tocando um sininho à medida que progrediam.
Reagiam
sobretudo aos culélés, saltando das suas tocas e engolindo as aves
raras barulhentas e incomodativas, ao mesmo tempo que soltavam uma
nuvem azul perfumada que se erguia nos céus como uma baforada de
Chanel nº5,7.
A
última linha do jardim era cercada por plantas carnívoras que
trituravam tudo, excepto restos de Lili Caneças. Alfredo aproveitou
o embalo da corrida e deu um mortal à frente, sentindo os
clacks-clacks
dos dentes carnívoros a quererem mordiscar-lhe o traseiro, por uma
questão de milímetros.
Aterrou
de rabo numa fina faixa de areia que o amparou de partir umas
costelas, mas que lhe ofereceu uma grande dor de cú. Assim caiu,
assim ficou a olhar! A única saída daquele deserto era um tapete
rolante gigantesco que acelerava em movimento contrário sempre que
se tentava avançar. Assim que Alfredo corria para cima da rolanda,
esta acelerava em movimento inverso, cuspindo-o de volta à areia
fofa! Como sair dali?!
Sentia-se
encurralado porque para trás impossível cair nas garras das plantas
carnívoras, para os lados era só deserto, e para a frente que era o
caminho, tinha um tapete rolante enorme que não parava e rodava para
trás!
Justamente
ao lado da entrada do tapete, estava um anão que tocava sem parar um
realejo estridente. Aproximou-se devagar e perguntou:
-que
fazeis aqui anão?
-ora!
Sou o anão da dízima e tendes que a dar!-disse sem parar de dar à
manivela
O
rápido pensamento de Alfredo fê-lo agarrar no taco de basebol, e cá
vai malho na calva do anão da dízima! Foi tão forte e certeiro que
o enterrou direitinho até ao pescoço, parando o manípulo da
caixinha estridente e com isso retirando a energia ao tapete
castrador. Tinha conseguido pará-lo sem saber como!
Correu
os últimos cem metros como obikwelu em tartan, cruzando a meta de
braços no ar num êxtase de chariots
of fire.
Caiu
directamente num poço, escorregando em velocidade estonteante por um
sistema de tubos torneados, que o cuspiram às cambalhotas na sua
rua.
Sacudiu
o pó que se acumulara pelos caminhos, e olhou à volta...
Os
lampiões estavam acesos, ninguém passeava no crepúsculo, e as
luzes nas janelas adivinhavam o conforto das famílias nos seus
ninhos.
Subiu
os degraus de sua casa, abriu a porta e abraçou-a.
Nesse
dia tinha superado a prova rainha do mundo paralelo!
Parabéns!